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Luciane Farias durante uma de suas visitas à Brasília
Luciane Farias durante uma de suas visitas à Brasília| Foto: Reprodução Instagram Luciane Farias

A entrada no Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) de duas mulheres que receberam pagamentos do Comando Vermelho no Amazonas reacendeu o debate sobre os vínculos entre facções criminosas e Organizações Não-Governamentais (ONGs) para defesa e intermediação de seus interesses com governos municipais, estaduais e, até mesmo, com o governo federal e o Judiciário.

Em março e maio deste ano, Luciane Barbosa de Farias, conhecida como "a dama do tráfico amazonense", e a ex-deputada federal Janira Rocha (PSOL-RJ) participaram de duas reuniões no Palácio da Justiça em prol dos direitos humanos dos presidiários, pauta defendida pela ONG Associação Instituto Liberdade do Amazonas (ILA), da qual Luciane é presidente. Segundo a Polícia Civil do Amazonas, a ONG atua em prol de detentos ligados ao Comando Vermelho no estado e é financiada com dinheiro do tráfico de drogas.

“Esse se tornou um campo nebuloso nas relações entre o governo e a sociedade”, afirma Fabrício Rebelo, jurista e responsável Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes). Ele explica que as ONGs são entidades essencialmente privadas com pouco ou nenhum acompanhamento governamental, o que permite que qualquer setor tenha interlocução com o Estado por meio delas, inclusive o crime.

Além disso, as ONGs não são reguladas ou fiscalizadas, o que faz com que possam servir de camuflagem para os mais diversos interesses, incluindo aqueles que beneficiam atividades criminosas. Rebelo afirma que as ONGs vinculadas ao crime, em geral, se valem do apelo à defesa dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana – justamente o objetivo das reuniões de Luciane com o Ministério da Justiça.

Reuniões para discutir os direitos humanos dos presidiários no Amazonas

Após a divulgação de suas reuniões pela imprensa, Luciane afirmou que tinha apenas o intuito de contribuir com o plano nacional de melhorias à população carcerária, que está sendo elaborado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Para tanto, ela se encontrou no dia 19 de março, com Elias Vaz, que é secretário nacional de Assuntos Legislativos do ministério comandado por Flávio Dino (PSB).

Dois meses depois, em 2 de maio, ela se reuniu com Rafael Velasco Brandani, titular da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). Durante essa reunião, Luciane apresentou relatos de visitantes gestantes que alegaram terem ficado com problemas de saúde após serem submetidas a escaneamento corporal em presídios. A área técnica da Senappen solicitou parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que descartou haver quaisquer riscos para as gestantes.

A ONG também teria solicitado inspeções em presídios de Manaus, mas o Ministério da Justiça não deu andamento a essas solicitações, pois não cabe à Senappen liberar o acesso a presídios estaduais. Uma postagem no perfil de Instagram da ONG Associação Instituto Liberdade do Amazonas lista cinco reivindicações apresentadas pela ONG à secretaria. “É necessário uma resolução ou portaria pelo Senappen para o Estado do Amazonas sobre essas alterações caso seja deferido (sic) algum dos itens”, diz a publicação.

Luciane é casada com Clemilson dos Santos Farias, o "Tio Patinhas", que era o número um na lista de procurados pelo governo do Amazonas até ser preso em dezembro do ano passado. Eles são casados há 11 anos e foram condenados em segunda instância por lavagem de dinheiro, associação para o tráfico e organização criminosa. Ela cumpre o recurso à sentença em liberdade.

ONG e advogada receberam transferências do contador do Comando Vermelho no Amazonas

Em ambos os encontros, Luciane esteve acompanhada pela advogada e ex-deputada Janira Rocha. Segundo informações da Polícia Civil do Amazonas, tanto a ONG quanto Janira receberam depósitos no primeiro semestre deste ano do tesoureiro do Comando Vermelho no Amazonas, Alexsandro Barbosa Fonseca.

