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A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou por nove votos a um a inconstitucionalidade do Marco Temporal das terras indígenas, na semana passada, intensificou a mobilização da bancada do agronegócio no Congresso. Os parlamentares do setor agora apostam em aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 48/2023), mais forte que a lei aprovada em 2023 que foi derrubada agora pelo Supremo.
O julgamento, encerrado após os votos dos ministros Nunes Marques e André Mendonça, consolidou a posição do relator Gilmar Mendes, que considerou inválido o marco que limitava a demarcação às áreas ocupadas até 5 de outubro de 1988. Mesmo as divergências pontuais apresentadas por Edson Fachin e Cármen Lúcia mantiveram o resultado final pela invalidação da lei aprovada pelo Congresso em 2023.
Em 2023, parlamentares aprovaram um texto que estabelecia que povos indígenas só poderiam reivindicar terras ocupadas até a promulgação da Constituição de 1988. À época, no entanto, o Supremo Tribunal Federal barrou a iniciativa. Para a Corte, naquele julgamento, o direito dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas deve ser assegurado independentemente da existência de um marco temporal.
Segundo o ministro Mendes, o critério é desproporcional e acaba gerando insegurança jurídica, ao impor, de forma retroativa, exigências que considera praticamente impossíveis de serem comprovadas por comunidades indígenas, especialmente aquelas que não dispõem de documentação formal.
“Não podemos conviver com chagas abertas séculos atrás, que ainda dependem de solução nos dias de hoje”, afirmou Gilmar, ao defender que o debate sobre conflitos no campo exige outras salvaguardas mínimas e uma atuação coordenada dos Poderes da República.
Agro reage e fecha estratégia no Congresso
Com a decisão do STF, a bancada ruralista passou a concentrar esforços na tramitação da PEC, que já foi aprovada pelo Senado no dia 9 de dezembro, em dois turnos no mesmo dia. A avaliação entre parlamentares do agro é de que apenas uma mudança direta no texto constitucional pode oferecer previsibilidade aos processos de demarcação e proteção a produtores com títulos concedidos pelo próprio Estado.
O presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, Rodolfo Nogueira (PL-MS), afirmou que a decisão do Supremo representa avanço indevido sobre competências do Legislativo. Segundo ele, a decisão compromete a segurança jurídica no campo e impõe instabilidade a milhares de produtores rurais.
“O que está em debate não é retirar direitos, mas garantir previsibilidade, estabilidade e respeito ao texto constitucional”, afirmou. Para o deputado, a PEC é o caminho institucional adequado para restabelecer o equilíbrio entre os Poderes e pacificar os conflitos fundiários.
Após a aprovação no Senado, a proposta foi encaminhada à Câmara dos Deputados. Para se tornar emenda constitucional, o texto ainda precisa ser aprovado em dois turnos por, no mínimo, 3/5 dos parlamentares (308 votos).
O objetivo da PEC 48/2023 é ratificar os termos do Marco Temporal já incorporados à Lei 14.701/2023 (que teve seus principais pontos derrubados pelo STF), estabelecendo que terras indígenas são aquelas que estavam sob posse dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A proposta também prevê mecanismos de segurança jurídica, incluindo a garantia de indenização prévia a ocupantes regulares de áreas que venham a ser demarcadas.
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FPA destaca manutenção da maior parte da lei e reforça aposta na PEC
Após a decisão do STF pela inconstitucionalidade do Marco Temporal, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) passou a enfatizar que, embora negativa para o setor, a decisão preservou a maior parte dos dispositivos da Lei 14.701/2023 e, ao mesmo tempo, reforçou a necessidade de avanço da PEC 48/2023 como resposta política do Congresso.
Em declaração divulgada nesta sexta-feira, o presidente da FPA, Pedro Lupion, afirmou que cerca de 80% da lei aprovada pelo Parlamento foi mantida, o que, segundo ele, evita um esvaziamento completo do trabalho legislativo e garante instrumentos importantes de proteção aos produtores rurais. Ou seja, a parte específica que criava o Marco Temporal foi derrubada, mas alguns pontos favoráveis ao agro foram mantidos.
“É importante ressaltar que 80% dos dispositivos da lei que nós aprovamos foram mantidos”, afirmou. Entre os pontos preservados, Lupion destacou a possibilidade de reintegração de posse sem submissão a comissões prévias, especialmente em casos de invasões ocorridas até 15 de dezembro de 2025. “Essas áreas que foram invadidas sem justificativa poderão, sim, ser reintegradas, e nós vamos trabalhar para isso”, disse.
Outro aspecto considerado central pela bancada ruralista é a manutenção do direito de retenção e do uso da terra pelos produtores até a edição do decreto homologatório de demarcação. “Foi confirmado o direito de retenção e o uso da terra sem restrições, previstos nos artigos 9º e 11º da lei. Isso é super importante para garantir a continuidade da atividade produtiva”, afirmou.
