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Votos de três dos cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que tornaram réu o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras sete pessoas por um suposto golpe, defenderam uma tese jurídica de que a multidão que praticou atos de vandalismo no dia 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes estava armada e disposta a dar um golpe. Embora a letra fria da lei tenha amparo teórico na Constituição, na prática os processos descrevem o "armamento" como facas, porretes, barras de ferro, estilingues e bolas de gude. Também falam de pessoas que poderiam ter acesso a armas de fogo - embora nenhuma tenha sido apreendida pelas forças policiais.
"Pouco importa se a pessoa tinha ou não uma arma de fogo ou uma arma branca, o que importa para fins de debates da classificação jurídica é que o grupo era armado", disse Flávio Dino em seu voto.
Ele se baseou no artigo 5° da Constituição, que classifica como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados contra a ordem democrática. Isso fundamentaria, no raciocínio dos ministros, a sentença de 14 anos de prisão dada a Débora Rodrigues, por escrever com batom em uma estátua do STF.
As defesas dos réus argumentam que no mundo real não é possível derrubar um governo de forma violenta com porretes, facas e bolas de gude. Seriam necessárias, no mínimo, armas de fogo e até mesmo a participação das Forças Armadas ou parte delas.
Em outro trecho que causou polêmica na avaliação de especialistas, Dino disse que entre os manifestantes estariam muitos policiais ou membros das Forças Armadas e que por consequência, estariam armados.
“Lembro que, muitos dos participantes eram policiais e membros das Forças Armadas e estes, não há dúvida, estes só andam armados. Eu não conheço um que não ande armado, sejam os da ativa, sejam os já reformados. Todos andam armados, alguns que são mais apaixonados pelas suas armas do que pelos seus cônjuges, dormem com as armas debaixo do travesseiro, dormem com as armas na cama, dormem com as armas ao lado da mesa de cabeceira. Transportam para onde vão”, completou o ministro.
Dino também disse que "golpe de Estado mata", argumentando que mesmo que nenhuma morte tenha ocorrido em 8/1, isso certamente aconteceria posteriormente, se o suposto golpe fosse consumado. Os ministros do STF basearam suas argumentações dadas no julgamento desta semana na suposição de que Bolsonaro pretendia implantar uma nova ditadura no país.
Segundo o criminalista Márcio Nunes, a fala de Dino pode ser conectada à previsão constitucional que criminaliza grupos armados que atentem contra a democracia, mas como não houve a apreensão nem a utilização de armas para tais fins, essa tese não se sustenta.
O especialista diz que quando a Constituição Federal de 1988 prevê a criminalização de grupos armados que atentem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito, não utiliza exatamente esses termos no sentido penal típico. Mas sim como uma norma programática e de proteção institucional da democracia. “O trecho da Constituição Federal diz que constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”, descreve.
André Marsiglia analisa a fala do ministro como um ato subjetivo. “A fala de Dino me parece subjetiva e inconsistente, pois mesmo pessoas que reconhecidamente não estavam armadas sofreram a imputação de crime de organização criminosa armada, como Bolsonaro e a Débora, que explicitamente não estavam armados”, completou.
Para o advogado, especialista em segurança pública, Alex Erno Breunig, coronel reformado da Polícia Militar, em muitos crimes o uso de arma é uma agravante, que pode aumentar a pena, mas presumir que o cidadão está armado, por ser policial ou possuir porte de arma, pode ser chamado de “temeridade”.
“Na verdade todo policial ter porte de arma não quer dizer que ande armado em toda e qualquer situação. Logo, havia pessoas com porte de arma no local, muitos dos que estavam no local foram presos em flagrante, sem nenhuma apreensão de arma, não houve nenhuma imagem de qualquer pessoa armada, não houve nenhum disparo, portanto, obrigatório presumir que ninguém estava armado no local”, alerta.
Para o advogado e coronel da PM, a inocência é uma presunção prevista pela lei e o cometimento de crime precisa ser provado, o que segundo ele, não foi.
Para Márcio Nunes, o relato de apreensão de facas e bolas de gude, parece algo inconcebível a quem pretendia dar um golpe de Estado. “Claro que não se pode desprezar a utilização de armas, sejam elas improvisadas ou não, mas me parece inconcebível que um grupo pretendia dar um golpe de Estado utilizando bolas de gude. Não me parece crível”, avalia.
