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Alexandre de Moraes
Procuradora-geral interina questionou a legalidade da decisão de Toffoli que permitiu a Moraes atuar como assistente de acusação.| Foto: STF

A decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, de admitir o colega Alexandre de Moraes e sua família como assistentes de acusação na investigação sobre a confusão ocorrida em julho, no aeroporto de Roma, contraria o Código de Processo Penal e a jurisprudência do próprio Supremo.

Essa é a resposta de juízes, procuradores e advogados consultados pela reportagem para esclarecer a questão. Todos disseram que a assistência de acusação só poderia ser admitida em uma fase seguinte do caso, ou seja, no curso de uma ação penal.

Para isso, é necessário que, antes, o Ministério Público acuse formalmente os investigados numa denúncia, se considerar que de fato houve uma agressão, que ela possa ser enquadrada como crime, e que haja provas mínimas que permitam atribuir o delito aos suspeitos.

“Em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal, ou, na falta, qualquer das pessoas mencionadas no art. 31”, diz o artigo 268 do Código de Processo Penal (a última expressão refere-se a parentes da vítima).

O assistente de acusação é um papel reservado à vítima num processo criminal. Sua principal função é buscar a punição de seu agressor caso o Ministério Público – a quem cabe, primordialmente, buscar a condenação perante a Justiça – não fizer nada para isso na ação.

Por isso, nesse papel, ele pode recorrer de uma absolvição caso o MP não tente revertê-la. Antes disso, também pode, segundo o Código de Processo Penal, propor a análise de documentos ou depoimentos, requerer perguntas às testemunhas, fazer acréscimos à denúncia inicial, participar do debate no tribunal e apresentar recursos contra decisões.

Para alguns membros do Ministério Público e da magistratura, que preferiram não se identificar, a decisão de Toffoli foi recebida com estranhamento. Segundo eles, Moraes só poderia ser um assistente de acusação se a lei fosse mudada. Caso contrário a decisão de Toffoli pode ser interpretada como a criação de uma nova lei, o que não deveria ser permitido.

Uma juíza aposentada ouvida pela reportagem disse que a admissão de Moraes como assistente de acusação causou estranhamento porque o inquérito é uma investigação prévia, administrativa, que em tese, pode nem chegar a uma denúncia. Segundo ela, mesmo que o caso apresente indícios, a lei que determina como ocorrem os processos judiciais não prevê a participação de um assistente de acusação nesse momento específico.

Nesta segunda-feira (30), a Procuradoria-Geral da República (PGR), que representa do Ministério Público perante o STF, recorreu da decisão de Toffoli. O órgão argumentou que a admissão de Moraes como assistente de acusação significaria uma usurpação do papel do Ministério Público, a quem cabe propor a abertura de uma ação penal pública.

“Admitir a ‘assistência’ na fase inquisitorial, como feito pelo eminente ministro relator na decisão ora agravada, pode levar à equívoca conclusão de representar tentativa manifestamente inconstitucional, em violação frontal ao art. 129, inciso I, da Constituição Federal, de dar legitimidade às supostas vítimas para se substituírem ao Ministério Público, ainda que o promotor natural venha eventualmente a promover o arquivamento das peças de informação”, escreveu a procuradora-geral da República interina, Elizeta Maria de Paiva Ramos, no recurso a Toffoli.

Se a Procuradoria-Geral da República, por exemplo, pedir o arquivamento da investigação, por não ver crimes ou por falta de provas, poderia Moraes e sua família recorrer para manter o inquérito aberto contra a família do empresário Roberto Mantovani?

Para o próprio Alexandre de Moraes, isso não poderia ocorrer. Em 2020, ele decidiu que não cabe recurso contra decisão de um ministro que, acolhendo um pedido de arquivamento da Procuradoria-Geral da República, encerra a investigação.

No caso analisado, um cidadão havia recorrido contra a decisão da Procuradoria-Geral da República de arquivar uma notícia-crime que ele mesmo apresentou contra o então presidente, Jair Bolsonaro, por suposto cometimento de crime de causar epidemia e de fazer apologia ao crime, pelo fato de ter criado aglomerações em passeios de moto em Brasília.

“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é consolidada no sentido de que é irrecorrível a decisão judicial que, acolhendo parecer do Ministério Público no sentido de que não há elementos mínimos de prova de ocorrência dos crimes noticiados, determina arquivamento de notícia-crime”, afirmou Moraes na época.

Na prática, o entendimento é que nem uma suposta vítima de um crime pode recorrer do arquivamento da investigação se isso for pedido pelo Ministério Público e aceito pelo juiz. Se, no entanto, já estivesse aberta uma ação penal – deflagrada pelo recebimento de uma denúncia do Ministério Público, o que pressupõe a existência de indícios de que de fato ocorreu um crime – aí sim a vítima, na condição de assistente de acusação, poderia recorrer da absolvição.

Em seu recurso contra a decisão de Toffoli, a Procuradoria-Geral da República afirmou que permitir a Moraes atuar como assistente de acusação, sem que exista nem sequer denúncia, é um “privilégio incompatível com o princípio republicano, da igualdade, da legalidade e da própria democracia”.

“Não se tem notícia de precedente de admissão de assistência à acusação na fase inquisitorial. Tal privilégio jamais foi admitido para quaisquer das autoridades acima elencadas, nem mesmo para o Presidente da República”, disse, ao mencionar outros detentores de foro privilegiado no STF, como parlamentares, ministros de Estado e chefes dos Poderes.

O órgão ainda citou obra doutrinária do procurador Douglas Fischer e do advogado Eugênio Pacelli, ambos reconhecidos criminalistas, segundo a qual cabe somente à polícia “o juízo de conveniência e de oportunidade acerca da contribuição” de vítimas e investigados para a apuração de um crime. Embora uma suposta vítima tenha o direito de pedir diligências à polícia para elucidar melhor como foi agredida, a decisão cabe ao delegado na investigação.

Para alguns advogados, no entanto, a suposta vítima de um crime pode não apenas pedir ao delegado alguma medida para esclarecer o que ocorreu, mas ao próprio juiz do caso.

“A vítima pode requerer diligências ao juiz e se ele deferir, vai mandar a polícia executar. O artigo 311 do Código de Processo Penal diz que a vítima pode pedir até a prisão preventiva do investigado”, afirma o delegado aposentado, professor e hoje advogado Silvio Maciel. Segundo ele, medidas como quebra de sigilos, busca e apreensão podem ser pedidas pela suposta vítima, cabendo ao juiz consultar o Ministério Público para tomar sua decisão.

“Os interesses da vítima são cada vez mais respeitados no processo. Não podemos tratar como alguém estranho ao processo penal. Ela tem que ser participativa”, acrescenta. “Vamos supor que o ministro Dias Toffoli indeferisse o pedido de Alexandre de Moraes como assistente de acusação e, no entanto, permitisse que ele requeresse qualquer diligência que entendesse necessária, tanto ao delegado quanto ao juiz. Isso não mudaria nada. É uma questão terminológica”, afirmou.

O advogado e doutor em direito penal Matheus Herren Falivene entende, como diz a lei, que não cabe admitir assistente de acusação na fase de inquérito. Mas para ele, nada impede que a vítima acompanhe a investigação. “Mas ele não pode ser chamado propriamente de ‘assistente de acusação’”. “Na fase de investigação a vítima pode apenas acompanhá-la e sugerir provas ao delegado de polícia”, afirma.

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