Os registros apontam que as despesas da ONG em fevereiro totalizaram R$ 22,5 mil – do que se subentende que a organização criminosa se encarregava de pagar as despesas do instituto. No dia 21 de fevereiro, Fonseca teria feito duas transferências para a entidade, uma no valor de R$ 10 mil e uma segunda de R$ 12.562,00.

Para Janira Rocha, foram identificadas três transferências no valor total de R$ 23,6 mil. O repasse dos recursos foi realizado com poucos dias de antecedência à primeira reunião no Ministério da Justiça, em 19 de março.

Política, advogada e ativista do feminismo e das causas carcerárias, Janira foi companheira de partido de Elias Vaz – ele foi do PSOL até 2018. Ambos participavam da mesma corrente interna, chamada Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL).

Na verdade, foi Janira quem convidou Luciana Barbosa Farias para duas reuniões no Ministério da Justiça. Inclusive, seu nome é o único que consta nas agendas dos secretários. .

Leonardo Sant´Anna, especialista em Segurança Pública, afirma que, em geral, representantes de ONGs não geram desconfiança quando se apresentam a órgãos governamentais. “As ONGs têm espaço e lugar de fala para que possam levar as suas demandas e ingressar como participantes importantes na formação de políticas públicas”.

O especialista explica que essas organizações funcionam como interlocutores entre o governo e as comunidades nas quais as instâncias governamentais não conseguem alcançar todas as camadas da população. “Os representantes das ONGs têm essa inserção, pois são eles que dialogam, que entram nas casas das pessoas. Então, no momento em que essas ONGs se conectam ao governo, elas também se tornam relevantes para o crime”.

ONGs também servem aos interesses de facções nas próprias comunidades

Mas o interesse das facções criminosas nas ONGs não se restringe apenas às relações governamentais. Elas também servem para fornecer informações de interesse aos criminosos sobre as próprias comunidades. Nesse sentido, Sant´Anna explica que nem sempre a abordagem do crime às ONGs é feita de forma forçada.

“Em diversos momento, são inseridas nessas organizações pessoas que são de interesse do crime. É uma maneira extremamente fácil e barata para que se consiga ter capilaridade, ter um alcance multidirecional dentro de uma comunidade, como não se alcançaria de outra forma”, afirma.

Desse modo, as ONGS servem como uma forma viável do crime se inserir em diversos espaços, tanto no trabalho junto às comunidades vulneráveis quanto na construção de políticas públicas junto aos governos. “Elas fornecem acesso suave para as organizações criminosas defenderem seus interesses em diferentes níveis nos governos e nas comunidades nas quais atuam”, disse Sant´Anna.

Tráfico mantinha bunker em terreno de ONG carioca

A ONG Multiplicação Social é um bom exemplo dessa dupla capilaridade com o governo e a comunidade. A organização mantinha uma ampla rede de articulação no Rio de Janeiro que envolvia políticos, artistas e empresários. No entanto, em maio desse ano, a Polícia Civil do estado descobriu um bunker do tráfico construído em um terreno da ONG, localizado na favela Parada de Lucas, na Zona Norte da cidade.

Durante a operação, foram presas 17 pessoas ligadas ao tráfico e apreendidos 17 fuzis, uma arma calibre 50 e farta quantidade de munição, granadas e drogas. Somente o armamento apreendido foi avaliado em R$ 1 milhão pela Polícia Civil. O bunker ainda estava equipado com uma porta automatizada, acionada por controle remoto, e tinha dois cômodos que permitiam a permanência prolongada de criminosos.

À época, os responsáveis pela operação afirmaram que parte das ONGs fluminenses está ligada ao tráfico local e a facções criminosas no Rio de Janeiro, e que a atuação da Multiplicação Social era apenas de fachada. O delegado Marcos Amim, titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), afirmou que a descoberta do bunker serviu para espantar quaisquer dúvidas de que há vinculações entre ONGs e o narcotráfico no estado.

