O procurador Edilson Mougenot, do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP).| Foto: Edilson Mougenot/Arquivo Pessoal
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Procurador do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), Edilson Mougenot critica a recente decisão da 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no processo do triplex do Guarujá (SP), que condenou o ex-presidente Lula (PT). Em entrevista à Gazeta do Povo, Mougenot afirma que o STF fragiliza o princípio da segurança jurídica ao tornar Moro suspeito usando como argumento as mensagens hackeadas da Lava Jato, obtidas de modo ilícito.

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O procurador afirma que a Justiça brasileira não havia admitido o uso de provas obtidas ilegalmente até então. Para ele, o STF inaugurou uma nova e perigosa interpretação. Para ele, a decisão quebra "todo um paradigma, o princípio de segurança jurídica passa a ser quimera, e o direito algo muitíssimo volátil e mutante", critica.

Na entrevista, o procurador do MP-SP, que é doutor em processo penal pela Universidade Complutense de Madri e fundador e professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais, avalia que a Lava Jato "prestou um serviço à sociedade nos estritos parâmetros legais" e ironiza a decisão da ministra Carmen Lúcia.

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Para Mougenot, há um claro retrocesso no combate à corrupção do país. Ele ainda associa esse retrocesso a uma "crise ética e de valores" que corroem a "chamada civilização contemporânea".

Leia abaixo a entrevista completa, respondida por e-mail à Gazeta do Povo:

Ainda em 2019, o senhor entendia que a perícia das mensagens hackeadas daria legitimidade ao crime dos hackers e, por isso, deixou claro sua discordância acerca da sua utilização. Chegamos em 2021 e a 2.ª Turma considerou o ex-juiz Sergio Moro suspeito no julgamento contra o ex-presidente Lula, com base nas mensagens criminosamente obtidas. Imagino que essa decisão possa abrir precedentes perigosos futuramente. Quais seriam esses impactos e se, com isso, o STF legitimou o crime de hackeamento?

Mougenot: Veja, existe um princípio de direito bastante desprezado no Brasil, que é uma decorrência da própria democracia: o princípio da segurança jurídica. O que ele quer dizer? Ele consiste em afirmar aos cidadãos, com certa margem de "segurança", que o arcabouço constitucional-legal do sistema é respeitado, na medida em que podemos estabelecer parâmetros em nossas condutas, definirmos nosso modo de agir em sociedade, porque sabemos o que é certo ou errado aos olhos da lei e do sistema jurídico, de acordo com uma razoavelmente harmônica interpretação dos tribunais. Assim, jamais se admitiu no direito brasileiro um prestigiamento de "provas ilícitas". A rigor, à luz do que se compreendia até então, o que se tinha era um nada jurídico, porque fruto de "hackeamento" de autoridades constituídas. Com a novel [nova] decisão, quebra-se todo um paradigma, o princípio de segurança jurídica passa a ser quimera, e o direito algo muitíssimo volátil e mutante. Quais seriam os impactos? Não posso elucubrar, porque doravante tudo é possível, até o inimaginável: a partir do momento em que destruímos a referência de certas garantias que havíamos consagrado pela lei e pela tradição – ainda que se as destrua no ato mesmo de invocá-las –, a Constituição Federal torna-se um "tigre de papel", ao sabor sempre ácido do humor impredizível de eventual julgador, que por já não se balizar ao que era um "direito respeitado", fruto de consenso doutrinário e jurisprudencial, traz-nos agora absoluta "insegurança jurídica".

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Quantos aos efeitos práticos da decisão de tornar Moro suspeito, o que podemos esperar? Na prática, as provas contra Lula são descartadas, a Lava Jato é anulada? Lula passa a ser elegível? São tantas análises e opiniões de juristas que tornam confusa essa previsão. O senhor pode nos ajudar a entender esse cenário jurídico e, consequentemente, político?