Especialistas avaliam que atos não tinham intenção de golpe
Os ministros também reforçaram a tese da utilização de “armas” em atos preparatórios ao 8 de janeiro. Em um relatório enviado ao STF que consta na denúncia contra Débora Rodrigues dos Santos, condenada a 14 anos por usar um batom para pichar a estátua da Justiça em frente ao STF consta que, “em 25/12/2022, verificou-se que manifestantes tentaram se aproximar da Praça dos Três Poderes e, durante abordagem policial, foram constatadas a posse de rádios de transmissão, bolas de gudes e arma branca (faca)”.
Em teoria, as bolas de gude poderiam ser arremessadas contra policiais ou jogadas no chão para dificultar a movimentação de policiais a cavalo. Contudo, segundo analistas de segurança, uma multidão descontrolada, mesmo desarmada, representa grande risco para agentes de segurança que estejam no local, mas não para o governo enquanto instituição.
Os especialistas ouvidos pela reportagem contestam as alegações sobre a utilização de armas e dizem acreditar que os atos do 8/1 foram um protesto ao qual se perdeu a mão, mas sem a intenção de dar um golpe de Estado.
“Não vejo no material apreendido nada que indique estarem fortemente armados. Os instrumentos: tacos, barras ou estilingues podem ser usados como armas, mas não são armas. Não considero ter havido no dia oito nenhum ato que caracterize violência diferente da ocorrida em outras tantas manifestações do país”, alerta André Marsiglia.
Na análise do advogado Luiz Augusto Módolo, o movimento em nada se aproxima a uma tentativa de golpe de Estado, principalmente à mão armada. “Era um domingo de recesso com todas as autoridades fora. Cada um estava num canto do mundo. Nenhum deles foi sequer remotamente ameaçado. Era crime impossível [golpe de Estado], não tinha como dar um golpe. Nenhum manifestante recebeu ordem de oficial algum das Forças Armadas”, alerta. Ele lembra ainda que Lula não estava em Brasília na data. O presidente estava em viagem ao interior de São Paulo.
No voto de Alexandre de Moraes, relator da denúncia contra o chamado Núcleo 1, que inclui Bolsonaro, o ministro afirma, em mais de um ponto, que houve violência e forte ameaça contra as forças policiais de maneira orquestrada na tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito restringindo o exercício dos poderes constitucionais.
O ministro afirmou ainda que, por meio de violência, se tentou depor o governo democraticamente eleito e formalmente constituído e concordou com a Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a existência de uma organização criminosa armada, com “materialidade gravíssima”.
Em uma de suas justificativas, Moraes disse que seis dos oito advogados que representam os réus na ação penal reconheceram a gravidade dos fatos ocorridos no 8/1. “Não foi um passeio no parque. Ninguém lá estava passeando porque tudo estava bloqueado, romperam barreiras policiais, algumas foram abertas, aparentemente. Vários policiais foram agredidos, uma PM teve o capacete arrebentado com uma barra de ferro”, disse.
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Moraes diz que envolvidos em 8/1 não eram velhinhas com bíblia nem mulheres com batom
Alexandre de Moraes disse, em seu voto, que o ser humano tem uma tendência de esquecer fatos ruins e alegou não se trata de uma narrativa sobre “velinhas com bíblias na mão” ou mulheres com batom para pintar uma estátua. “Há materialidade desses crimes. Materialidade, violência ou grave ameaça (...) houve gravíssima violência. Destruição de processos sigilosos físicos, servidores feridos gravemente. É um absurdo pessoas dizerem que não houve violência, que não houve agressão e consequentemente não houve materialidade”.
Ele exibiu um vídeo que mostrava cenas de vandalismo e o depoimento de uma policial que foi golpeada na cabeça por manifestantes.
O ministro disse que sua tese foi corroborada por mais de 570 réus do 8/1, que teriam confessado que queriam intervenção militar, um golpe de Estado, e avaliou que houve atos violentos em Brasília antecedendo o 8/1. Moraes lembrou do 12 de dezembro, data de protestos no dia da diplomação do presidente, à época eleito, Luiz Inácio Lula da Silva e em 24 de dezembro, quando foi identificado um explosivo em um caminhão de combustíveis próximo ao aeroporto de Brasília. “Se isso não é violência, o que seria? Caminhão-bomba. Uma guerra campal (...) tentativa de golpe de Estado violentíssimo, destruição do patrimônio público, dano qualificado, violência selvagem”.
O ex-ministro da Justiça do governo Lula, agora ministro do STF e defensor de políticas de desarmamento, Flávio Dino afirmou que houve a apreensão de armas em vários momentos desde os acampamentos e comparou o que foi utilizado no 8 de janeiro às armas utilizadas na invasão ao Capitólio, nos Estados Unidos, dois anos antes.
