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Policiais no Rio de Janeiro
Rio de Janeiro viveu, nesta semana, dias de terror com dezenas de ônibus queimados que causaram o fechamento de diversas vias na Zona Oeste.| Foto: Divulgção/Polícia Militar do Rio de Janeiro.

As cenas de ataques a ônibus e trens na Zona Oeste do Rio no último dia 23 expuseram um dos aspectos mais violentos das organizações criminosas do Brasil: a tática de aterrorizar a população. Ações criminosas dessa natureza são ordenadas por líderes do tráfico há anos, mas são menos comuns partindo das milícias. Quatro décadas após seu surgimento, grupos de policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares, sejam aposentados ou da ativa, ficaram iguais às quadrilhas de traficantes de drogas.

Nesse contexto altamente caótico e praticamente fora de controle, a notável estruturação desses grupos armados é impressionante. Eles demonstram uma divisão de trabalho eficaz, uma gestão qualificada e um controle interno rígido, permitindo que essas organizações conquistem o controle total de territórios em comunidades carentes. Para alcançar esse objetivo central, eles introduzem o medo na população até mesmo através de tribunais informais que julgam condutas de acordo com sua própria interpretação de “lei e ordem”.

A ausência total do poder público nessas aglomerações urbanas controladas pelos milicianos ou pelo tráfico de drogas encoraja a ousadia de negócios ilícitos, que parece desconhecer qualquer limite. Exemplo disso é o modelo de franquias formatado pelas maiores organizações criminosas do Brasil – Primeiro Comando da Capital (PCC), Amigo dos Amigos, Comando Vermelho (CV) e Terceiro Comando Puro (TCP). Suas “grifes” foram adotadas por facções de áreas próximas e já chegaram a outros Estados.

Negócios do crime vão de TV por assinaturas a criptomoedas

Essa expansão de empreendimentos do crime mediante a transferência de conhecimento, de acesso a canais de fornecimento e do uso autorizado de marcas associadas ao terror se faz mediante manuais de procedimento e o pagamento de “royalties”.

Muito além da venda de narcóticos e “proteção”, os tentáculos das organizações e seus franqueados se baseiam em dominação territorial e alcançam diversos tipos de comércios ilegais e de serviços clandestinos, desde TV por assinatura, a botijões de gás de cozinha e até o fluxo da água encanada de concessionária estatal.

Para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, essa combinação de áreas ocupadas por indivíduos com armamento pesado, atividades terceirizadas pelos ilícitos – como transporte por motos, venda de refeições, mineração de areia e saibro – e lavagem de dinheiro descreve arranjo social, econômico e cultural que desafia o Estado. Eles avaliam que o combate a este quadro requer mais do que a força bruta, mas também o resgate de serviços públicos de qualidade em áreas dominadas e a promoção de princípios da sociedade.

“Nos assustam as imagens de facções armadas circulando livremente pelas comunidades carentes do Rio, realizando treinamentos táticos com armas e com seus homens perfilados recebendo instruções típicas de grupamentos militares”, disse Rogério Greco, secretário de segurança pública de Minas Gerais e professor nas áreas de segurança e direito penal. Ele ilustra ainda com a paisagem constrangedora e recorrente de espaços cativos do crime cobertos por emaranhados de fiações irregulares, os chamados “gatos”.

Greco vê clara imposição das vontades de chefes criminosos a populações à revelia de qualquer controle legal, o que exige também combate em nível cultural. “Infelizmente, os fora-da-lei se valem do discurso de truculência policial para se proteger e expandir atividades”, afirmou. Ele teme que o país viva em breve situações de poder extremo do crime, como aconteceu com a cidade Medelín, na Colômbia, que no final dos anos de 1980 chegou a ser conhecida como a cidade mais perigosa do mundo por causa da luta entre cartéis de drogas.

Contra isso, o especialista defende o alinhamento de Judiciário, Executivo e Legislativo para fazer a ilegalidade recuar.

Enquanto isso, prosperam negócios à sombra do domínio de traficantes e de milicianos, como imobiliárias, corretoras de criptomoedas, patrocínio da formação de defensores do crime em faculdades e até clínicas de podologia. Greco lamenta que esse cenário esteja a indicar justamente o contrário do desejado, agravado pela inação e falta de planejamento do Ministério da Justiça e por medidas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que impedem os policiais de cumprirem a sua missão nesses locais.

“O ativismo judicial está tornando o Brasil menos seguro. Ao firmar suposto direito de criminosos de não serem perturbados nas suas atividades ilícitas, o STF condena comunidades inteiras a viverem sob o domínio de traficantes, e acaba se tornando, em última análise, o verdadeiro adversário do cidadão honesto e trabalhador, que paga impostos para que o Estado lhe assegure segurança pública em vez de expô-lo à violência”, observou o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS). Para o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o Rio está resgatando a leniência do Estado que levou ao fortalecimento do tráfico em comunidades nos anos 1980.

Os últimos acontecimentos violentos no Rio e o clima de terror instalado revelam o desconforto gerado pela presença dominante do crime na cidade, com liberdade de atuação até mesmo no interior de presídios. Diogo Costa, presidente do think tank Instituto Millenium, destacou o fato dos chefes de facções conseguirem realizar dentro da cadeia videoconferências com conexões de alta velocidade e carga de bateria garantida, para determinar a execução de outros criminosos. “Se organizações criminosas gozam dessa tranquilidade até mesmo dentro dos presídios, onde a força do Estado deveria se impor, as esperanças ficam mesmo muito baixas”, disse.

À exemplo do terror, população é usada como escudo humano

Na avaliação do coronel da reserva Fernando Montenegro, ex-comandante das forças de ocupação do Complexo do Alemão e autor do livro "Kid Preto" (Ed. Ubook), os grupos armados que atuam em comunidades carentes do país têm características semelhantes aos de terroristas em territórios ocupados, que usam a população como escudo humano. “A sua violência local é extremamente organizada, não-estatal e difusa. Ela não se restringe às ações de força, abrangendo coerção e cooptação de pessoas, inclusive políticos e formadores de opinião”, explicou.

O medo a impede que a população denuncie os criminosos e assim o controle territorial se consolida como uma das características históricas e distintivas da dinâmica dos grupos armados no Rio de Janeiro. Montenegro acrescenta que tal realidade se tornou “variável incontornável não só para a segurança, mas também importante para políticas públicas como transporte, habitação, educação e cultura”.

O analista observou que o domínio do crime em áreas densamente povoadas e carentes ganhou elementos cada vez mais desafiadores para o Estado. Ele percebeu, ao longo dos anos um processo de “hibridização”, com as milícias incorporando a violência brutal do tráfico e, na mão inversa, os traficantes adotando práticas gerenciais para governança territorial ensinadas pelos milicianos. “Para completar, as organizações criminosas fazem guerra de narrativas e manipulam informações para obter vantagem”, disse.

O jornalista britânico Tom Wainwright, em seu livro Narconomics – Como Gerenciar um Cartel de Drogas (2016), faz uma comparação entre a sofisticação empresarial do narcotráfico internacional e grandes empresas multinacionais legais, como Wal-Mart, McDonald's e Coca-Cola. Ele sugere que as forças do mercado exercem uma influência muito mais poderosa do que as políticas governamentais, e propõe que as estratégias de combate ao comércio ilegal de drogas monitorem variações na oferta e na demanda.

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