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Allan dos Santos vive desde 2020 na Flórida
Allan dos Santos vive desde 2020 na Flórida| Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu mais uma demonstração, nesta semana, de afastamento dos Estados Unidos e aproximação com a Rússia, ao negar um pedido de Washington para extraditar o espião russo Serguei Vladimirovich Cherkasov. Preso desde o ano passado no Brasil, ele foi detido na Holanda após tentar, com um passaporte brasileiro falso, trabalhar como estagiário no Tribunal Penal Internacional para colher informações que interessavam a Moscou.

Nos EUA, Cherkasov é acusado de atuar como agente de uma potência estrangeira, fraude em visto, fraude bancária e fraude eletrônica, crimes ocorridos entre 2018 e 2020, quando se mudou para lá para estudar e colher informações de inteligência na Universidade Johns Hopkins. O Ministério da Justiça informou que negou a extradição para os EUA porque o Supremo Tribunal Federal já havia aprovado sua extradição para a Rússia, que pediu primeiro.

A decisão ocorre num momento em que o governo Lula se empenha para trazer dos EUA ao Brasil o jornalista Allan dos Santos. Em outubro de 2021, o ministro Alexandre de Moraes decretou sua prisão preventiva no âmbito do inquérito sobre as “milícias digitais”, imputando a ele os crimes de calúnia, difamação, injúria, incitação ao crime, racismo, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Tudo isso em razão de comentários ácidos que Santos fazia contra o STF, o Tribunal Superior Eleitoral, seus ministros e outros políticos poderosos em Brasília.

Moraes também acionou a Interpol e a Embaixada americana para prender e extraditar Allan. Passados quase dois anos, o jornalista nunca foi incomodado por autoridades americanas na Flórida, onde mora e continua publicando suas opiniões incômodas ao STF.

A Gazeta do Povo perguntou ao STF e ao Ministério da Justiça, que faz a intermediação com as autoridades americanas, por que até hoje o pedido de extradição não andou. Os órgãos não responderam. A reportagem apurou, no entanto, que o Departamento de Estado americano já solicitou informações adicionais ao Brasil por ao menos três vezes, para analisar se realmente é cabível o pedido de Moraes para prender e extraditar o jornalista.

Todo o processo corre sob sigilo. Servidores que já trabalharam na tramitação de pedidos semelhantes e acompanham o caso disseram à reportagem, sob reserva, que provavelmente as autoridades americanas ainda não veem motivos sólidos na ordem de prisão de Moraes contra Allan dos Santos.

Os pedidos de extradição que chegam aos Estados Unidos são remetidos pelo Departamento de Estado – equivalente ao Ministério das Relações Exteriores – ao Departamento de Justiça, especificamente para um órgão chamado Office of International Affairs (OIA) – em português, Escritório para Assuntos Internacionais. Em conjunto, os órgãos verificam se o pedido de extradição atende às regras do tratado firmado entre o país e os EUA, principalmente se os crimes imputados à pessoa são realmente passíveis de extradição.

Tratado Brasil-EUA

O tratado entre Brasil e EUA, de 1965, traz uma lista limitada de crimes extraditáveis, geralmente violentos ou com maior potencial lesivo, como homicídio, estupro, rapto de menores, incêndio, pirataria, roubo, contrabando, falsificação de documentos, fraudes financeiras, corrupção, narcotráfico, tráfico de pessoas, entre outros. Há no tratado a proibição expressa de extradição “quando o crime ou delito, que ocasionou o pedido de extradição, for de caráter político” ou quando o acusado é submetido a tribunal de exceção.

Outra regra diz que “atos delituosos que constituem francas manifestações de anarquismo ou visam à subversão da base de toda organização política não serão reputados crimes ou delitos políticos”. De qualquer modo, “a apreciação do caráter do crime ou delito caberá exclusivamente às autoridades do Estado requerido”, ou seja, os EUA, no caso de Allan dos Santos.

Para admitir o processo de extradição, o tratado também exige que o país solicitante anexe ao pedido documentos que atestem que o indivíduo tenha sido condenado criminalmente, ou ao menos acusado, bem como o mandado de prisão, junto com depoimentos em embasam a ordem e qualquer outra prova julgada hábil para o caso.

No STF, Allan dos Santos nunca foi acusado pela Procuradoria-Geral da República, que inclusive se opôs à sua prisão. Todas as imputações contra ele foram lançadas por um grupo pequeno de delegados da Polícia Federal, que se reportam a Moraes nas investigações sobre “fake news”, “atos antidemocráticos” e “milícias digitais”.

A ordem de prisão proferida pelo ministro em outubro de 2021, que foi reproduzida em inglês no pedido de extradição, traz poucos elementos concretos, relativos a condutas de Allan dos Santos, sem explicar exatamente como elas configuram os diversos crimes apontados. Parte do documento apresenta conjecturas sobre o impacto de vídeos populares e rentáveis na internet com títulos apelativos a favor do ex-presidente Jair Bolsonaro e contra o STF, veiculados em outros canais.