Segundo ele, relatório das forças de segurança americanas reforçaram que nos EUA foram apreendidas armas caracterizadas como: de fogo, sprays, armas de choque, armas brancas incluindo espada, machados e facas e armas improvisadas “Então é esse contexto de armas que estamos tratando aqui, que seja do 6 de janeiro no Capitólio, e que esteve presente em vários momentos [no Brasil]”.
A ministra Cármen Lúcia descreveu em seu voto que não se pode dizer que o 8/1 foi um ato sem violência e armas e que não se pode chamar de algo ocasional, nem “uma festinha de fim de tarde na qual se utilizou pedras e paus” para manifestar.
“Impossível pensar que não tenha sido planejado e provocado porque, por exemplo, para quebrar o audiovisual no plenário do Supremo, tem que ter uma altura que nenhuma escada normal chega lá. Se entrou com armas suficientes para chegar até lá e quebrar tudo, alguém planejou, alguém tentou, alguém executou”.
O advogado Luiz Augusto Módolo avalia, no entanto, que o 8/1 foi debelado no mesmo dia sem disparar uma arma de fogo e não tinha nenhuma alta autoridade ameaçada. “Uma mulher [Débora], que até onde sabemos não recebeu instruções de ninguém, que chegou em 7/1, foi tratada como parte do golpe (...) O mendigo, a pessoa que protestava pacificamente num quartel, quem pichou estátua, quem se abrigou da confusão nos prédios e quem depredou a sede do STF foi toda tratada igual. Só não foi tratado igual o general que deu água aos invasores do prédio, que sequer foi investigado, e os fotógrafos que ensaiaram fotos da depredação no interior do Palácio [do Planalto]”, completa.
Outros países tiveram tentativas ou golpes armados que resultaram em mortes violentas e mudança de regime
Enquanto o Brasil discute os atos de 8/1, diversas tentativas e golpes de Estado ocorreram pelo mundo. A diferença é que nessas ações houve mortes, violência armada comprovada e em alguns casos mudança de regime. Destacam-se ações em Bangladesh, República Democrática do Congo e Sudão.
Em agosto de 2024, em Bangladesh, uma série de manifestações que foram reprimidas de forma violenta pelo governo resultaram em pelo menos 300 mortes e na renúncia da primeira-ministra Sheikh Hasina, que fugiu para a Índia. A onda de protestos foi iniciada por uma polêmica retomada do sistema de cotas em cargos públicos, que gerou indignação entre estudantes e jovens.
O país enfrentou manifestações massivas e extremamente violentas. A crise foi potencializada pelo descontentamento com problemas econômicos, como inflação elevada, desemprego crescente e queda nas reservas internacionais. As manifestações, que resultaram em centenas de mortes, tornaram-se o maior desafio político ao governo local.
Outro exemplo ocorreu na madrugada de 19 de maio de 2024, na República Democrática do Congo, com uma tentativa de golpe de Estado. Grupos fortemente armados e vestidos em uniformes militares atacaram o Palais de la Nation e a residência do ministro da Economia, Vital Kamerhe, desencadeando confrontos intensos na capital, Kinshasa. Vídeos atribuídos ao incidente na época mostravam os atacantes armados com fuzis de assalto. Os golpistas exibiam bandeiras do Zaire (nome antigo do país) e pediam a mudança de regime. Pelo menos 50 pessoas foram presas, incluindo três cidadãos dos Estados Unidos, enquanto o líder da operação foi morto durante a ação.
Uma crise política no governo do presidente Félix Tshisekedi se instaurou, coincidindo com a disputa pelo comando da Assembleia Nacional. O exército congolês foi acionado para restaurar a ordem. O episódio deixou ao menos seis mortos, incluindo dois policiais e quatro insurgentes, além de feridos em Brazzaville, na vizinha República do Congo, mas o governo não caiu. Essa crise não está relacionada à guerra no leste do país contra rebeldes apoiados por Ruanda.
Outro exemplo vem do Sudão, onde um governo civil foi derrubado em outubro de 2021 por uma união de membros do Exército e uma milícia. O general Abdel Fattah al-Burhan, do Exército, assumiu a presidência, mas começo a se desentender com seu ex-aliado, o general Mohamed Hamdan Dagalo ("Hemedti"), líder da mílícia RSF. O golpe se transformou em guerra civil em 2023 e deixou mais de 150 mil mortos. Também provocou o deslocamento de cerca de 12 milhões de pessoas.
Neste mês os combates se intensificaram quando o Exército começou uma campanha para retomar a capital Khartoum, que estava nas mãos da milícia. O general Burhan anunciou na quarta-feira (26) a retomada da cidade.







