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A reta final antes do recesso parlamentar está sendo marcada pelo agravamento das tensões entre Executivo, Legislativo e Judiciário, que deixaram de ser pano de fundo e passaram a orientar diretamente o que entrou — e o que ficou fora — da pauta do Congresso. O ano não fechou com debates sobre necessárias medidas de austeridade fiscal, mas com um conjunto de votações marcado por reação política, disputa de prerrogativas e reposicionamento institucional.
A Câmara avançou em dois projetos que, embora distintos, dialogam com o clima de afirmação de competências legislativas: o PL da dosimetria, que reduz penas dos condenados do 8 de janeiro, e o PL Antifacção, que após alterações no Senado voltou ao plenário da Câmara para reanálise. Ambos foram tratados como prioridade pela maioria das lideranças num momento em que o Parlamento buscava mostrar controle sobre temas de segurança pública e criminalidade.
Debates econômicos, cujos desfechos podem destravar ou piorar as finanças do país, ficaram em segundo plano. Alguns exemplos são revisões de exceções e gatilhos do arcabouço fiscal e mudanças nos setores elétrico, de seguros e de crédito.
A votação do projeto da dosimetria ocorreu num ambiente em que parlamentares afirmavam que o STF vinha interferindo reiteradamente na execução penal. O avanço rápido do texto foi uma forma de o Congresso ocupar terreno onde o Supremo tem atuado de maneira intensa. Apesar de aprovada na Câmara, a proposta ainda aguarda análise no Senado e corre o risco de ser vetada pelo presidente Lula.
No Senado, o foco político foi a discussão sobre a regulamentação dos pedidos de impeachment de ministros do STF. O texto, que deveria avançar na Comissão de Constituição e Justiça, acabou ficando estacionado. A indefinição só foi quebrada após a reviravolta no Judiciário: o ministro Gilmar Mendes reviu parcialmente a própria decisão que havia dificultado a apresentação desses pedidos. A mudança reduziu a pressão imediata sobre os senadores, mas não eliminou o debate político que se instalou em torno do assunto.
A sequência de atritos — decisões judiciais sensíveis, resistências na aprovação de indicações, divergências sobre orçamento e emendas — empurrou temas econômicos e administrativos para 2026. O Congresso operou em modo de contenção, priorizando votações consideradas de resposta institucional, e não iniciativas de médio e longo prazos.
Nas últimas semanas, líderes da Câmara e do Senado passaram a calibrar a agenda diária conforme a temperatura política. Na prática, projetos vistos como de “defesa” da autoridade do Parlamento ganharam atenção (embora não tenham avançado). Já propostas que dependiam de coordenação com o Executivo perderam fôlego.
Para o cientista político Adriano Cerqueira, crises entre Poderes no fim de semestre costumam gerar dois efeitos simultâneos. Primeiro, “uma paralisia” que interrompe votações de questões estruturais de Estado. Em seguida, a reorganização de forças: “à medida que a oposição se fortalece, uma pauta ruim para o governo tende a ser colocada em votação.”
Cerqueira avalia que o ambiente aponta para um Congresso “mais reativo e menos aderente à agenda do governo” em 2026, impulsionado pelo ano eleitoral.
Ele também destaca o papel do Judiciário: “O STF está hoje atuando de uma forma instável (…) desequilibrou o pacto republicano e está gerando muita instabilidade institucional”.
Parlamentares atuaram em modo defensivo
Entre os parlamentares, há um entendimento de que a tentativa de reação do Congresso foi necessária para reequilibrar a relação entre os poderes. O deputado Luiz Phillips de Orleans e Bragança (PL-SP) afirma que o ambiente forçou uma mudança de postura. “O Congresso passou a operar em modo defensivo”, declarou à Gazeta do Povo.
Segundo ele, debates estruturais perderam espaço, enquanto projetos voltados à proteção das competências parlamentares ganharam força. A anistia aos réus do 8 de janeiro, embora de alto impacto político, ficou “presa no ambiente de tensão”, mas segue como prioridade do campo conservador no próximo ano.
Orleans destaca que decisões judiciais e a pressão do Executivo influenciaram até o Orçamento: “O STF judicializa política, o Planalto tenta ampliar controle, e o Congresso reage. Esse clima contamina tudo”.
Já o deputado Coronel Meira (PL-PE) destacou que a disputa entre Poderes desconfigurou completamente o planejamento legislativo.
“A guerra aberta entre Congresso, STF e Planalto destruiu qualquer possibilidade de o ano terminar com a pauta original minimamente preservada”, diz o deputado.
Meira sustenta que o Executivo priorizou a indicação ao STF enquanto temas fiscais, econômicos e de segurança jurídica ficaram em segundo plano. Ele aponta que “a crise paralisou praticamente toda a agenda estruturante do país”.
