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“Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo”, disse Luís Roberto Barroso na UNE
“Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo”, disse Luís Roberto Barroso na UNE| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

As declarações do ministro Luís Roberto Barroso de que já enfrentou e derrotou o “bolsonarismo” poderiam ser punidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) caso o órgão, que fiscaliza a conduta de magistrados no país, também julgasse integrantes do Supremo Tribunal Federal e aplicasse o mesmo entendimento que vem adotando contra juízes comuns.

Levantamento feito pela Gazeta do Povo nos arquivos do CNJ mostra que, por manifestações políticas mais amenas, vários magistrados têm sido processados, afastados da função e calados nas redes sociais. Foram ao menos sete decisões assim desde outubro do ano passado.

O caso mais notório ocorreu em fevereiro deste ano, quando o órgão afastou o juiz federal Marcelo Bretas, que conduzia processos da Lava Jato no Rio de Janeiro. Uma das acusações da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) é de que ele havia participado, em 2020, de um evento religioso ao lado do então presidente Jair Bolsonaro (PL) e do então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Evangélico, Bretas subiu no palanque, mas não discursou.

Em janeiro, o corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, abriu reclamação disciplinar contra o juiz do Amazonas Luis Carlos Valois e suspendeu suas contas nas redes sociais. Em postagens, ele tinha dito que a Lava Jato é “indissociável da ascensão da direita e da violência política”. Também postou que a ex-presidente Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade, concluindo que o impeachment não teve “pressuposto legal”.

Em dezembro do ano passado, Salomão bloqueou as redes da desembargadora federal de Brasília Maria do Carmo Cardoso por ter elogiado as manifestações que ocorriam diante dos quartéis após a vitória eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Copa a gente vê depois, 99% dos jogadores do Brasil vivem na Europa, o técnico é petista e a Globolixo é de esquerda, nossa Seleção verdadeira está na frente dos quartéis”, escreveu a magistrada.

Em novembro de 2022, o CNJ aplicou a pena de censura à juíza do Paraná Regiane Tonet dos Santos, por postagens, feitas em 2017 e 2018, com críticas ao STF, à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e ao ex-presidente do partido José Dirceu. “Ela tinha o dever de manter a imparcialidade. No momento em que se manifesta contra um partido político que fazia parte da eleição daquele ano, quebra a imparcialidade. E perante a sociedade, é uma formadora de opiniões”, disse a conselheira Salise Sanchotene, notando que Santos também era juíza eleitoral.

No mesmo mês, o CNJ abriu processo disciplinar contra o desembargador trabalhista Luiz Alberto de Vargas por ter postado, em 2021, “fogo nos nazistas” ao publicar foto de Bolsonaro, também chamado por ele de “genocida”. “Penso que o magistrado ultrapassou os limites da sua liberdade de expressão para infringir o disposto no Código de Ética”, disse Salomão.

Em outubro, Salomão suspendeu as contas do desembargador do Rio desembargador Marcelo Buhatem por ter postado, nas redes, que “Lula é convidado de honra do Comando Vermelho” – uma “fake news”, segundo o CNJ. Na mesma sessão, também baniu do Twitter a juíza do Amazonas Rosália Sarmento por publicar dezenas de mensagens declarando e pedindo voto em Lula e com críticas a Bolsonaro.

“A conduta individual do magistrado com conteúdo político-partidário arruína a confiança da sociedade em relação à credibilidade, à legitimidade e à respeitabilidade da atuação da Justiça, atingindo o próprio Estado de Direito que a Constituição objetiva resguardar”, argumentou Salomão.

Constituição diz que juízes não podem se dedicar a atividades político-partidárias

Em todas essas decisões, o CNJ citou diversas normas que impedem a atuação político-partidária de magistrados. Entendeu, assim, que manifestações verbais em eventos públicos ou nas redes sociais caracterizam o ilícito.

A Constituição de 1988 diz, em seu artigo 95, que aos juízes é vedado dedicar-se à atividade político-partidária. O Código de Ética da Magistratura, aprovado pelo próprio CNJ em 2008, diz que “a independência judicial implica que ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária”. Outra resolução do CNJ, de 2019, proíbe juízes de, nas redes sociais, “emitir opinião que demonstre atuação em atividade político-partidária ou manifestar-se em apoio ou crítica públicos a candidato, lideranças políticas ou partidos políticos".

Foi a partir dessa última norma que o CNJ intensificou processos contra magistrados que externassem posições políticas publicamente.

Juristas divergem sobre a possibilidade de impeachment de Barroso

Assim como Barroso, vários outros ministros do STF já criticaram partidos e políticos, mas nunca foram fiscalizados pelo CNJ. Isso ocorre porque eles não estão submetidos ao órgão, pois podem julgar seus atos. Em tese, caberia aos próprios ministros fiscalizar a conduta uns dos outros, seguindo o que diz a legislação, mas isso nunca ocorreu na Corte.

Outra medida mais drástica, já anunciada por parlamentares aliados de Bolsonaro, é a apresentação, no Senado, de um pedido de impeachment contra Barroso. A base é o artigo 39 da Lei do Impeachment, que elenca como crimes de responsabilidade dos ministros do STF “exercer atividade político-partidária” e “proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decoro de suas funções”.

Alguns advogados consultados pela reportagem entendem que não seria o caso.