Derrubada do Marco Temporal acelera reação política
Apesar da preservação de parte da lei, a FPA classificou como “extremamente negativos” dois pontos do julgamento. O principal deles foi a derrubada do Marco Temporal, sem o reconhecimento da data da Constituição de 1988 como limite objetivo para demarcações.
“Isso a gente tem que continuar trabalhando, e vamos continuar trabalhando”, afirmou Lupion, ao confirmar que a bancada ruralista intensificará a articulação para votar a PEC 48/2023 na Câmara dos Deputados. Segundo ele, havia resistência entre líderes partidários em avançar com a proposta enquanto o julgamento estava em curso no STF, mas o cenário mudou após a decisão.
“O Senado já fez a sua parte. Agora nós vamos correr atrás para votar a PEC na Câmara e, se possível, melhorá-la. Há pontos que ainda precisam ser aprimorados”, disse.
Outro ponto criticado pela FPA foi o prazo de dez anos para a conclusão das demarcações, fixado sem a adoção de um critério objetivo. “Dar um prazo de dez anos sem um marco claro não resolve o problema, porque muitas dessas demarcações têm problemas jurídicos sérios”, afirmou.
Lupion reforçou que a estratégia da bancada é garantir o direito de propriedade e evitar novos conflitos no campo. “Nós vamos votar a PEC, vamos garantir o direito de propriedade. Esse é o nosso objetivo. A FPA está trabalhando intensamente para acabar com invasões e garantir segurança jurídica aos produtores”, disse.
Por fim, o presidente da FPA destacou que, até a publicação do acórdão do STF, nada muda do ponto de vista prático. “Enquanto o acórdão não for publicado, não muda absolutamente nada”, afirmou, acrescentando que a bancada espera ganhar tempo durante o recesso para avançar na articulação política e evitar novas invasões.
Analistas veem pressão institucional do STF e risco de esvaziamento do Legislativo
Para o jurista André Marsiglia, a decisão do Supremo e o momento em que ela ocorre reforçam um padrão de atuação da Corte que ultrapassa o controle constitucional clássico e passa a interferir diretamente no processo legislativo.
“Isso não é um avanço e tampouco é algo pontual. O STF tem atuado nesse modus operandi de votar matérias justamente quando percebe que há uma emenda constitucional ou um projeto relevante em discussão no Congresso”, afirmou. Segundo ele, a dinâmica cria uma pressão indireta sobre parlamentares. “A mensagem é simples: se o Congresso não votar, o STF vota. E, se votar diferente do entendimento do Supremo, já sabe que a decisão será anulada.”
Marsiglia avalia que esse movimento transforma o Legislativo em um ator secundário no processo decisório. “O Congresso passa a exercer um papel quase decorativo, como uma casca vazia. O conteúdo das decisões acaba sendo aquilo que o STF pensa”, disse. Para o jurista, esse padrão já foi observado em outras pautas sensíveis, como a regulação das redes sociais, e tende a se repetir sempre que há divergência política relevante.
Na análise do analista político Alexandre Bandeira, embora o STF tenha legitimidade jurídica para declarar leis inconstitucionais, a Corte tem substituído o papel técnico por uma atuação cada vez mais política. “O Supremo se ampara no discurso de guardião da Constituição, mas, na prática, tem desvirtuado um princípio basilar do Judiciário, que é o da imparcialidade”, afirmou.
Segundo Bandeira, decisões que levam em conta o contexto político e os atores envolvidos comprometem a previsibilidade institucional. “Quando o tribunal julga olhando quem está no processo e não apenas o texto constitucional, ele acaba legislando de maneira indevida em matérias que são claramente de competência da Câmara e do Senado.”
O analista avalia que o Marco Temporal é apenas mais um capítulo de uma crise mais ampla entre os Poderes. “Não é um conflito isolado entre Judiciário e Legislativo. O Executivo também está inserido nessa dinâmica, o que acaba colapsando a harmonia entre os Três Poderes prevista na Constituição”, disse.
Bandeira destaca ainda que mudanças abruptas de entendimento por parte do STF agravam a insegurança jurídica. “Temos visto revisões recentes de decisões com efeitos retroativos, como no caso das sobras eleitorais, que alteraram a composição da Câmara. Isso demonstra que decisões constitucionais, que deveriam ser sólidas e estáveis, estão se tornando mais efêmeras e convenientes ao momento político.”
Para ele, a aprovação da PEC pelo Congresso pode alterar o cenário, mas não elimina totalmente o risco de judicialização. “Quando o Legislativo cumpre todo o rito e aprova uma emenda constitucional, a margem de manobra do STF se reduz drasticamente. Ainda assim, existe o risco de o Supremo recorrer à hermenêutica [interpretação] para questionar até mesmo uma PEC, sob o argumento de violação a direitos fundamentais.”
O resultado, segundo Bandeira, é um ambiente de instabilidade prolongada. “Enquanto essa queda de braço não chega a um desfecho, ninguém sabe exatamente o que vale: nem os povos indígenas, nem os produtores rurais, nem o próprio Estado. Isso alimenta conflitos, insegurança jurídica e um cenário de permanente tensão no campo.”