“A ONG realizava algumas atividades próprias de organizações não governamentais justamente para camuflar seu verdadeiro viés, que era esconder armamento do tráfico e esconder procurados da Justiça”, afirmou na ocasião.

ONGs também buscam interferir nas medidas do Judiciário

As ações de ONGs não se restringem às comunidades e ao Executivo. Em julho de 2022, o então deputado estadual Alexandre Freitas (Podemos-RJ) encaminhou um documento para o governo do estado, no qual afirmava haver conflito de interesses em relação à ONG Anjos da Liberdade, que atuava em prol da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, em votação no Supremo Tribunal Federal (STF).

Freitas alegou que a interferência estaria ocorrendo em razão das atividades exercidas pela fundadora da ONG, a advogada Flávia Pinheiro Fróes. A Anjos da Liberdade figurava como amicus curiae (isto é, “amigo da corte”, responsável por fornecer subsídios e embasamento técnico às decisões do tribunal) no processo.

No entanto, a advogada é conhecida por defender criminalmente lideranças do tráfico de drogas de diferentes organizações criminosas, em especial o Comando Vermelho, há mais de duas décadas. Além disso, o histórico atuação de sua ONG junto ao Judiciário demonstra que a entidade busca a reversão de medidas de tratamento mais rígidas nos presídios, principalmente nos federais, onde se encontram presos os líderes de facções criminosas.

Deste modo, Freitas entendeu que a atuação de Flávia e de sua ONG poderia gerar conflito de interesses, uma vez que clientes e ex-clientes da advogada têm claro interesse na diminuição de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro.

Aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020, a partir de ação protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ONGs vinculadas no ano anterior, a ADPF 635, que ficou conhecida como ADPF das Favelas, restringiu o acesso da polícia a comunidades no Rio de Janeiro. Embora tenha sido formulada para ter validade durante a pandemia, a norma segue vigente até o momento.

A ausência da polícia nas comunidades contribuiu para o fortalecimento e ampliação do crime e de sua estrutura nessas regiões, incluindo treinamentos e construção de bunkers. Analistas afirmam que a regra fez com que narcotraficantes locais e até mesmo de outros estados percebem os morros cariocas como locais mais seguros, expandindo suas atividades e, possivelmente, os vínculos com ONGs dessas comunidades.

À época, a advogada Flávia Fróes enviou uma nota à reportagem em conjunto com o Instituto Anjos da Liberdade. No texto, eles mencionam que ela não exerce mais cargo de direção na entidade e atua apenas como advogada voluntária. Sobre as alegações de conflito de interesses na ADPF 635, os signatários afirmam: “Quanto às afirmações aleivosias e costumeiras, despidas de qualquer criatividade, de que o IAL ‘não quer deixar a polícia trabalhar’, cabe dizer o óbvio, a Constituição Federal não admite um modelo de segurança pública como a ‘milícia dos voluntários da segurança nacional’ do Haiti dos Duvalier, internacionalmente conhecidos por seu apelido em dialeto local, os tonton macoutes, que tinham poderes de vida e morte sobre a população e não sujeitos a quaisquer controles judiciais”.

A respeito da investigação sobre possível repasse de organização criminosa, afirmam: “As alegações de recebimento de dinheiro do PCC ofenderiam mais ao Ministério Público de São Paulo, acusado indiretamente de prevaricação, isso se houvesse lastro probatório mínimo quanto a tal tosca e leviana afirmação, tendo sido tal calúnia objeto de apuração naquela época, descartada sua veracidade. A pauta do IAL em favor dos familiares das pessoas privadas de liberdade incomoda políticos que se valem de um discurso fascista e que buscam criminalizar essas pessoas que não cometeram nenhum delito, o que é vedado pela Constituição Federal, que dispõe que nenhuma pena passe da pessoa do condenado”.

