• Carregando...
“Tudo que chega aqui no Supremo tem que ser julgado”, disse Luís Roberto Barroso sobre ação que pode descriminalizar aborto
“Tudo que chega aqui no Supremo tem que ser julgado”, disse Luís Roberto Barroso sobre ação que pode descriminalizar aborto| Foto: Carlos Alves Moura/STF

O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, afirmou nesta sexta-feira (29) que, “em não se tratando de uma decisão sobre cláusula pétrea, o Congresso, no fundo, é quem tem a última palavra” sobre questões que têm colocado em lados opostos a Corte e o Legislativo, como a validade do marco temporal para demarcação de terras indígenas, a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal e do aborto até a 12ª semana de gestação, principalmente.

“Ele [Congresso] sempre pode produzir uma emenda constitucional revertendo uma interpretação do Supremo Tribunal Federal. Se for cláusula pétrea não pode. Mas fora das situações de cláusula pétrea – que são federação; voto secreto, direto e universal; separação de poderes; e direitos individuais, fundamentais –, nas outras matérias, quem no fundo dá a última palavra é o Congresso Nacional, mediante uma emenda constitucional que pode reverter uma decisão. É assim em todo o mundo, não é um fenômeno brasileiro. Formalmente [o STF] é a última palavra, mas realmente não é, porque é sempre possível reverter”, afirmou o ministro em sua primeira entrevista à imprensa como chefe do Poder Judiciário.

Em outra parte da entrevista, ele também disse esperar que “reflua” a agressividade que existe contra a Corte e os ministros – em boa medida, decorrente da percepção de interferência em outros poderes.

Nesta semana, deputados e senadores, principalmente das bancadas do agro, da segurança e da frente evangélica/católica, decidiram obstruir a votação de todas as propostas do plenário da Câmara e Senado em protesto contra julgamentos que põem fim à tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas; e que também podem descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal e também o aborto até a 12ª semana de gestação.

Barroso sinalizou que é possível chegar a soluções por meio do diálogo entre os Poderes e esclarecimento maior da sociedade sobre o impacto e extensão das decisões do STF.

Questionado sobre a PEC do Equilíbrio de Poderes, proposta segundo a qual o Congresso poderia derrubar decisões do STF por 3/5 dos parlamentares, ele afirmou que “o Congresso pode debater todas as questões que a ele pareça próprio debater”. “Não vejo problema na discussão. E detalhe: essa previsão, de superação de decisão do Supremo, já existiu no direito constitucional brasileiro. Estava na Constituição do Estado Novo, da ditadura de [Getúlio] Vargas, de 1937”.

Fim do marco temporal tem "impacto menor" que o sugerido

Na questão do marco temporal – tese pela qual só poderiam ser demarcadas terras ocupadas em 1988 por comunidades indígenas – o ministro esclareceu que a decisão do STF estabeleceu que ele não se aplicaria naquelas situações em que as tribos tenham sido expulsas da região e continuaram tentando recuperá-la. “Se tiver saído de lá, e nunca mais voltou, não pode mais reivindicar aquela área”, disse.

Para Barroso, a segurança jurídica de agricultores que atualmente produzem nessas regiões não estaria afetada, porque se for comprovado que adquiriram a terra de boa-fé, terão direito a indenizações em caso de desapropriação. “A repercussão da notícia sugere algo mais dramático do que vai ser e o impacto é menor do que eventualmente se sugere. Há ideologização da questão”, afirmou aos jornalistas.

Ele evitou comentar se o projeto de lei aprovado no Congresso que restabelece o marco temporal poderá ser derrubado no STF.

Barroso diz que política de drogas não deu certo

Na questão das drogas, o ministro disse que o Congresso já “despenalizou” o porte quando, em 2006, extinguiu as penas de prisão para usuários, determinando apenas, em caso de condenação, que ele tome advertência sobre os efeitos do uso, seja submetido a prestação de serviços à comunidade e medida educativa.

