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Jair Bolsonaro e Alexandre de Moraes, no TSE
Jair Bolsonaro e Alexandre de Moraes, no TSE| Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

A pressão ou o desejo de parte da sociedade, da imprensa e da esquerda para prender o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), devido ao caso das joias, não são motivos para uma medida drástica desse tipo. E esse cenário deveria exigir cautela do ministro Alexandre de Moraes. Ao contrário, espera-se que ele apenas examine se os fatos até agora provados se encaixam nos requisitos previstos em lei, e nos entendimentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), para decretar uma eventual prisão preventiva.

Essa é a visão de dois criminalistas consultados pela Gazeta do Povo para saber se há fundamento, hoje, para uma prisão de Bolsonaro. E para os dois, a resposta é negativa.

Para o procurador, ex-deputado e professor Fernando Capez, nenhuma das condições para uma prisão preventiva está presente, com o que se sabe até o momento. “Existe algum risco nesse momento para a ordem pública, a produção da prova e a aplicação da lei penal? Não”, diz ele.

Por razões semelhantes, o advogado e professor Davi Tangerino diz não acreditar numa prisão preventiva no curto prazo. “Não tem nenhum evento contemporâneo, na minha opinião, que justifique uma prisão preventiva. Enquanto não surgir prova de que ele está destruindo provas, coagindo testemunhas ou que vá fugir, não vejo presentes os elementos para a medida”.

Desde a semana passada, cresceram as especulações sobre eventual prisão de Bolsonaro depois que a Polícia Federal realizou operação contra o general Mauro Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens Mauro Cid; e o advogado Frederick Wassef. A investigação, conduzida por Alexandre de Moraes, comprovou com fotos e mensagens de celular que Lourena Cid ofertou e vendeu nos Estados Unidos presentes recebidos por Bolsonaro na Presidência, enquanto Wassef recomprou um Rolex para devolvê-lo ao patrimônio público.

Para a PF e o ministro Alexandre de Moraes, há indícios dos crimes de peculato (desvio de bens públicos) e lavagem de dinheiro (pela tentativa de ocultar as transações com dinheiro em espécie e depósito em conta no exterior). A defesa de Bolsonaro, no entanto, sustenta que as joias podiam ser vendidas porque eram privadas, pois eram itens “personalíssimos”.

Ainda que fosse provada uma ordem de Bolsonaro para vender os presentes e receber o dinheiro, e que os itens fossem considerados bens públicos, a prisão preventiva não se justificaria. A lei e a jurisprudência recente do STF exigem que, para sua decretação, haja risco concreto de que, solto, Bolsonaro poderia cometer novos crimes, atrapalhar a investigação ou fugir do país. Uma decisão nesse sentido, portanto, deve demonstrar atos recentes que apontassem para uma ou mais dessas supostas tentativas.

“A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser fundamentada e motivada em existência concreta de fatos novos e contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”, diz o artigo 312 do Código de Processo Penal, em redação aprovada em 2019, no âmbito do chamado pacote anticrime. Até o momento, nada indica isso, na avaliação dos juristas.

Se a investigação verificar que Bolsonaro está tentando algo do tipo, Alexandre de Moraes ainda teria de demonstrar que outras medidas alternativas (monitoramento eletrônico, bloqueio de bens, proibição de contato com outros investigados, por exemplo) não seriam suficientes para impedir danos à ordem pública, à coleta de provas e a eventual punição.

“A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o artigo 319 deste Código e o não cabimento de substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos previstos no caso concreto, de forma individualizada”, diz o artigo do 282 do CPP, com a nova redação aprovada em 2019 no pacote anticrime.

Para procurador, medidas alternativas devem ser avaliadas antes de prisão

No período recente, algumas prisões preventivas decretadas por Alexandre de Moraes chamaram a atenção da comunidade jurídica, por não demonstrar de forma concreta a necessidade, deixando de atender assim, de forma estrita, as exigências da lei penal.

O caso mais emblemático foi a prisão do ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques, suspeito de dificultar, por meio de reforço na fiscalização das estradas, o trânsito de eleitores do PT, na região Nordeste, no segundo turno das eleições de 2022. O ministro decidiu pela prisão por avaliar que seus ex-subordinados na PRF poderiam combinar versões em depoimentos por “temor reverencial” a Vasques. Para comprovar isso, afirmou que dois ex-policiais “aparentemente faltaram com a verdade”, “indicando a presença de temor reverencial em relação à pessoa de Silvinei Vasques, a comprovar que, em liberdade, teria poder de influenciar no depoimento de eventuais testemunhas”.

A mesma lógica poderia ser aplicada a Bolsonaro, uma vez que, como ex-presidente, ele também poderia ter influência sobre vários ex-auxiliares próximos e de confiança que mantinha no cargo. Mas, para Capez e Tangerino, uma ordem de prisão não pode se basear em suposições ou conjecturas do tipo. “Se a gente fosse se lançar a essa ordem de conjectura, você encontraria uma razão para prender todo mundo. É muito subjetivo”, diz Tangerino.