André Marsigilia, especialista em liberdade de expressão, entende que a Constituição e as demais regras proíbem as atividades formais dentro de um partido ou agremiação política, mas não manifestações verbais em favor ou contra um político, movimento ou ideologia. “Porque isso é resguardado aos magistrados ou qualquer agente público pela Constituição, pela liberdade de expressão garantida pela Constituição”, diz, em referência ao direito fundamental do artigo 5º, inciso IV, segundo o qual “é livre a manifestação do pensamento”.

Por isso, para ele, Barroso tem direito de se manifestar contra Bolsonaro. Como ocupa um cargo de juiz, no entanto, o advogado considera que o ministro, por causa de manifestações como essa, não poderia julgar o ex-presidente, nem pessoas ligadas a ele. Mais do que isso, seus votos e decisões em que eles figuram como partes poderiam ser questionados.

De qualquer modo, diz discordar do entendimento que hoje prevalece no CNJ que pune juízes por suas opiniões políticas. “Tenho divergência, mas para o CNJ, se ele for coerente, a atitude do Barroso seria passível de punição. Não é a minha visão, mas vem sendo a dos conselheiros.”

A professora de direito Janaina Paschoal também considera que não é caso de impeachment.

“Quando me formei, havia mesmo uma vedação absoluta para qualquer tipo de manifestação por parte dos magistrados. Sou dessa época mais conservadora. No entanto, com o passar do tempo, pelo próprio perfil dos ministros do STF, essa realidade se alterou. Eu compreendo a indignação com a fala do ministro, penso que ele deveria ter evitado, mas não vejo elementos suficientes para impeachment. O que me incomoda não é o ministro falar o que sente e não ser punido. O que me incomoda é saber que magistrados à direita vêm sendo aposentados compulsoriamente por expressarem suas opiniões. Defendo a liberdade de expressão e manifestação, inclusive para os magistrados, à direita e à esquerda”, afirmou.

A juíza aposentada Ludmila Lins Grilo, afastada definitivamente do cargo por críticas ao inquérito das fake news do STF, entende que a declaração de Barroso viola a Constituição e a Lei do Impeachment.

“Ao dizer que ‘nós derrotamos a censura, a tortura e o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas’, Barroso está associando uma preferência político-partidária (que ele chamou de "bolsonarismo") a iniquidades como a censura e a tortura, o que significa exercer um juízo depreciativo de mérito sobre uma liderança político-partidária. Isso configura manifestação político-partidária vedada a magistrados pela Constituição”, argumenta.

“No caso de um membro do STF, isso significa ainda, além de uma violação funcional, um crime de responsabilidade, na forma da Lei 1.079/50, a ser julgado pelo Senado, cuja consequência é a perda do cargo (impeachment)”, acrescenta a juíza aposentada.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a quem cabe abrir pedidos de impeachment de ministros, disse que a fala de Barroso “foi muito inadequada, inoportuna e infeliz” e que ele deveria pedir uma retratação. De qualquer modo, não falou sobre impeachment.

“A arena política se resolve com as manifestações políticas e com a ação política dos sujeitos políticos. Um ministro do Supremo Tribunal Federal, evidentemente, deve se ater a seu cumprimento constitucional de julgar aquilo que é demandado. A presença do ministro, num evento de natureza política, com uma fala de natureza política, é algo que reputo infeliz, inadequado e inoportuno. E o que espero é que haja, por parte do ministro Luís Roberto Barroso, uma reflexão em relação a isso e eventualmente uma retratação”.

Outros analistas se manifestaram nas redes considerando que, no mínimo, a frase de Barroso é imprópria.

Pelo Twitter, o juiz Marcelo Bretas afirmou que não seria justa uma competição futebolística na qual um juiz dissesse “nós derrotamos o Corinthians”.

Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público federal e que advoga para vários dos presos pela invasão das sedes dos Poderes no 8 de janeiro junto ao STF, também fez um paralelo com o mundo do futebol.  “‘Nós derrotamos’. Ele é jogador ou torcedor do time que venceu? E depois julga os adversários que participaram dos atos do dia 08/01?”, postou.

Adriano Soares da Costa, advogado e autor do livro “Instituições de Direito Eleitoral”, afirmou que “um Supremo Tribunal Federal assumidamente partidário e político é a destruição do Estado Democrático de Direito e da própria democracia”. “Nunca foi tão evidente o viés político desassombradamente declarado por um ministro da Corte Constitucional. Pior: expressando que o STF (‘nós’) derrotou o presidente da República, candidato à reeleição.”

STF e Barroso tentam explicar declaração

Após a repercussão negativa das declarações de Barroso, o STF divulgou, ainda na manhã desta quinta, uma nota afirmando que o ministro não se referiu à atuação de qualquer instituição. “Como se extrai claramente do contexto da fala do Ministro Barroso, a frase ‘Nós derrotamos a ditadura e o bolsonarismo’ referia-se ao voto popular e não à atuação de qualquer instituição”, diz a nota do STF.

Na verdade, a frase exata do ministro, durante o Congresso da UNE, em Brasília, foi: “Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo, para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas”. Neste momento, ele não falou de “voto popular”.

À tarde, o próprio Barroso se manifestou oficialmente. Afirmou, em nova nota, que ao utilizar a expressão “derrotamos o bolsonarismo”, se referia “ao extremismo golpista e violento que se manifestou no 8 de janeiro e que corresponde a uma minoria”.

“Jamais pretendi ofender os 58 milhões de eleitores do ex-presidente nem criticar uma visão de mundo conservadora e democrática, que é perfeitamente legítima. Tenho o maior respeito por todos os eleitores e por todos os políticos democratas, sejam eles conservadores, liberais ou progressistas”, disse o magistrado.

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