Mougenot: Qualquer tentativa de dar uma resposta jurídica no atual momento, parece-me admirável exercício de "adivinhacionismo", embora se possa intuir o que esteja acontecendo e, provavelmente, o que acontecerá. Themis, a deusa da Justiça [na mitologia grega], parece aos nossos olhos, deve se cuidar, para não sucumbir de vez tornando-se apenas uma subalterna da política. Se tudo passou a ser possível, e se o absurdo tornou-se até mesmo provável, entramos, então, em uma discussão de “nonsense”, algo esquizofrênica, porque todos os referenciais ou paradigmas do raciocínio lógico se tornaram rotos. É possível, diante de uma mesma dada situação, um mesmo fato, o mesmo julgador, decidir de uma forma hoje, e de forma diametralmente oposta em um futuro breve? Bem, quando acontece essa figura bifronte, bicéfala de judicatura, o tal “princípio da segurança jurídica” resta mesmo apequenado e, por conseguinte, qualquer busca de explicação de desdobramentos processuais baseados na lógica jurídica seriam mais para um ofício de cigana.

O voto da ministra Carmen Lúcia, naturalmente, mudou tudo. Todos os ditos "novos elementos" citados por ela para mudar o voto já eram conhecidos quando ela tinha votado contra a suspeição de Moro. O senhor acha que faltou coerência na argumentação da ministra? A mudança de entendimento não invalidou a própria argumentação?

Mougenot: Abstenho-me de analisar o voto da ministra. Aliás, tenho buscado sempre a explicação das coisas que fazem lógica, pela lógica.

Em uma recente live em seu perfil do Instagram, o senhor cita o dr. Juan Montero Aroca, classifica-o como um dos maiores processualistas penais e diz que o sistema acusatório não se trata disso que vimos no julgamento do STF de terça-feira. Até frisa que não se tem suspeição de um juiz que condenou um réu e essa mesma condenação foi referendada – e com pena até ampliada – em outras diferentes instâncias. A que o senhor atribui essas diferentes visões jurídicas? A imprensa costuma tratar sobre a chamada visão "garantista" de ministros do Supremo. Essa visão diferente de alguns ministros da visão do senhor e de tantos outros juristas se resume a "garantismo" ou "punitivismo"?

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Mougenot: Vamos deixar claro uma coisa: "garantismo" e "punitivismo" é apenas um jogo de palavras. Chego quase ao sorriso, porque teríamos que invocar o Millôr [Fernandes, escritor]: "Democracia é eu mandar em você, ditadura é você mandar em mim". Ora, quem é "garantista", aquele que, para defender um culpado, diz ser o mesmo inocente, ainda que precise inventar um bode expiatório? Cria-se uma culpa, uma espécie de catapora moral para um inocente, para inverter o predicado e o sujeito da oração, fazendo do inocente culpado e do culpado inocente? O jogo de palavras explica isso, sobretudo quando quem o faz detêm o poder, e fica o dito pelo não dito e o quadrado se faz redondo. O que seria o "punitivista", aquele que apenas postula punição do culpado? Manipulou-se semanticamente os vocábulos ensejando a corruptela da significação. Veja, ensino aos meus alunos que há uma diferença notável entre chamar alguém de "garantista" e outro de "punitivista": a expressão "garantista" – embora não garanta nenhum real conteúdo semântico, porque é aberta como um vale retórico ؅– é a designação natural dos seguidores do "garantismo", seja lá o que isso signifique, tanto que orgulhosamente avocada e assumida por eles próprios. Contudo, não há obra alguma que defenda um tal "punitivismo", não existe doutrina alguma de "punitivismo", o que existe é o direito penal, aliás, que está na própria lei. Se "garantismo" soa quase como uma inflamação, uma exacerbação das garantias, que desbordam do senso comum, "punitivismo" é expressão vazia, sem significado, porque inexiste mentor algum de tal bobagem. O que se fez, em realidade, foi etiquetar-se os que querem a aplicação da lei, lançando-lhes um rótulo cuja essência inexiste: "punitivista". Essa expressão revela o lado rancoroso de alguns ditos "garantistas": criaram o labéu [mancha infamante] apenas para "etiquetar e punir" os que pensam diverso. Em resumo, podemos dizer que temos os que aceitam a lei penal aos infratores, e muitos que não a aceitam de modo algum, a não ser que, sob subterfúgios, a utilizam apenas para "punir" seus contrários. Posso dizer que a expressão nasce pela voz do vitupério.

Para o senhor, o sistema acusatório da Justiça brasileira separa bem as funções entre juiz e procurador, embora entenda ser natural que, em alguns momentos, existam imbricamentos entre essas duas partes. O quanto é salutar essa relação entre os acusadores e o juiz em um processo penal [uma das razões para declarar Moro parcial foi seu relacionamento com procuradores da Lava Jato]?