Na Câmara, segundo o deputado, dois movimentos ocorreram ao mesmo tempo: aceleração de pautas que reforçam prerrogativas do Legislativo e congelamento de iniciativas que reduziriam gastos, corrigiriam distorções fiscais ou fortaleceriam setores econômicos. Para ele, a anistia do 8 de janeiro se tornou o principal ponto de inflexão - que acabou sendo cedida para o PL da dosimetria.
Meira afirma ainda que o clima institucional afetou diretamente o Orçamento, o qual “passou a ser arma de disputa institucional”.
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Tensões estruturais e expansão do Judiciário
Para o cientista político Elias Tavares, o fim do semestre apenas revelou a lógica política do ano. “Crises entre os Poderes no fim do semestre não paralisam o Congresso, elas expõem a lógica real do sistema político”, declara.
Ele aponta que o Orçamento foi o principal instrumento de afirmação do Legislativo: “O Parlamento reafirmou seu poder sobre as emendas.”
De acordo com Tavares, a decisão recente do ministro Gilmar Mendes - que retirou do Senado o poder de apresentar e votar pedidos de impeachment dos ministros do STF -ampliou o atrito. “Isso irrita o Parlamento num momento em que o Legislativo exige cada centímetro de suas prerrogativas”, explica.
Sobre o Judiciário, Tavares afirma que “passou a legislar em diversos temas (…) moldando o jogo político”. Segundo ele, o Congresso reage reconfigurando votações para não perder espaço.
Por outro lado, o cientista político Rafael Favetti aponta que o cenário atual não configura ruptura, mas competição política típica de pré-eleição. “Em geral não houve crise. Há uma tensão, um afastamento, uma disputa política competitiva pré-eleitoral”, disse.
Para ele, a judicialização não deve arrefecer: “Nossa Constituição é analítica e o acesso à Justiça é amplo: cada vez mais veremos judicialização da política.”
A instabilidade atribuída ao STF pelos especialistas se apoia em três pontos. Primeiro, a expansão da judicialização em temas que historicamente cabem ao Legislativo — drogas, meio ambiente, regras eleitorais e emendas — reforça a percepção de que o Tribunal ampliou seu alcance.
Segundo, o protagonismo assumido após o 8 de janeiro consolidou a ação política do STF, que passou a se ver como "o guardião da ordem democrática", mas criou atrito constante com o Congresso, que vê nessa atuação uma sobreposição de competências.
Por fim, decisões monocráticas de grande impacto, seguidas de recuos rápidos — como no caso das regras para pedidos de impeachment de ministros — alimentam a sensação de insegurança jurídica e impulsionam o Parlamento a reagir em modo defensivo.
Um episódio recente reforça essa percepção de instabilidade e impacto direto na agenda do Congresso: o ministro Alexandre de Moraes anulou a votação da Câmara que havia mantido o mandato da deputada Carla Zambelli e determinou sua perda imediata, contrariando a deliberação dos parlamentares e intensificando as críticas sobre a interferência do Judiciário nas prerrogativas do Legislativo.
O que travou no Congresso
A crise entre os Poderes travou justamente o núcleo da agenda econômica defendida pelo governo Lula para fechar as contas de 2026. Projetos que exigem articulação política fina, concessões recíprocas e coordenação entre Executivo, Câmara e Senado perderam espaço no fim do ano.
Ficaram paralisadas discussões sobre ajustes mais profundos no arcabouço fiscal, revisões de exceções tributárias, medidas de contenção de despesas obrigatórias e propostas de reorganização de gastos que o governo considera essenciais para cumprir metas fiscais no médio prazo. Sem essas votações, o Planalto entra em 2026 com menos instrumentos para equilibrar receitas e despesas, aumentando a dependência de soluções pontuais e de arrecadação extraordinária.
A tensão institucional também afetou a negociação do Orçamento. Disputas com o Congresso sobre a execução de emendas e intervenções do Judiciário ampliaram a desconfiança política, reduziram a margem de manobra do Executivo e enfraqueceram sua capacidade de coordenação. Na prática, o governo perdeu protagonismo na definição da pauta econômica justamente no momento em que precisava consolidar previsibilidade fiscal.
Entre as propostas econômicas que ainda não avançaram, estão:
- Revisões do arcabouço fiscal: temas sensíveis, como exceções e gatilhos, nem chegaram à mesa.
- Projetos setoriais relevantes: como modernização do setor elétrico, marco de seguros e ajustes no mercado de crédito, ficaram sem janela política.
- Tensão no Orçamento: LDO e LOA foram disputadas voto a voto, com embates sobre emendas impositivas e controle da execução. O conflito entre Executivo e Legislativo por liberação de emendas drenou a capacidade de articulação para qualquer outra pauta.
Partidos de centro e direita perceberam que, em ano pré-eleitoral, há retorno imediato em pautas de segurança pública. A pressão da opinião pública contra decisões do STF sobre drogas, regime prisional e solturas amplificou o apelo dos projetos “punitivos”.
Deputados de vários partidos admitem reservadamente que endurecer legislação criminal rende capital político mais rápido do que discutir reformas econômicas que exigem pactos longos e desgastam bases eleitorais.







