O conflito entre Rússia e Ucrânia estremeceu a III Cúpula Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e União Europeia. O evento ocorreu na segunda (17) e nesta terça-feira (18) e tinha o intuito de aproximar os continentes especialmente na área comercial. As divergências sobre a guerra que já dura mais de um ano, no entanto, dificultaram a concretização de acordos.
Após um hiato de oito anos, a Cúpula organizada pela UE aconteceu na cidade de Bruxelas, capital da Bélgica, e reuniu líderes e chefes de Estado de 60 países que compõem os dois blocos (33 da Celac e 27 da União Europeia). O intuito era viabilizar parcerias comerciais para que países da América Latina intensificassem o fornecimento de energia, alimentos e commodities para os europeus em troca de apoio à industrialização de países da Celac.
Mas ainda que o intuito fosse a integração desses países e o anúncio de parcerias e investimentos, antes mesmo do seu início, o evento causou impasse entre as nações.
Enquanto embaixadores dos países tentavam fechar a Declaração Conjunta – documento que de praxe é assinado pelos países com o intuito de reafirmar sua parceria –, um dos pontos do texto causou divergência. Durante a discussão do texto, o Brasil e outros países da América Latina se opuseram à declaração de total apoio à Ucrânia que a UE gostaria de fazer no ofício.
Devido ao impasse, o documento precisou ser revisto e, conforme revelou o Itamaraty anteriormente, acabou adotando um tom mais ameno ao tratar sobre a guerra. Após a revisão do ponto que abordava o conflito, a maioria dos países concordou com a nova declaração. Apenas a Nicarágua se manteve contra.
Ainda assim, a situação causou um mal-estar interno. O chanceler chileno, Alberto van Klaveren, chegou a dizer que a guerra é "uma agressão" e lamentou o impasse causado pelos latino-americanos. “Lamentamos muito a situação. Estamos muito surpresos que haja membros do nosso grupo que se opõem a qualquer resolução sobre esta guerra. É uma guerra de agressão”, disse.
A União Europeia e outros países do Ocidente têm adotado uma série de sanções à Rússia como forma de pressioná-la a colocar um fim na guerra contra a Ucrânia. Ainda nesse sentido, dezenas de nações têm apoiado o país invadido, além de fornecerem armamento e apoio financeiro para que a Ucrânia consiga se defender das ofensivas russas.
Na direção contrária, alguns países se opuseram à estratégia adotada pelo Ocidente para tentar conter a guerra. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é um dos presidentes que tem feito duras crítica a esse posicionamento.
"Recorrer a sanções e bloqueios sem o amparo do direito internacional serve apenas para penalizar as populações mais vulneráveis. Precisamos de paz para superar os grandes desafios", disse o mandatário brasileiro em seu discurso na abertura da cúpula. Lula não mencionou que quem violou o direito internacional foi a Rússia ao tomar à força território do país vizinho.
A "sombra" russa no encontro de Bruxelas
A situação que deveria ser um detalhe em meio às diversas discussões que a cúpula propunha se tornou um motivo de divisão entre as nações. Há meses a União Europeia tem buscado reatar os laços com a América Latina para evitar a aproximação de países como a Rússia e a China – enquanto procura recuperar a influência que tinha no cenário global.
Um documento vazado à imprensa no início do ano demonstra que os países do bloco europeu têm interesse em construir uma forte economia sem se associar a modelos de governos autocratas. Nesse sentido, a UE tem buscado se aproximar de países estratégicos. Na lista que consta no documento, Brasil, Chile, Nigéria e o Cazaquistão são citados como prioridade do bloco nessa corrida.
Essa aproximação também busca trazer esses países para o mesmo lado do jogo a fim de evitar que essas nações busquem fazer tratados comerciais com a Rússia. Isso porque a UE teme que o governo russo faça novos aliados e, assim, tenha força para manter o conflito contra a Ucrânia, mesmo com as sanções impostas pelo Ocidente.
“Encontramo-nos num ambiente geopolítico competitivo: não só uma batalha de narrativas, mas também uma batalha de ofertas. Precisamos melhorar nossa oferta e estreitar nosso relacionamento com eles", diz o documento. Com a cúpula, os membros do bloco europeu buscavam colocar tal plano em prática com o anúncio de investimentos e promessas de fechar acordos comerciais com países da Celac.