ONGs e o crime, há a solução?

Diante da ampla atuação de ONGs comprovadamente relacionadas a facções criminosas ou que levantem suspeitas de defender seus interesses, cabem algumas medidas estatais para restringir esse acesso. Regular e fiscalizar de forma mais incisiva o setor é uma delas.

Segundo Rebelo, atualmente só há regulamentação para as ONGs caso desejem ser reconhecidas como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), o que abre um leque grande de possibilidades para parcerias com o governo, sobretudo o recebimento de verbas públicas.

As OSCIPs são reguladas pela Lei nº 9.790/99, que estabelece a necessidade de prestação de contas nos moldes das entidades públicas, sob fiscalização do TCU. Ainda assim, Rebelo afirma que é um sistema frequentemente contestado, “pois nem sequer há como fiscalizar efetivamente como os recursos recebidos são empregados, e não raro aparecem escândalos de desvios e corrupção envolvendo essas entidades, muitas das quais são estruturadas apenas para o recebimento desses valores”.

Já para as ONGs, em geral, não há qualquer tipo de fiscalização específica, sendo regidas pelas regras das sociedades civis sem fins lucrativos, como as associações. De acordo com Sant´Anna, uma saída para aumentar o controle sobre essas entidades seria a oferta pelo governo de capacitação mais ampla para os funcionários das ONGs.

A ideia é que, a partir dessa capacitação, o governo possa não só fiscalizar, mas também vincular o repasse de recursos e o atendimento a demandas a partir de informações sobre as ações dessas entidades e os seus resultados. Caberia aos próprios funcionários e às ONGs elaborar e fornecer essas informações.

Caso contrário, o governo segue permitindo que o capital, seja do setor privado, seja estrangeiro e, até mesmo, proveniente do crime, acabe investido sem que ninguém tenha controle sobre isso. Mas Sant´Anna admite que não é uma iniciativa simples.

“Uma fiscalização mais efetiva dependeria de pessoas do governo fazendo parte das equipes das ONGs, o que não é comum no Brasil. Até porque, para ingressar em alguns locais das comunidades, as pessoas ligadas ao governo são rapidamente detectadas”, destaca.

Embora por outras razões, Rebelo também é pouco otimista em relação às possibilidades de que o governo tenha uma ação reguladora e fiscalizadora mais contundente junto às ONGs, e que venha a restringir a vinculação dessas organizações ao crime. Ele avalia que essa é uma questão, essencialmente, de postura governamental, já que cabe a quem exerce o poder instituído ter critérios rígidos na escolha de suas parcerias e contatos, buscando saber com quem se está efetivamente lidando.

“Isso, no entanto, acaba ficando muito difícil em governos de matriz condescendente com a criminalidade, em que a preocupação com o bem-estar do criminoso parece estar acima de qualquer outro valor. Nesse modelo, as portas para esse tipo de organização acabam permanecendo sempre abertas”, afirma o jurista.

Outro lado

As ONGs Associação Instituto Liberdade do Amazonas e Instituto Anjos da Liberdade foram contatadas pela reportagem, mas não responderam aos questionamentos encaminhados até o fechamento desta matéria.

Em entrevista ao site Uol, Luciane Barbosa de Farias se disse que o processo dela ainda está em tramitação, e por isso afirma que é "inocente" até que "se prove o contrário em todos os graus de recursos".

Ela negou que a ONG seja financiada pelo Comando Vermelho e disse que trabalha com doações. Matéria da Gazeta do Povo mostrou que o motivo alegado por ela para as agendas com o governo Lula foi a suposta contribuição com o plano nacional de melhorias à população carcerária, o qual está sendo elaborado pela gestão petista.

Já a advogada e ex-deputada Janira Rocha se defendeu das denúncias de vínculo com o tráfico por meio das redes sociais e afirmou que a “direita golpista” tenta criminalizar o movimento dos direitos fundamentais e humanos.

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