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Apesar do ministro Edson Fachin, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ter defendido a elaboração de um código de conduta para dar diretrizes à atuação de magistrados do Supremo, especialistas e juristas acreditam ser pouco provável que o tribunal caminhe efetivamente para um processo de autorregulação. Clamores por autocontenção vindos até de vozes de esquerda tendem a ser ignorados pelos ministros e a iniciativa de Fachin enfrenta resistência interna significativa e tende a permanecer em suspensa diante do cenário político e institucional.
A ideia de um código de conduta é antiga na agenda de Fachin e antecede sua chegada à presidência do Supremo, em setembro. Desde então, ele passou a dialogar com colegas da Corte e com dirigentes de outros tribunais superiores — como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Superior Tribunal Militar (STM) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) — em busca de apoio para tirar o projeto do papel. A inspiração vem do modelo adotado pelo Tribunal Constitucional da Alemanha, que estabelece parâmetros de comportamento institucional.
A ideia foi debatida como uma resposta a polêmicas recentes, como uma viagem do ministro Dias Toffoli com um advogado do Banco Master, investigado por crimes financeiros, e uma decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes que praticamente tornava impossível o impeachment de membros do STF (que foi depois parcialmente revertida). A autocontenção foi defendida até por veículos de imprensa e analistas que tradicionalmente apoiam as decisões do STF.
O gabinete de Fachin tem dito que sempre defenderá a autoridade, a integridade moral e a imparcialidade do Tribunal. Para o constitucionalista André Marsiglia, é improvável, “para não dizer impossível”, que o STF adote um código de conduta. Além disso, segundo ele, há também o risco da iniciativa de Fachin representar um modelo de autorregulação pouco eficaz e potencialmente problemático, permitindo que os ministros definam regras às quais eles mesmos estariam submetidos, com baixo ou com pouco controle externo independente.
“Haveria o risco de o código ser formulado de maneira genérica, com brechas, exceções ou mecanismos de aplicação frágeis, servindo mais para responder a pressões públicas do que para impor limites reais ao comportamento dos magistrados”, afirmou.
Além disso, sem fiscalização por órgãos externos ou participação do Legislativo, o instrumento poderia reforçar a percepção de corporativismo e de concentração excessiva de poder no STF, em vez de fortalecer a transparência, a imparcialidade e a confiança pública no tribunal.
A proposta em estudo prevê diretrizes sobre transparência na participação de ministros em eventos, no recebimento de recursos e nas relações com entidades privadas, tudo com o objetivo de reduzir potenciais conflitos de interesse. A intenção do presidente do STF é ampliar esses princípios também ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que ele igualmente preside, estendendo também o alcance das normas a toda a magistratura.
Apesar disso, o maior obstáculo é de natureza política interna. Para que o código seja aprovado, são necessários ao menos seis votos em sessão administrativa do STF. “Trata-se de um quórum visto por ministros como um ponto sensível e potencialmente conflituoso, além disso, os próprios ministros poderiam determinar os parâmetros para esse código”, destaca o constitucionalista Alessandro Chiarottino.
Segundo o jornal O Globo a avaliação predominante nos corredores da Corte é que o tema deve ser adiado até que haja maior estabilidade institucional, evitando alimentar discursos externos sobre atritos entre o Judiciário e o Congresso Nacional.
Externamente, esse debate tem ganhado força, apesar de uma forma ainda tímida. A Fundação FHC divulgou, no início de outubro, um documento no qual juristas defendem a adoção de um código de conduta para os ministros do STF. A proposta inclui regras sobre imparcialidade, conflitos de interesse, manifestações públicas e um período de quarentena após a saída do cargo. Ainda assim, a resistência permanece forte dentro da própria Corte.
Em junho do ano passado, durante o Fórum Jurídico de Lisboa — evento organizado por uma instituição ligada ao ministro Gilmar Mendes —, Alexandre de Moraes afirmou não enxergar “a mínima necessidade” de um código de conduta específico para os magistrados do Supremo. Em entrevista à Folha de S.Paulo, reforçou que os ministros já estão submetidos às balizas éticas da Constituição, o que tornaria desnecessário um novo instrumento normativo.
