Ouça este conteúdo
Desde a semana passada, após a operação Sem Desconto, uma força-tarefa da Polícia Federal (PF) realiza uma varredura em milhares de documentos e dispositivos eletrônicos apreendidos para entender as reais dimensões das fraudes bilionárias com descontos indevidos de mensalidades direto na folha de pagamento e aposentados do INSS.
Apesar de o Instituto falar em cerca de quatro milhões de possíveis vítimas, investigadores acreditam que possa haver mais de seis milhões de afetados de forma direta. Alguns, inclusive, mais de uma vez. Isso porque há casos já rastreados em que beneficiários tiveram filiações irregulares em mais de uma associação ou sindicato. Algumas dessas entidades estão distantes centenas de quilômetros uma das outras e sequer estão nos mesmos estados dos beneficiários. Diante do que tem encontrado, a PF tem denominado o esquema como “farra do INSS”.
O termo é citado em pelo menos uma dezena de vezes no relatório que detalha o esquema e chama a atenção para o envolvimento de dirigentes e coordenadores sindicais, operadores, servidores do INSS, laranjas e empresas de fachada para lavagem de milhões de reais. Um caso curioso - não único e que teria se replicado com outras associações e sindicatos - foi o de um idoso do Piauí que teve registro quase simultâneo de filiação em duas diferentes associações.
VEJA TAMBÉM:
Chamou atenção porque as fichas de “associação” continham erros de grafia idênticos no sobrenome do idoso. As filiações ocorreram na Associação dos Aposentados e Pensionistas Nacional (Aapen), que tem sede no Ceará e que antes era chamada de Associação Brasileira dos Servidores Públicos (ABSP), e na Associação de Assistência Social a Pensionistas e Aposentados (Aaspa), com sede em Minas Gerais. Essa última chega a divulgar no próprio site um alerta para prevenir fraudes contra aposentados e pensionistas. A Gazeta do Povo tentou, por diversos meios e canais, contatos com as associações mencionadas. Não houve retorno de nenhuma delas.
Segundo a Controladoria-Geral da União (CGU), a Aapen teve progressão significativa no recebimento de valores vindos desses descontos: R$ 10,3 milhões em 2019 e somente no primeiro semestre do ano passado saltou para R$ 178,6 milhões. A CGU chegou a ouvir 210 idosos com descontos em folha destinados à entidade, 100% deles disseram não ter conhecimento nem consentiram com o repasse das verbas.
Já a Aaspa não aparece na relação da CGU enviada à PF com dados relacionados às filiações e valores recebidos no decorrer dos últimos anos pelo INSS. Segundo as investigações, além desse idoso, há outros casos documentados de beneficiários filiados a mais de uma entidade no mesmo dia e de descontos liberados “em lote” pelo INSS, sem confirmação individual, o que potencializou a “explosão” de reclamações.
Segundo a Polícia Federal, indícios apontam que as milhares de filiações indevidas ocorriam com o auxílio de servidores lotados na Diretoria de Benefícios e Relacionamento com o Cidadão do INSS. Em parceria com as entidades que faziam pagamentos de propina, os servidores eram responsáveis por inscrever aposentados como beneficiários dos descontos associativos indevidos.
Essa área da instituição é encarregada de celebrar e acompanhar a execução dos Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) firmados entre as associações de aposentados e o INSS. A fraude de 2019 até o fim do primeiro semestre do ano passado pode passar dos R$ 6 bilhões. O maior volume de recursos liberado ocorreu durante o governo Lula (PT), com aproximadamente 60% do total estimado.
VEJA TAMBÉM:
Sofisticado esquema: PF aponta lobista, empresas de fachada, laranjas e servidores do INSS
Segundo a PF, a investigação já aponta para um sofisticado esquema de fraudes no INSS, que combinava pagamento de propina a servidores, uso de “laranjas” e associações de fachada — muitas presididas por idosos e pessoas doentes que desconheciam o vínculo com essas entidades. Em Fortaleza (CE), por exemplo, duas delas funcionaram no mesmo endereço por quatro anos sob o comando de uma mesma mulher. A Gazeta do Povo não conseguiu contato com a defesa dela.
Chamou a atenção dos investigadores que ela realizou nos últimos anos mais de 30 viagens internacionais, a maioria a destinos turísticos caros e badalados. O relatório em curso, elaborado pela PF e que também leva como base dados da CGU, apontou que apenas uma das associações chegou a filiar mais de 12,5 mil beneficiários por dia. Estados do Nordeste concentram a maioria dos casos, especialmente Maranhão e Piauí.
