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O ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello.
O ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello.| Foto: Erasmo Salomão/MS

A mudança na divulgação dos números da Covid-19 no Brasil e a fragilidade dos boletins mais recentes têm despertado a preocupação sobre como a falta de transparência nos dados oficiais podem atrapalhar o combate à pandemia. Nos últimos dias, o Ministério da Saúde (MS) alterou a forma como os números são apresentados. Além disso, o painel de casos chegou a ficar fora do ar entre a noite de sexta-feira (5) e o sábado. No domingo, outra controvérsia: o MS divulgou dois boletins com dados muito conflitantes de mortes e novos casos diários.

Em entrevista coletiva na noite desta segunda-feira (8), já após a publicação desta matéria, a pasta anunciou um recuo, mas sem detalhar se haverá, de fato, manutenção da metodologia atual. Técnicos afirmaram que estão “aprimorando” a divulgação dos dados e indicaram que uma nova ferramenta será apresentada já nesta terça-feira.

Números diários preocupam

A polêmica se deu após o ministério, no fim de semana, afirmar que mostraria somente o número de mortes e novos casos ocorridos no dia. Ou seja, se um óbito ocorreu no dia 1.º de junho, mas foi registrado apenas no dia 8, ele não entrará na contabilidade diária, como vinha sendo feito e é a praxe no mundo.

“O uso da data de ocorrência (e não da data de registro) auxiliará a se ter um panorama mais realista do que ocorre em nível nacional e favorecerá a predição, criando condições para a adoção de medidas mais adequadas para o enfrentamento da Covid-19, nos âmbitos regional e nacional”, justifica em comunicado.

O problema se intensifica porque o painel online não vem apresentando, desde a semana passada, acumulado de mortes e casos no Brasil (o que ocorria anteriormente). Com isso, para ter o quadro geral, o interessado entrar nos dados de cada dia, todos os dias, para constatar as alterações.

A omissão sobre esses dados consolidados dificulta o acompanhamento de entes que não estão diretamente ligados aos órgãos de saúde, como tribunais de conta, Ministério Público e imprensa. Tal decisão rendeu críticas até mesmo de membros que estiveram no governo. Em entrevista à CNN no início desta tarde, o ex-ministro Nelson Teich indicou a necessidade de o ministério rever a alteração. “Não consigo imaginar a ideia de ocultar a informação. Se o ministério não consolidar [os dados do acumulado de mortes e registros diários], as secretarias vão consolidar (...). A gente começa a ter uma série de números conflitantes”, disse.

Para analistas e entidades, além da crise de credibilidade sobre os dados do governo, abre-se um panorama perigoso em que as pessoas imaginam uma desaceleração da pandemia que não existe.

E o conflito, de fato, vem ocorrendo. De acordo com um painel online do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) , foram 1.116 mortes no balanço do domingo. O dado do MS é de 525. O site informativo faz parte de série de iniciativas de contagem alternativas no bojo da desconfiança dos números oficiais.

O Conass atualizará os números diariamente, mostrando consolidado de mortes e registros diários, além dos novos e acumulado dos casos. Ao portal Uol, o presidente da entidade, Alberto Beltrame, classificou hoje como "confusão desnecessária" as mudanças na metodologia do ministério.

“É bastante simples. O registro nas 24 horas é o número de óbitos divulgado em determinado dia. Não significa que tenham ocorrido nas últimas 24 horas, podem ter ocorrido há cinco dias, por exemplo. Foram investigados, confirmados e registrados hoje. Numa curva logarítmica, onde os óbitos são colocados, o próprio sistema ajusta e lança o dado no dia de sua efetiva ocorrência. Isso permite uma análise de tendência. Quando é lançado numa curva cumulativa, somente soma o óbito, e esta curva subirá sempre, pois os óbitos vão se acumulando e apontarão para o infinito", disse o dirigente.

Uma coalizão de veículos de comunicação (Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, G1 e UOL) também passará a ter levantamento feito diretamente com as secretarias estaduais de saúde. O trabalho já vinha sendo feito pelo G1.  “Cada órgão de imprensa divulgará o resultado desse acompanhamento em seus respectivos canais. O grupo vai chamar a atenção do público se não houver transparência e regularidade na divulgação dos dados pelos Estados”, escreveu o jornal O Globo.

Respostas internacionais

Embora cada país tenha apresentado um padrão de monitoramento durante a pandemia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) sugere apresentar um conjunto de informações completas – nos moldes do que vinha sendo feito no país.

A Espanha foi umas das exceções e adotou uma metodologia semelhante àquela proposta pelo nosso Ministério da Saúde. Neste mês, passou a divulgar apenas as ocorrências nas 24 horas mais recentes. A medida foi bastante criticada pela oposição – o país é governado por um governo de esquerda. O deputado conservador Pablo Casado, líder do Partido Popular, classificou a mudança como uma “falta de respeito" com os espanhóis.

Maria Jesús Montero, porta-voz do governo, admitiu que a metodologia pode distorcer as estatísticas. Diferentemente do Brasil, porém, o país está em queda de registros da doença.

Para a OMS, o Brasil deveria voltar atrás na decisão. "Nosso entendimento é que o governo do Brasil continuará a reportar os importantes números diários, de uma maneira desagregada", disse ele durante entrevista coletiva, acrescentando que a OMS tem tido acesso a "dados extremamente detalhados" da Organização Pan-Americana (Opas) e do próprio país. "Esperamos realmente que isso continue."

Risco aos bancos de dados de saúde

Para representantes da comunidade médica, a alteração abre precedentes perigosos. De acordo com o infectologista Fabio Gaudenzi, membro deliberativo da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a alteração não afeta as ações contra a Covid em um momento inicial. “Os municípios e estados, que são os principais gestores das ações de controle do coronavírus, possuem a gestão integral destes dados”, diz. “Em teoria, os estados e municípios ainda têm condições de acessar esses dados, fazer suas análises e suas políticas”, indica.

O especialista teme, no entanto, que o estreitamento na divulgação das informações possa se estender a bancos de controle essenciais aos municípios e estados: os sistemas de informações e-Sus-VE e Sivep-Gripe – que são ferramentas controladas pelo governo federal que registram casos leves e graves de doenças respiratórias.“Todos esses sistemas tem a gestão com o Ministério da Saúde. Se começa a ter uma instabilidade, a base de dados fica inacessível para os municípios e estados”, diz. “Se em algum momento o ministério tiver problema na gestão destes sistemas, esses entes não terão como realizar as ações (de combate e prevenção)”.

Alterações sistemáticas nas informações sobre a Covid-19

Ainda em abril, durante a gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, os dados sobre a Covid-19 eram divulgados às 17 horas. Semanas depois de sua saída, o boletim passou a ser divulgado às 19 horas.

Na última semana, o MS abriu um novo capítulo nesta troca, passando a apresentar os números somente após as 21h30. Em entrevista na entrada do Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro chegou a admitir que a alteração evitava a divulgação do número de mortos diários no Jornal Nacional, da Rede Globo.

Também na última semana, o painel deixou de apresentar os números consolidados de mortes ao longo de toda a pandemia. Apenas as ocorrências diárias passaram a compor o quadro. Foram eliminados do site os links para downloads de dados em formato de tabela, usados por pesquisadores e veículos de comunicação.

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