• Carregando...
TCU
| Foto: Divulgação/TCU

A inelegibilidade de oito anos imposta pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não fez cessar, entre seus opositores, a sanha por punições maiores. A expectativa de vários deles, agora, é de que o Tribunal de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do Congresso que analisa a regularidade de gastos públicos, também condene Bolsonaro e alongue por mais tempo, para além de 2030, a proibição de ele disputar novas eleições. Mas isso não é um processo simples e o ex-presidente tem boas chances de defesa.

Ao condenar o ex-presidente em 30 de junho, o TSE remeteu a decisão ao TCU para apurar eventual dano aos cofres públicos na realização da reunião com embaixadores, na qual ele questionou a integridade das urnas eletrônicas. Com o mesmo objetivo, o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, pediu ao órgão o levantamento das despesas, especialmente com a veiculação da reunião na TV Brasil e nas redes sociais.

A chance de prorrogar a inelegibilidade existe porque o TCU, em caso de condenação, poderia aplicar uma regra da Lei da Ficha Limpa diferente da usada pelo TSE. Na condenação eleitoral, por abuso de poder político na campanha, os ministros do TSE se valeram da norma inscrita na alínea d, do artigo 1º, inciso I, segundo a qual a inelegibilidade vale para a eleição em que o candidato condenado concorreu – no caso, 2022 – e nas eleições que se realizarem nos oito anos seguintes – daí a inelegibilidade de Bolsonaro até a eleição de 2030.

Já numa eventual condenação pelo TCU, a regra aplicável seria a da alínea g, segundo a qual os oito anos contam “a partir da data da decisão”, que deve ser “irrecorrível”, ou seja, definitiva. Esse tempo de inelegibilidade, decorrente de eventual nova condenação pelo TCU, não se somaria ao que foi imposto pelo TSE, mas iria se sobrepor a ele, pois os prazos correm de forma independente.

Segundo o presidente do TCU, Bruno Dantas, os oito anos só passariam a contar após o trânsito em julgado, isto é, o esgotamento de recursos, no próprio tribunal. Em entrevista à GloboNews em 4 de julho, Dantas disse que “não necessariamente [o julgamento] acontecerá instantaneamente”. “Um eventual prazo de oito anos de inelegibilidade se dará a partir do trânsito em julgado dessa decisão. Isso pode acontecer em um ano, em um ano e meio, em dois anos. Aí, os oito anos de inelegibilidade começam a partir desse julgamento do TCU”.

Se o órgão finalizar o julgamento das despesas daqui a dois anos, em 2025, por exemplo, a inelegibilidade de 8 anos começaria a contar dessa data, e terminaria, portanto, somente em 2033. Nesse cenário, Bolsonaro só poderia voltar a concorrer nas eleições do ano seguinte, quando terá 79 anos.

Assim, uma demora do TCU em julgar em definitivo as despesas da reunião alongaria a inelegibilidade, em caso de condenação, a depender do momento em que o processo fosse encerrado. Quanto mais tempo durar o processo, mais longe fica o fim do prazo de inelegibilidade, se houver condenação.

Quem ditará o ritmo da tramitação no TCU é o ministro Jhonatan de Jesus. Ele foi sorteado para analisar as representações do TSE e de Lucas Furtado para apurar os gastos.

Ex-deputado pelo Republicanos de Roraima e filho do senador Mecias de Jesus, Jhonatan chegou ao TCU pelas mãos do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que era aliado de Bolsonaro enquanto ele estava na Presidência da República. Atualmente, Lira negocia apoio do Centrão ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em sua posse no TCU, Jhonatan prometeu não usar seu cargo no TCU para perseguições políticas. “Ninguém sob a minha orientação será condenado baseado em interesses de grupos ou de pessoas que queiram transformar o Tribunal de Contas da União numa arena de perseguição política dos seus adversários”, disse, em fevereiro deste ano.

Para mensurar o total gasto no evento, Jhonatan de Jesus acionará a área técnica do TCU, composta por auditores concursados. Depois, com base no resultado dessa apuração, poderá propor ao colegiado do órgão, formado por outros sete ministros, a abertura de uma fiscalização – chamada tomada de contas especial – se considerar que há indícios de mau uso de recursos públicos. Em caso de condenação, o órgão poderá aplicar punições como multa e ressarcimento ao erário.

Barreiras à extensão da inelegibilidade

Do ponto de vista estritamente jurídico, a possibilidade de Bolsonaro perder o direito de ser votado por mais tempo, por decisão do TCU, passa por várias etapas e não é tão simples de se atingir, segundo especialistas no tema consultados pela Gazeta do Povo.

O obstáculo mais recente foi firmado em 2016, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a desaprovação das contas de um prefeito, por um tribunal de contas municipal ou estadual, não seria suficiente para impor a inelegibilidade.

A maioria dos ministros entendeu que uma decisão do tipo deveria ser ratificada pelos vereadores. Na prática, a palavra final caberia ao Legislativo local. Isso valeria tanto para as contas de governo – relativas à execução do orçamento em determinado ano – quanto para contas de gestão – relativas a alguma despesa específica ocorrida durante o mandato.