“Basicamente o que o Supremo está fazendo é definir qual quantidade vai ser considerada porte e qual quantidade vamos considerar tráfico. Isso é da competência do Supremo, porque quem prende é o juiz. A polícia pode prender em flagrante, mas imediatamente tem que submeter ao juiz. Foi meu voto original lá atrás e o que parece que agora vai granjear maioria é estabelecer qual a quantidade que vai considerar porte e qual tráfico, para que não seja o policial de plantão que tome a decisão. Porque, na prática, como estava no meu voto e no ministro Alexandre [de Moraes], o que acontece é que nos bairros ricos uma quantidade X é considerada porte e nos bairros pobres a mesma quantidade X é considerada tráfico. Portanto, é para acabar com essa discriminação contra pessoas pobres e de periferia, é que queremos estabelecer um critério judicial, e não um critério que cada policial vá determinar”, disse.

“Nós não estamos mudando a política estabelecida pelo Congresso, estamos dando diretriz para a polícia, se e quando pode prender por tráfico. É muito importante esclarecer isso: não há nenhuma interferência com o poder do Congresso, o Supremo é deferente para com a competência do Congresso quanto a legalizar ou deslegalizar drogas”, completou.

Ele acrescentou que é preciso debater a política de drogas, pois para ele, ela é “a responsável pelo hiper encarceramento de jovens pobres e primários de bons antecedentes no Brasil”. “O que a gente está fazendo não está dando certo. O tráfico domina parcelas importantes do Estado brasileiro e a política que se tem praticado é de prender menino pobre de periferia por pequenas quantidades de drogas. Você coloca esse jovem no sistema penitenciário, logo que entra, tragicamente, tem que se filiar a uma facção, porque é questão de sobrevivência para ele, vai ficar preso 1, 2, 3 anos, vai sair pior que entrou, a vaga que ele ocupou custou dinheiro, e a vaga que ele ocupava no tráfico foi substituída no dia que foi preso”.

Congresso deve tratar do aborto “também”

Sobre o aborto, Barroso disse que é “questão controvertida em todo o mundo”, sendo que em alguns países o tema foi resolvido nos tribunais constitucionais e em outros no Congresso, por lei. “Acho perfeitamente normal que uma questão importante e divisiva da sociedade como essa seja debatida no Congresso também. De modo que não acho que isso seja um problema e não acho que seja uma questão que possa ser levada adiante sem um debate público relevante”, afirmou.

Ele, no entanto, não descartou uma decisão do STF sobre o assunto. Questionado se pretende pautar a ação que pode ampliar a permissão para a prática, ele afirmou que “pode” colocar o caso em deliberação na Corte. “Essa é uma ação que foi proposta perante o Supremo Tribunal Federal. No direito constitucional brasileiro, não existe a possibilidade de o Supremo não julgar a matéria por dizer que ela é muito difícil. Portanto, tudo que chega aqui no Supremo tem que ser julgado. Como vai ser julgado é outra questão [...] O timing cabe à presidência [do STF] determinar. Chegou aqui, a gente vai julgar”, disse.

Ele acrescentou depois que o debate deve ser aprofundado por ser “questão delicada porque envolve sentimentos religiosos respeitáveis das pessoas e numa democracia todo mundo merece respeito e consideração, mesmo que pense diferente da gente”.

“Perdeu, mané” e “derrotamos o bolsonarismo”

Barroso também foi indagado sobre declarações recentes que causaram furor de seus críticos à direita – como o “perdeu, mané”, dito no ano passado, em Nova York, a eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro desconfiados das urnas eletrônicas; e o “derrotamos o bolsonarismo”, dito em discurso no congresso da UNE em Brasília, em julho deste ano.

O ministro disse que “foram frases em momentos de grande agressividade, radicalização, ofensas”, situação no qual, segundo ele, “geralmente as pessoas não se apresentam na sua melhor versão, são exceções”. Após a autocrítica, disse que o quadro no Brasil mudou, dizendo que até pouco tempo atrás não sofria insultos em ambientes públicos.

“Essa coisa da agressividade é muito recente na vida brasileira e tenho muita esperança que isso reflua e não se reproduza esse contexto que levou a essas falas”, disse. Indagado se se arrependia, não confirmou. “Lamento que o fato tenha ocorrido. No congresso da UNE, usei uma palavra quando queria usar outra. Quis dizer extremismo, não [me referir] às pessoas que votaram no ex-presidente”.