“Não existe prisão preventiva com base em receio, com base em possibilidade. A prisão preventiva deve ser decretada à luz de fatos concretos e comprovados.  Portanto, é necessário comprovar que houve alguma ação concreta e efetiva. Para constranger e influenciar, seduzir ou pedir alguma coisa para testemunha”, diz Capez, observando que Vasques já está aposentado e não tem mais poder sobre os ex-subordinados. Ainda que estivesse no cargo, seria possível a Moraes, em vez da prisão, decretar o afastamento da função. O mesmo raciocínio se aplica a Bolsonaro, que já deixou a Presidência e não tem mais poder sobre Mauro Cid.

Para alguns observadores, haveria margem para Moraes decretar uma prisão preventiva caso as informações obtidas na quebra de sigilo bancário de Bolsonaro e da ex-primeira-dama Michelle – autorizada nesta semana pelo ministro – apontassem para transações suspeitas, principalmente com remessas de quantias para o exterior. Nesse caso, a PF poderia levantar a suspeita de que ele estivesse tentando esconder o dinheiro de um eventual crime. Ficaria configurada uma possível reiteração delitiva, como lavagem de capitais, por exemplo, e, portanto, um risco concreto à ordem pública.

Ainda assim, nesse caso hipotético, Capez entende que seria possível uma medida alternativa, que a lei manda aplicar, como o bloqueio de bens e contas bancárias. Isso asseguraria que, numa eventual condenação, o dinheiro fosse devolvido aos cofres públicos. “É muito mais eficiente do que decretar a prisão preventiva. E o juiz é obrigado a buscar essa alternativa antes da prisão, que é a última providência, a ultima ratio”, diz o procurador.

Para defesa de Bolsonaro, não houve crime

Outra questão se impõe antes da decretação de prisão preventiva: a demonstração de probabilidade de sucesso de uma eventual acusação. No caso de Bolsonaro, surge a dúvida se haveria realmente crime na venda dos relógios nos Estados Unidos. Isso porque a legislação não é clara quanto à natureza desse tipo de presente recebido de autoridades estrangeiras.

Em 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU), ao fiscalizar os presentes recebidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seus dois primeiros mandatos, decidiu que itens “personalíssimos” poderiam ser incorporados ao patrimônio privado do chefe de Estado. Isso valeria para itens de vestuário, como camisetas e bonés, e perecíveis, como perfumes e vinhos. Não há na decisão nada quanto a relógios valiosos. Na época, o órgão recomendou que o Congresso aprovasse uma lei detalhando que tipo de presente seria incorporado ao patrimônio público e qual poderia ficar no acervo pessoal do presidente da República.

Em 2018, uma portaria da Secretaria-Geral da Presidência da República, que dispõe sobre a política para a gestão de bens históricos e artísticos, definiu que joias, semijoias e bijuterias eram bens “de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo recebedor”. Assim, poderiam, conforme a orientação do TCU, serem levadas pelo presidente de forma particular.

O advogado de Bolsonaro no caso, Paulo da Cunha Bueno, diz que o relógio de Bolsonaro se enquadrava nessa categoria. “Uma vez catalogados como do acervo privado, esses bens poderiam ser alienados [...] Fosse o Bolsonaro ou qualquer assessor que tivesse feito essa venda a mando dele, a repercussão jurídica seria a mesma: o bem pode ser vendido, pois permanece no acervo privado dele até para herança”, disse em entrevista à GloboNews.

O próprio Bolsonaro foi questionado nesta sexta (18) sobre o assunto e disse que havia um “vácuo” nas regras sobre a natureza pública ou privada de presentes recebidos na Presidência, especialmente a partir de 2022, e sugeriu que, na dúvida, a Justiça deveria beneficiá-lo, considerando-o inocente pela suspeita de se apropriar de joias que recebeu da Arábia Saudita.

Em 2021, uma portaria de seu governo revogou a portaria de 2018. Para o ex-presidente, todos os presentes recebidos em 2021 estariam cobertos pela norma anterior. Quanto aos recebidos depois, em 2022, haveria uma dúvida. “Tem que se basear no que está escrito. Até 2021, tudo certo? A partir de 2022, não está definido o que está personalíssimo. Não quer dizer que seja ou não seja. Um relógio, por exemplo... Não está definido”. Perguntado se essa avaliação deveria ficar com a Justiça, Bolsonaro respondeu: “Fica no ar. E em dúvida, tem que verificar o lado, está certo?”, disse, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

Capez afirma que essa questão deverá ser discutida ao longo do processo, e conforme o avanço das investigações.

“Nós não estamos falando de um ato de corrupção, de desvio de dinheiro público. Nós estamos falando de um presente de alto valor, que dentro de conceito ético, deveria ter sido transferido para a propriedade da União. Mas não existe nenhuma lei dizendo que presentes caros são de propriedade da União, existe uma interpretação feita pelo Tribunal de Contas da União. Sabemos que não há crime sem lei anterior que o defina, e o peculato, como desvio, é o crime de apropriar-se o funcionário público de bem público que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio. Para você desviar este bem, tem que ser de propriedade da União. É preciso que se discuta se uma interpretação do TCU torna o bem de propriedade da União ou se ele cria apenas um dever ético”, diz o procurador.

Na investigação sobre o caso, conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a Polícia Federal (PF) imputa a Bolsonaro a suspeita de peculato e lavagem de dinheiro, considerando, de antemão, que as joias deveriam necessariamente ser incorporadas ao patrimônio público.

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