As contas de governo de Bolsonaro, relativas ao orçamento de 2022, já foram aprovadas pelo TCU no início de junho.

Restaria ao TCU analisar as contas de gestão relativas à despesa da reunião com os embaixadores. Mas uma eventual desaprovação só geraria inelegibilidade se fosse aprovada na Câmara dos Deputados.

“Na minha concepção, eventual desaprovação das contas pelo TCU teria de ser submetida à Câmara, pois a regra fixada em 2016 não pode ser relativizada. Se relativiza a regra para o mais [o presidente], iria também relativizar para o menos [o prefeito], e aí contrariaria o precedente que acabou de ser firmado”, diz o advogado Sidney Neves, atual presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ele ressalva que essa opinião não representa, necessariamente, o entendimento da entidade de classe.

É o que também entende a advogada eleitoral Ana Márcia Mello, especialista no assunto. “O Tribunal de Contas da União não julga as contas do presidente da República, mas emite apenas parecer prévio anual sobre as contas do governo, tendo o STF já definido que essa competência do TCU é meramente técnica, e não jurisdicional. Em sendo assim, o parecer no sentido da rejeição de contas pelos Tribunais de Contas não implica em consequente inelegibilidade do governante, demandando expressa manifestação do Parlamento, que é o poder competente e responsável pelo julgamento das contas, e este sim é que, ao apreciá-las, deverá emitir juízo de valor quanto a natureza das irregularidades”, diz ela.

Para os analistas, a condenação necessária para uma inelegibilidade via TCU também não é simples de ser fundamentada. Para isso, a Ficha Limpa exige a ocorrência de uma “irregularidade insanável”, que configure um “ato doloso de improbidade administrativa”. Em geral, essas condições se amoldam a despesas grandes, na casa dos milhões, efetuadas pelo gestor com o intuito de se apropriar do recurso público.

“É quando o sujeito quer se locupletar e faz uma manobra para meter a mão no dinheiro”, explica Sidney Neves. “Nem sempre contas rejeitadas importam em inelegibilidade, e essa constatação deverá ser feita pela Justiça Eleitoral, quando da análise de eventual pedido de registro de candidatura”, acrescenta Ana Márcia Mello.

Improbidade administrativa

Não é nem o TCU nem o TSE que julga, propriamente, se houve improbidade administrativa em determinada despesa, mas sim a Justiça Federal. Os tribunais de contas e eleitorais, em geral, só avaliam, de forma superficial, se determinada despesa pode ou não indicar improbidade. O dolo em atos de improbidade, por sua vez, é interpretado como a intenção clara de obter ganho ilícito, e não com a ordem de efetuar uma despesa de forma equivocada por um gestor.

No caso da reunião de Bolsonaro com embaixadores, o único gasto documentado, até o momento, foi de R$ 12.214,12, relativo ao “planejamento e apoio logístico ao evento”, envolvendo sonorização, cenografia, gerador, painel de LED, coordenador de eventos e operador de equipamento audiovisual – ou seja, o aparato utilizado para a apresentação de slides num telão, feita pelo ex-presidente durante a reunião no Palácio da Alvorada.

O próprio TCU tem um entendimento de que despesas inferiores a R$ 100 mil inviabilizam a abertura de tomada de contas especial, ou seja, o procedimento de apuração dos gastos que antecede o julgamento sobre sua regularidade. Isso porque o tribunal poderia despender mais recursos para apurar o dano do que o próprio prejuízo causado por ele – seria um ato “antieconômico”.

Na representação em que pediu ao TCU para levantar os gastos da reunião, o subprocurador Lucas Furtado sinalizou que devem ser apuradas mais despesas, como as realizadas pela EBC para transmitir a reunião na TV Brasil e reproduzir seus trechos nas redes sociais.

“Mostra-se imprescindível, portanto, que esta Corte proceda à devida apuração do dano ao erário decorrente do uso da estrutura da EBC. Além disso, entende-se que o dano ao erário pode englobar também os custos com o uso da estrutura do Palácio do Planalto e eventuais gastos com a organização do evento”, escreveu no documento.

Sua expectativa é de que, somados, todos os gastos individuais para a realização do evento ultrapassem os R$ 100 mil, de modo a viabilizar a fiscalização pelo TCU.

Em razão das várias etapas e exigências para se alcançar uma inelegibilidade, Ana Márcia Mello não considera que haveria uma tentativa de tornar Bolsonaro inelegível no TCU, “mas apenas tramitação formal de uma prestação de contas de governo”.

“As contas do governo Bolsonaro deverão seguir a tramitação regular e formal para seu julgamento. Caso tenham ocorrido irregularidades, elas deverão ser analisadas no parecer do TCU e julgadas pelo Congresso Nacional. Acaso rejeitadas e uma vez presentes irregularidades insanáveis, que configurem dolo específico, assim reconhecidas por decisão irrecorrível, deve ser aplicada a lei, assim como ocorre com qualquer gestor, cabendo ao TSE analisar se é o caso de enquadramento no art. 1º, I “g” da LC nº 64/90”, resume a advogada, referindo-se à regra da Lei da Ficha Limpa.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]