Cadernos da propina podem ser mapa para desvendar esquema
Dos 29 acordos analisados entre associações e sindicatos com o INSS, 70% não apresentaram documentação completa culminando nos 11 que foram alvos de mais de 200 mandados de busca e apreensão, além de seis prisões durante operação na última semana. A Justiça também afastou seis servidores, sendo cinco do alto escalão do Instituto — entre eles o ex-presidente Alessandro Stefanutto e o procurador-geral Virgílio Antônio Oliveira Filho. Posteriormente, Stefanutto foi demitido do cargo.
A investigação também aponta que no centro da trama estaria um lobista identificado como Antonio Carlos Camilo Antunes, o “Careca do INSS”. Ele é suspeito de repassar propina a servidores e fazer movimentos milionários em poucos meses por meio de suas empresas. A PF identificou que há em seu nome mais de duas dezenas de CNPJs.
Uma reportagem do jornal O Globo divulgada na terça-feira (6) e confirmada pela Gazeta do Povo revelou que investigadores encontraram, entre o material apreendido na última semana, cerca de 20 cadernos no escritório do “Careca do INSS”. A PF consideraria esse o principal “mapa” para desvendar a rede de propinas no esquema. As anotações diárias feitas pela secretária de Antunes registravam datas, valores e porcentagens atribuídas a servidores do alto escalão do INSS, afastados pela Justiça na semana passada.
Segundo a PF, Antunes movimentou diretamente R$ 53,5 milhões por meio de suas empresas e levou em espécie R$ 9,3 milhões a pessoas ligadas ao INSS de 2023 a 2024. A defesa de Antunes voltou a afirmar que “as acusações não correspondem à realidade dos fatos” e que provará a inocência do cliente no curso do processo.
Nesta semana, o INSS instaurou processos administrativos (PAR) contra 12 associações suspeitas de participarem do esquema. As portarias, assinadas pelo corregedor‑geral substituto José Alberto de Medeiros Landim e publicadas em edição extra do Diário Oficial da União, dão prazo de 180 dias para conclusão das apurações, previstas na Lei Anticorrupção para responsabilização de pessoas jurídicas.
Entre as 12 entidades alvos dos PAR, seis constavam entre as 11 investigadas pela PF e todas estão na lista de associações apontadas por descontos indevidos.
VEJA TAMBÉM:
1,1 milhão de pedidos de desfiliação em 2023 e 2024
Uma auditoria da CGU enviada à PF indica que, de 2023 até meados do ano passado, 11 entidades investigadas registraram cerca de 1,1 milhão de pedidos de exclusão de descontos indevidos, potencializando as suspeitas de fraudes sistemáticas.
Entre as recomendações feitas pela CGU ao INSS, em 2024, estava o pedido de bloqueio imediato de novos descontos com a suspensão, cautelarmente e sem exceção de data, de toda nova consignação de descontos associativos. Se isso não fosse tecnicamente viável, o órgão alertou que o INSS deveria impedir qualquer inclusão de desconto até a solução prevista em instrução normativa que segue em implementação. As recomendações não foram acatadas.
A CGU indicou ainda que só deveria permitir consignação de desconto associativo em folha se o próprio beneficiário desbloqueasse esse desconto, usando os canais oficiais do INSS, antes da primeira cobrança ou após o bloqueio determinado no item anterior. Pediu ainda a implementação de um programa de checagem dos Acordos de Cooperação Técnica com entrevistas amostrais com beneficiários, cancelamento automático de descontos cuja autorização não fosse confirmada e bloqueio de novos lançamentos. As investigações apontam que isso não ocorreu, as fraudes se mantiveram e foram inclusive potencializadas após os alertas da CGU.
Além das hipóteses de suspensão e cancelamento já previstas, o INSS deveria criar critérios de risco — com base em denúncias, reclamações de falta de autorização, resultados do monitoramento e no súbito aumento de descontos por parte de alguma entidade para suspender ou rescindir acordos de cooperação técnica. Isso também não foi feito. A CGU pedia a avaliação cautelar de entidades com aumento atípico, condição não concretizada e, pelo contrário, após os alertas houve aumento no número de filiações possivelmente indevidas.
A Controladoria pedia um sistema de autenticação robusta restringindo a validação de autorizações ao uso de assinatura eletrônica avançada e biometria – o que segue sem ser colocado em operação, tendo em vista que entrevistas da CGU indicavam que a maioria dos aposentados não reconhecia ter dado consentimento para os descontos. Da amostragem de quase 1,3 mil beneficiários ouvidos, 97% disseram nunca ter concordado ou aderido às filiações.