Especialistas avaliam que, mesmo que a proposta avance, seus efeitos práticos podem ser limitados. A doutora em Direito Público Clarisse Andrade alerta para a fragilidade do controle externo. Segundo ela, sem mecanismos robustos de fiscalização independente ou maior transparência, um código de conduta voltado para a autorregulação pode ter impacto restrito. “Sem controle externo efetivo, seja por órgãos independentes ou pelo Legislativo, a medida, se for adotada, o que pode ser improvável, tende a ficar aquém do que a sociedade espera”, pondera.
A discussão ocorre em meio a episódios recentes que reacenderam críticas ao comportamento de ministros fora dos autos. A proposta prevê, por exemplo, limites à concessão de entrevistas e à participação em eventos públicos — práticas frequentes de alguns integrantes da Corte, como Gilmar Mendes, sócio do Instituto de Direito Público (IDP), responsável pelo fórum informalmente conhecido como “Gilmarpalooza”, realizado em cidades como Lisboa e Buenos Aires.
Casos específicos intensificaram o debate. Após conceder uma liminar que alterou regras da lei do impeachment, recuando parcialmente mais tarde, Gilmar participou de um evento ao lado do ministro Flávio Dino, para defender publicamente a decisão. Ambos mencionaram o elevado número de pedidos de impeachment apresentados contra ministros no Senado.
Outro episódio sensível envolve a viagem do ministro Dias Toffoli em um jato particular ao lado do advogado Augusto de Arruda Botelho, que posteriormente atuou em um recurso relacionado ao Banco Master, caso sob relatoria de Toffoli e colocado pelo magistrado sob sigilo. A situação aumentou o desgaste interno e externo da Corte. Tanto o advogado quanto o ministro foram procurados pela reportagem para se manifestar, e o espaço segue aberto.
Ainda segundo O Globo, parte dos ministros questiona o momento da iniciativa, especialmente em um cenário em que o Senado discute mudanças na Lei do Impeachment e em que pedidos de afastamento de ministros ganham tração política, sobretudo entre apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Há também a avaliação de que a proposta veio à tona em um contexto desfavorável para a imagem do STF, marcado por episódios recentes envolvendo ministros e pela percepção de que faltou articulação prévia de Fachin com os colegas. “A tendência predominante é de cautela, de adiamento ou abafamento, diante de uma proposta que, embora defendida pelo presidente do STF, encontra resistência suficiente para dificultar qualquer avanço imediato ou que caminhe para uma autorregulação”, pondera Andrade.
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STF concentra poder e esvazia o controle externo
Ao praticamente impedir o impeachment de seus próprios ministros, mesmo com um pequeno sinal de recuo, o STF não apenas expande sua influência institucional, mas também desafia o princípio de autocontenção que deveria orientar qualquer Corte constitucional, avaliam especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo. Apesar de um “aparente recuo” de Gilmar Mendes, (que retirou a limitação para que impeachments sejam propostos apenas pela Procuradoria-Geral da República), analistas avaliam que ainda fica nas mãos do Supremo a estruturação de algo que deveria, obrigatoriamente, ser atribuição do Legislativo.
A decisão monocrática e liminar do ministro, apesar de remodelada na última semana, suspendeu trechos da Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950) e impôs novas regras para o processo de afastamento de ministros do STF.
“Ao decidir e depois modular a decisão que havia blindado ministros restringindo pedidos de impeachment, antes exclusivamente à PGR e agora abrindo um pouco mais o leque, Gilmar age como um legislador informal, definindo limites e diretrizes que o próprio Congresso passa a incorporar”, afirma Clarisse Andrade.
Esses movimentos criariam um paradoxo: o órgão responsável por impor limites ao Executivo e ao Legislativo estaria, ele mesmo, reduzindo os instrumentos formais que poderiam conter abusos internos. “O resultado é um fortalecimento assimétrico da Corte, ele toma uma decisão, recua em partes, mas amplia seu papel político ao mesmo tempo em que diminui sua exposição à responsabilização, tensionando o equilíbrio entre os Poderes previsto na Constituição”, completa.
Para o doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e comentarista político Luiz Augusto Módolo, o Brasil tem o direito de ter uma Suprema Corte que responda por seus atos. “Responder como qualquer um de nós e não uma casta de intocáveis blindados, que tem segurança física vitalícia e agora com quase total irresponsabilidade por suas ações”, alerta.
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Corte flexibiliza limites e redefine seu próprio poder
Segundo constitucionalistas, a autocontenção judicial se manifesta, ou deveria se manifestar, de diversas formas: na recusa a interferir em debates de natureza estritamente política; na rejeição a expandir precedentes em situações não previstas; na deferência ao Legislativo e ao Executivo em temas de formulação de políticas públicas e na renúncia à tentação de definir unilateralmente o alcance de seus próprios poderes.