As acusações contra Allan dos Santos, por sua vez, são carregadas de frases de efeito e explicações sobre a gravidade de crimes contra o Estado Democrático de Direito, sem clareza sobre quais condutas dele representariam ameaça real às instituições e ao regime democrático.

Entre os poucos elementos fáticos, a ordem de prisão cita um tuíte que, na avaliação da PF, defendia um golpe militar, por ocasião da participação de Bolsonaro na celebração do Dia do Exército, em Brasília, em 19 de abril de 2021. “Se entendi bem, o que ele está dizendo é que não se pode proibir as pessoas de defenderem a intervenção. Se isso acontecer, aí é que precisamos mesmo de uma intervenção”, escreveu o jornalista na rede social.

Outro fato apontado é uma foto que Allan dos Santos publicou em 3 de maio daquele ano, quando manifestantes protestaram contra o STF, mostrando o dedo médio para o edifício da Corte. “Acabando a manifestação, não podia deixar de dar minha opinião sobre quem rasga a Constituição”, dizia a legenda da foto publicada.

Em relação ao crime de lavagem de dinheiro, a PF sugere que ele teria tentado ocultar a origem dos recursos que recebia do Google, pela visualização de seus vídeos no YouTube, ao contratar uma empresa do Canadá que administrava a monetização e lhe repassava os valores. Especialistas no crime de lavagem de dinheiro dizem que sua configuração se dá quando o recurso tem origem ilegal e o lavador busca esconder a ilicitude colocando o dinheiro no mercado legal. Os recursos do Google pagos a produtores de conteúdo em razão da audiência não são ilegais.

De qualquer modo, Allan dos Santos e seu canal Terça Livre são apresentados pela PF como autores de “ataques diretos a instituições e autoridades”.

“A investigação policial apontou a construção, por Allan dos Santos, de amplo material divulgado com ataques aos Poderes de Estado e instituições democráticas, seja por meio de ofensas diretas a agentes políticos que não sejam alinhados à sua ideologia e discurso ou que tenham em algum momento divergido do posicionamento político, seja por meio de ataques pessoais a parlamentares ou magistrados da Suprema Corte, pregando as suas destituições; além de mensagens pregando intervenção militar”, diz Moraes na ordem de prisão, apresentada depois aos EUA.

Narra ainda que o jornalista reunia políticos e servidores em sua casa que haviam participado da campanha eleitoral de Bolsonaro em 2018. Além disso, seria responsável pela criação de grupos de WhatsApp onde teria coordenado “diversas pessoas com aparente potencial para a propagação de suas ideias contra a Constituição Federal, a Democracia e ao Estado de Direito”. Como prova disso, a PF cita uma mensagem num desses grupos em que ele escreveu: “Conto muito com vocês para a próxima aventura: tocar o terror no dia 15!”, numa referência a um protesto contra o STF.

Em alguns trechos, a PF lança suspeitas contra Allan dos Santos seguidas de expressões como “o que demanda melhor apuração” e “permanece a necessidade de aprofundamento”, indicando pontos incertos da investigação.

Na época da ordem de prisão e extradição, Moraes cobrou do Ministério da Justiça o andamento dos trâmites. Delegados que trabalhavam no setor tiveram de depor e tentaram demonstrar que o pedido teve tramitação célere e regular dentro da pasta.

Como os EUA resistem na entrega de Allan dos Santos, uma opção do Ministério da Justiça é adotar a política de reciprocidade. Ou seja, demonstrando que o Brasil já colaborou com os EUA entregando criminosos que eles buscam aqui ou negando a extradição de outros, como troco pela não extradição do jornalista. À GloboNews, o secretário nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, negou que isso tenha motivado a recusa em extraditar Cherkasov para os EUA.

O pedido de extradição dos EUA de Cherkasov ao Brasil tramitou em sigilo no Ministério da Justiça. Documentos divulgados pelo Departamento de Justiça americano em março deste ano trazem um longo histórico de sua atuação como espião russo nos EUA, no Brasil e na Irlanda, sempre se utilizando de documentos falsos e fraudes.

Segundo o serviço secreto holandês, Cherkasov pertence à GRU, unidade de inteligência militar da Defesa da Rússia, com “longo e extenso treinamento”. Na Holanda, ele queria entrar no Tribunal Penal Internacional para coletar investigações em andamento das atrocidades cometidas pela Rússia na Ucrânia.

No Brasil, ele se apresentava como Victor Muller Ferreira e inventou uma longa histórica dramática, cheia de tragédias familiares, para enganar as pessoas e autoridades onde se apresentava. Depois que ele foi deportado da Holanda, em abril do ano passado, a PF, enfim, passou a investigá-lo a fundo e descobriu como falsificou documentos, corrompendo a funcionária de um cartório no Rio de Janeiro.

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