Mougenot: Sejamos fiéis aos vernáculos: não existe concurso público para “acusador”. Existe para membros do Ministério Público (MP), que são promotores de Justiça e procuradores da República. No exercício de suas funções, detêm, através do Estado, em proteção aos interesses da sociedade, o exercício da ação penal pública. Daí, processam, acusam e pedem a condenação, quando é o caso. Contudo, é corriqueiro promotores e procuradores, embora tendo iniciado a ação penal contra alguém, entenderem, por exemplo, não ter restado provada a acusação inicial, e eles próprios postulam, então, a absolvição no cargo. "Quando um promotor está acusando, ele está defendendo o homem e a mulher de bem". Essa é a inteligência da função do Ministério Público. É uma função pública, tanto quanto a do magistrado. Historicamente, as funções se imbricam, a tal ponto que, na Itália e na França, ambos são considerados juízes, podendo alternar as funções de acusar e de julgar várias vezes em suas carreiras. Ambos sujeitam-se à uma mesma "escola da magistratura". A ética que os move é a mesma, não patrocinam interesse privado, porque guiados pelo interesse público. O sistema acusatório precisa ser compreendido com a separação de funções, certamente, mas não como desejada inimizade como parecem querer alguns. Entendendo-se ainda que, em casos especiais, e assim é no contexto internacional de combate ao crime organizado, recomenda-se textual ou implicitamente uma maior aproximação das referidas autoridades públicas, mister quando se tratam de processos referentes a organizações criminosas, que tem peculiaridades muito próprias. Alguém imagina que o membro do MP só possa pedir uma prisão preventiva sem sequer avistar-se e explicar ao magistrado, quando é assegurado ao detentor do mandato privado (o advogado), ele próprio, entrevistar-se diretamente com o juiz? Bem, não entro em discussão de louco, porque seria "bater palma para maluco dançar".

O senhor entende que a relação entre a força-tarefa da Lava Jato e Moro ultrapassou os limites desse imbricamento?

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Mougenot: Não sou o julgador do caso, mas entendo da mesma forma como sempre entenderam os ministros do STF e que depois mudaram de opinião: a Lava Jato prestou um serviço à sociedade nos estritos parâmetros legais. Tenho sido leal ao que sempre compreendi, sobretudo porque as tais "conversas interceptadas" são apenas palitos de fofoca, aquela coisa bizarra que fica no bocarrão daquele que gosta de "monumentar insignificâncias", como diria o falecido poeta Manoel de Barros. Ao longo de anos, dezenas de partícipes, tratando do maior caso de corrupção de que se tem notícia, deveriam ficar quietos eles próprios, sem nada falarem? Pois se alguém quisesse anular a operação poderia, entre resmungos e soluços, dizer: "muito estranho esse silêncio, anulo tudo, porque é incompatível com a natureza humana, logo, ou apagaram a conversa ou combinaram por sinais".

Em sua recente live, o senhor questiona se o chamado Estado democrático de direito que vivemos hoje representa o Brasil que nós queremos. Mais à frente, cita que, ou o país se reinaugura moralmente e eticamente e constrói o futuro que pensamos para nossos filhos, ou vamos entregar tudo do jeito que está acontecendo. Para explicar esses últimos reveses à Lava Jato e, por que não, ao combate à corrupção, a que o senhor atribui isso? Há uma inversão dos valores morais e éticos da nossa sociedade, da Justiça, dos nossos legisladores e até dos governantes?

Mougenot: Para ser absolutamente sincero, devo dizer: não sou saudosista, mas existe uma crise ética e de valores corroendo a chamada civilização contemporânea. Não sei se foi a paulatina aceitação do consumo de drogas, quase reduzindo a "civilização a pó", não sei se foi a constante desilusão com as propostas de salvação da humanidade e que terminaram em hecatombes. O que sei é que, mais do que a expressão de [Zygmunt] Bauman [sociólogo polonês] de que estamos em uma "sociedade líquida", vejo-a como de plástico. A ideia é algo análoga, porque enxergamos uma sociedade de valores resvaladiços, para ele que se escoam, para mim que se quebrantam. De qualquer forma, está tudo "descartável", e sabemos que os valores imateriais, os valores de dignidade, são valores que, embora impalpáveis, reclamam uma solidez de pensamento, convicção e postura, incompatíveis com o descarte. Não sei objetivamente a que culpar, talvez seja o preço natural que pagamos pelo só fato do crescimento da família humana: maior o número de membros, maior o de problemas, afetando a todos. Portanto, a crise é mundial, ainda que aqui seja aparentemente muito mais agressiva.