Responsabilidade fiscal

Barroso foi questionado pela Gazeta do Povo se pretende implementar no STF uma agenda que sinalize a necessidade de preservação da responsabilidade fiscal. O ministro é um defensor do equilíbrio das contas públicas e já disse que se trata de uma pauta que deveria ser consensual entre esquerda e direita para o bem da economia do país.

O ministro discordou da perspectiva, expressa na pergunta, de desconfiança do mercado em relação ao compromisso do atual governo com a responsabilidade fiscal, e demonstrou otimismo em relação a algumas reformas apresentadas.

“Não vou questionar as suas premissas de descrédito da política econômica ou não. Possivelmente não concordaria com elas. Acho que há uma reforma tributária em curso, que será uma transformação muito importante no Brasil. Acho que houve discussão sobre arcabouço fiscal relevante. Vi diminuírem as taxas de desemprego, houve aumento relativamente importante de investimentos na bolsa brasileira, houve refluxo por causa de questões internacionais. De modo que talvez não trabalhasse com as mesmas premissas que você trabalhou. Porém, eu acho, já verbalizei isso, que responsabilidade fiscal realmente não tem ideologia, é uma premissa importante das economias saudáveis e continuo a achar isso”.

Em relação a casos concretos, ele destacou apenas uma ação, com julgamento suspenso, que poderá aumentar o saldo de FGTS dos trabalhadores. Barroso já votou para corrigir o saldo pelo índice da caderneta de poupança, não pela Taxa Referencial, que é menor.

“É preciso evitar o horror econômico, mas também o horror jurídico. Me pareceu que remunerar a poupança do trabalhador, que o garante em caso de demissão ou para retirar no final de sua vida, a menos que a caderneta, que é a pior rentabilidade do mercado, sendo que no FGTS a liquidez é ainda menor, é injusto. O contraponto é que o dinheiro é utilizado para projetos habitacionais de famílias de baixa renda, o que é uma destinação muito importante, mas talvez se devesse tirar esse dinheiro de outro lugar, e não da poupança do trabalhador. Portanto, a responsabilidade fiscal é muito importante, nós devemos persegui-la, mas não ao custo da injustiça”, disse o ministro.

Liberdade de expressão

Barroso ainda foi questionado, pela Gazeta do Povo, se há previsão de levar ao plenário, para discussão de todos os ministros, decisões do ministro Alexandre de Moraes que suspenderam perfis e contas em redes sociais de usuários, determinadas nos inquéritos das fake news e das milícias digitais. O presidente do STF não respondeu à questão.

Na entrevista, ele defendeu o programa, que implementou no TSE, de “combate à desinformação”, que visou rebater e desmentir acusações de fraude nas urnas eletrônicas, por meio de campanhas de esclarecimento.

“Nós enfrentamos a desinformação que achávamos que desestabilizaria a democracia. Nós não cuidamos da desinformação entre candidatos, que esse era um problema tratado de maneira diferente mediante provocação do candidato afetado e julgamento pelo plenário do TSE”, disse, desta vez se referindo a decisões que, em muitos casos, retiraram publicações e perfis de redes sociais da internet.

Depois, Barroso disse que algo semelhante será feito em sua presidência no STF. “A desinformação que comprometa a imagem do Supremo, ou que comprometa a democracia, nós vamos continuar a enfrentar. Agora, a liberdade de manifestação política, onde ela se manifeste de forma abusiva ou exacerbada, existem outros meios para ser enfrentada. A nossa opção é pela educação e informação de qualidade, e não propriamente pela repressão”, explicou.

Em outra parte da entrevista, o ministro disse apoiar o projeto de lei das fake news, que está parado no Congresso e pode ampliar a responsabilização das plataformas digitais por conteúdo nocivo postado por usuários – também há ação a ser julgada no STF com esse objetivo.

“Estamos de acordo que não pode ter pedofilia na rede, venda de armas, de drogas, ou que não possa ter discurso de ódio contra as pessoas e instituições”, afirmou.

Ele também disse ser a favor de remuneração, pelas redes sociais, de conteúdos jornalísticos, produzidos pela imprensa profissional, que trafega nas plataformas, como forma de incentivo para informações de qualidade e que forneçam um “universo de fatos comuns” no debate público.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]