A ideia dos europeus era tentar avançar por exemplo em acordos com o México, com o Chile, e destravar o acordo Mercosul-União Europeia, que havia fechado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas não foi ratificado por parte dos membros da União Europeia. Os europeus fizeram novas exigências de preservação do meio ambiente, mas Lula não conseguiu articular uma contraproposta a tempo de apresentá-la na cúpula.
O cenário para esse tipo de acordo, porém, não foi amistoso. Enquanto Lula proferiu críticas incisivas ao bloco, o clima interno também mostrou que as nações latino-americanas não estão em consenso sobre o conflito. O presidente chileno, Gabriel Boric (Convergência Nacional), criticou os países que escolheram não condenar a Rússia pela invasão à Ucrânia e embargaram a declaração da cúpula em Bruxelas.
"Acredito que na América Latina é preciso falar da situação com clareza. O que acontece na Ucrânia é uma guerra de agressão, imperial, inaceitável em que se viola o direito internacional. E entendo que a declaração conjunta está travada hoje porque alguns não querem dizer que é uma guerra contra a Ucrânia", disse o mandatário chileno.
A preocupação do Ocidente com o avanço da China a países emergentes
A China também está no radar de preocupações da União Europeia desde que se tornou a segunda maior potência econômica do mundo e mantém grandes embates com os países do Ocidente. Na intenção de frear esse crescimento do país, que possui Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 11,2 trilhões, o bloco europeu busca apresentar oportunidades mais atraentes às nações emergentes do que o país liderado pelo autocrata Xi Jinping.
“A América Latina, o Caribe e a Europa precisam uns dos outros mais do que nunca. O mundo no qual vivemos é mais competitivo, mais conflituoso do que antes. O mundo está sofrendo o impacto duro da agressão da Rússia à Ucrânia. E tudo isso acontece com o pano de fundo do crescimento da ascendência da China no exterior”, disse Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão Europeia.
Principal parceiro comercial do Brasil, levantamento realizado pela Gazeta do Povo mostra que, nos últimos 26 anos, a movimentação econômica com a China teve uma média anual de US$ 57 bilhões. Sendo a dos últimos 14 anos superavitárias para o Brasil. Em 2022, por exemplo, as negociações entre os dois países renderam cerca de R$ 130 bilhões aos cofres brasileiros.
Já com a União Europeia, ainda que o volume de negociações tenha uma média parecida (US$ 55 bilhões, nos últimos 26 anos), o comércio não gera superávit significativo na balança comercial brasileira. Porém os investimentos diretos europeus podem gerar um grande impacto.
Essa situação, no entanto, pode ser revertida com o acordo de livre comércio entre Mercosul-União Europeia. Caso seja chancelado, o comércio entre os blocos pode ultrapassar o volume de R$ 500 bilhões em negociações. Mercado atrativo e que pode tirar o protagonismo chinês do comércio brasileiro, líderes do bloco europeu têm tentando avançar nas discussões para fechar o acordo que é negociado há mais de 20 anos.
Na tentativa de atrair essas nações emergente, a UE anunciou, durante a cúpula desta semana, investimento de 45 bilhões de euros [mais de R$ 240 bilhões] nos próximos quatro anos por meio do Global Gateway. O programa é uma plataforma de investimentos europeu em projetos sustentáveis em diversos setores, como saúde, educação e tecnologia.
Para especialistas, o projeto é visto como um "concorrente" da 'Nova Rota da Seda', programa desenvolvido pela China nos últimos dez anos. Por meio de investimentos em infraestrutura, o país asiático construiu ferrovias e portos em cerca de 140 países da América Latina, Ásia e África que, além de acelerar o processo de transporte de mercadorias, aumentou a influência chinesa sobre esses países.
Estimativas mostram que a China teria desembolsado valores entre US$ 890 bilhões a US$ 1 trilhão para colocar o plano em ação. Já o europeu Global Gateway pretende investir 300 bilhões de euros até 2027 nos países que adotarem ao projeto. O intuito é “diminuir o fosso de investimento global” em infraestrutura que existe entre os países ricos e os em desenvolvimento.
Países pedem eleições transparentes na Venezuela
Ao final do encontro, Brasil, França, Colômbia, Argentina e o representante de relações exteriores da União Europeia divulgaram uma declaração conjunta incentivando a retomada do diálogo entre o governo e a oposição da Venezuela para a realização de eleições justas e transparentes. O país tem impedido que seus pleitos de fachada sejam verificados por observadores internacionais.
Lula já havia chamado as acusações contra a ditadura venezuelana de narrativas e defendeu em uma live na internet nesta terça-feira (18) a retirada das sanções do Ocidente contra Caracas.
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