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Ainda na sua live, o senhor demonstrou a preocupação de que a suspeição de um juiz pode levar à descrença do sistema Judiciário. Quanto essa efervescência do sentimento de descrença do Judiciário é ruim para a nossa própria democracia?

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Mougenot: Bem, durante muitos anos, a classe política teve, sem concorrência, o olhar desconfiado da população. Assim, o Executivo e o Legislativo disputavam o título que ninguém queria: qual o mais desacreditado Poder? Parece que o risco é se querer jogar um labéu [mancha] sobre o Judiciário, buscando fazê-lo entrar a força nessa dança. Ou seja, em vez de melhorar o que estava ruim, o risco é pelo exemplo errôneo que se dá, a meu ver, de arruinar um conceito que estava bom.

Chamou a atenção recentemente uma repórtagem da BBC News Brasil que informa que a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] adotou uma medida inédita contra o Brasil após identificar sinais de retrocesso no combate à corrupção: a de montar um grupo para monitorar o Brasil nessa pauta [o Brasil quer entrar na OCDE e, para isso, precisa cumprir as regras da instituição]. A pergunta aqui é: concorda que existam retrocessos nessa agenda?

Mougenot: Absolutamente concordo. Está claro o retrocesso no combate ao crime no Brasil, seja pelo enfraquecimento constante das leis penais, seja pelo advento de decisões mais e mais permissivas. Em 2000, estive com Mark Pieth, que era o jurista consultor da OCDE, na Basileia [Suíça]. Passei a compreender e respeitar o trabalho sério que a OCDE desenvolvia e desenvolve desde então. Assim, lamento o olhar de desconfiança que se lança sobre o país, mas talvez não seja uma desconfiança gratuita.

Em conversas com membros do governo e do Legislativo para repercutir essa leitura de retrocesso no combate à corrupção da OCDE, ouvi de ambos os lados que, se há falhas, é dos Três Poderes: do governo federal, do Congresso e do Judiciário. O senhor concorda com essa visão de que exista corresponsabilidade entre os poderes pelo arrefecimento da agenda anticorrupção?

Mougenot: O que acredito mesmo é que os poderes em Brasília se configurem em uma espécie de "geleia": há muito mais entrosamento, discussão, congraçamento, dos Três Poderes, do que pode sonhar nossa vã filosofia. Mas, pode ser que isso seja apenas uma crença, embora "eu acredite em bruxas".

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É sintomático ler e ouvir críticas acerca de retrocessos ao combate à corrupção, sobretudo por sabermos que a Presidência da República é chefiada por Jair Bolsonaro, que foi eleito na esteira dessa agenda e recebeu os votos antipetistas. O senhor entende que esse governo abandonou a agenda de enfrentamento à corrupção?

Mougenot: Sempre existiu uma distância bastante notável entre a campanha e o governo. Não me dou a analisar atos particularizados, mas, quando sobrepomos muitas vezes a imagem de um candidato com a do governante, ficamos com uma espécie de ilusão de ótica: serão os dois, exatamente, uma só e mesma pessoa?! Obteve-se a reforma da Previdência, provocou-se um golpe na expectativa de quantos trabalhadores, agora fadados a uma "aposentadoria tardia", mas note-se, tudo se legitimava e tudo se aceitava em nome de nossa economia e por um predicado inquestionável: promoveremos o combate à corrupção e toda sangria dos cofres públicos deve ser contida. Parece que algo mudou. Tem gente que irá buscar a sorte aos búzios. Outros, explicarão o azar pela confluência dos astros. Eu, cidadão, eleitor, trabalhador e pagador de impostos, questiono: o que estão fazendo com o nosso país? Minha bala verbal não tem endereço certo, porque estamos sob ataque tão intenso que, para isso, seria necessária uma bateria de canhões verbais, tantos são hoje, aparentemente, os inimigos da pátria.

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