“No caso do Brasil todos esses limites acabaram flexibilizados ao longo dos últimos anos, gerando um padrão de atuação expansiva”, destaca o constitucionalista Alessandro Chiarottino.
“O Supremo passou a ser árbitro de praticamente tudo: eleição de presidentes de Congresso, implementação de políticas públicas, condução de investigações e das regras que disciplinam sua própria responsabilização. Isso está muito distante de um sinal de autocontenção”, completa o constitucionalista André Marsiglia.
Para eles, um dos pilares da autocontenção seria justamente a revisão, pelo próprio STF, de práticas que concentram poder sem a devida contrapartida institucional — entre elas, decisões monocráticas de grande impacto, como a tomada por Gilmar Mendes, além da adoção de critérios pouco transparentes para escolha de relatores, uso ampliado de inquéritos de poderes excepcionais e a própria blindagem de ministros.
“Vejamos o caso da deputada Carla Zambelli, a Câmara optou por não cassar seu mandato, mas o ministro Alexandre de Moraes determinou a cassação imediata. Qual o papel do Legislativo nesse processo? Não serve para praticamente nada na atual formatação”, segue o constitucionalista.
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A viabilidade para a autocontenção no STF
Os analistas destacam que o ponto central, porém, é a viabilidade dessa autocontenção no tribunal. Eles reconhecem que, embora seja teoricamente possível, a autocontenção depende exclusivamente da vontade interna da Corte — e é justamente isso que eles consideram improvável.
A avaliação predominante é que, tendo acumulado prerrogativas extraordinárias ao longo dos últimos anos, o Supremo não teria incentivos concretos para abdicar espontaneamente delas. “Não existe precedente de um tribunal constitucional que voluntariamente devolveu poderes adquiridos. Em geral, essas retrações acontecem quando há forte pressão política ou risco institucional elevado, e o STF hoje não enfrenta nenhum desses cenários”, afirma Clarisse Almeida.
A dinâmica interna do STF também dificulta qualquer movimento de retração. Juristas afirmam que o colegiado teria se unificado em torno de uma visão “mais assertiva” de sua função institucional, especialmente diante do que intitularam de ameaças políticas que marcaram os últimos anos.
Isso, segundo a leitura de Marsiglia, reduz o espaço para vozes internas que defendam uma volta a parâmetros tradicionais de contenção judicial. “O STF opera hoje sob uma lógica de autodefesa institucional permanente. Nessa lógica, a contenção é percebida como risco, não como virtude”, avalia.
A falta de incentivos externos também é apontada como fator determinante. O Congresso, ainda que discurse contra excessos da Corte, raramente avança de forma consistente em medidas que restabeleçam contrapesos — cenário que, segundo o cientista político Gustavo Alves, reforça a sensação de que não há custos políticos para o STF.
“Já o Executivo, frequentemente beneficiado ou protegido por decisões do tribunal, tampouco demonstra disposição para confrontos institucionais reais. Num ambiente em que ninguém impõe limites, a ideia de autocontenção se torna abstrata”, resume.
Ainda há outro ponto a se analisar: a própria opinião pública, que em anos anteriores apoiou os excessos da Corte sob o argumento de “combater ameaças à democracia”, teria contribuído para a manutenção do atual quadro.
“Ao validar medidas excepcionais como necessárias para enfrentar o que denominaram de situações extremas, parcela significativa do debate público naturalizou a elasticidade das atribuições do tribunal. Agora, ao perceber que a lógica excepcional foi aplicada para proteger os próprios ministros, essa mesma opinião pública começa a questionar o desequilíbrio, mas sem força suficiente para provocar mudança estrutural”, completa Alves.
Para Módolo, é difícil pedir que o STF volte atrás justamente quando atingiu o “ápice de influência”. “Embora desejável para restaurar o equilíbrio entre os Poderes, a autocontenção judicial do STF é vista como improvável no contexto atual”, reforça.
Especialistas consideram que apenas um processo político intenso — que combine pressão institucional coordenada, debate público robusto e disposição do próprio STF para rever práticas — poderia produzir algum grau de retração. “Até o momento, não se veem sinais de que essa convergência esteja em curso e a contenção ou autocontenção seguirá como discurso teórico, não como prática institucional”, conclui.











