Pelo menos 22 deputados da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro estão sob suspeita de promover “rachadinha” nos gabinetes.| Foto: Reprodução/Alerj
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A expressão “rachadinha” ocupou a manchetes dos noticiários na semana passada com a prisão de Fabrício Queiroz, policial reformado e ex-assessor de Flávio Bolsonaro, atual senador da República, na Operação Anjo. A prática, que flerta com os crimes de desvio de dinheiro público e corrupção, não chega a ser uma novidade no meio político, mas é pouco compreensível pela maioria dos brasileiros.

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A rachadinha consiste na devolução de parte dos salários de assessores ao político que o contratou. Também recebe o nome de mensalinho ou pedágio, a depender da região do país. Queiroz e Flávio são investigados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por supostamente manterem um esquema como esse enquanto o filho do presidente Jair Bolsonaro era deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Mas o caso envolvendo Flávio não é o primeiro a ser descoberto — e provavelmente não será o último.

Geralmente, a rachadinha pode ser operacionalizada de duas formas. A primeira é quando os servidores contratados devolvem parte dos salários. A segunda é quando o político contrata funcionários fantasmas, que não desempenham a função, e o salário vai todo para a conta dos operadores do esquema.

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Como funcionava o esquema no gabinete de Flávio Bolsonaro, segundo o MP-RJ

Segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), foram identificados 483 depósitos em dinheiro vivo, feitos por 13 assessores ligados ao gabinete de Flávio, nas contas de Queiroz. O valor chega a R$ 2 milhões.

A investigação envolvendo o filho do presidente começou quando o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) identificou movimentações atípicas nas contas de Queiroz. Uma das operações envolvia um cheque de R$ 24 mil depositado na conta da primeira dama Michelle Bolsonaro. O presidente Jair Bolsonaro afirmou que o depósito era a devolução de um empréstimo feito a Queiroz.

O MP-RJ investiga se parte do dinheiro desviado dos salários dos assessores chegava a Flávio por meio de lavagem de dinheiro a partir de uma loja de chocolates do senador no Rio de Janeiro.

No pedido de prisão, o MP-RJ destaca, ainda, que de 2007 a 2018, Queiroz sacou de sua conta R$ 2,9 milhões, o que indica que o volume repassado a ele pode ter sido maior do que os 483 depósitos identificados até agora indicam.

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O Jornal Nacional, da TV Globo, mostrou que parte do dinheiro desviado no esquema teria sido usado para o pagamento de mensalidades na escola das filhas de Flávio Bolsonaro e de despesas com plano de saúde da família do senador, entre outros pagamentos.

"Rachadinha" é crime?

Líder da bancada da bala no Congresso, o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP) saiu em defesa de Flávio Bolsonaro no esquema da rachadinha na Alerj. Para Augusto, o esquema é, na verdade, “uma contribuição voluntária dos assessores” repassada ao então deputado estadual.

"Hoje, foi efetuada a prisão do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, e qual o motivo, corrupção? NÃO. Desvio de milhões em dinheiro público? NÃO. Perigoso para sociedade? NÃO. Fabrício Queiroz estava foragido? NÃO. Por incrível que pareça tudo isso por uma suposta 'rachadinha', que é uma contribuição voluntária dos assessores supostamente repassados para Flávio Bolsonaro”, escreveu o líder da bancada da bala em nota divulgada à imprensa.

Segundo o advogado João Rafael de Oliveira, professor de Direito Processual Penal no curso de pós-graduação da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem julgado casos de rachadinha como peculato. O esquema, segundo Oliveira, também pode ser enquadrado como concussão.

O crime de peculato está previsto no Código Penal no artigo 312: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”. A pena é de 2 a 12 anos de prisão e multa.

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Já a concussão está prevista no artigo 316: “Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida”. A pena também é de 2 a 12 anos de prisão e multa.

Para Oliveira, é difícil a tese defendida por Capitão Augusto (PL-SP) prevalecer. “É uma tese criativa, que se tiver amparo em prova, pode colocar em dúvida a configuração de crime ou não”, avalia.

Segundo o advogado, só uma maior fiscalização por parte do Ministério Público em relação ao preenchimento desses cargos pode coibir esse tipo de crime. Aumentar o controle sobre o cartão-ponto dos assessores de políticos é uma das alternativas, mas ainda assim a prevenção contra a rachadinha passa por uma ampliação da vigilância sobre as contratações e o trabalho desempenhado.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Rachadinha não é exclusividade de Flávio

A prática ilícita de embolsar parte do salário de funcionários não é uma exclusividade de Flávio Bolsonaro. Há inúmeros casos registrados em todo o Brasil — boa parte ainda impune.

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No Paraná, a Gazeta do Povo desvendou um esquema de contratação de funcionários fantasmas na Assembleia Legislativa (Alep) do estado em 2010. O ex-diretor da Alep, Abib Miguel, o Bibinho, é acusado de nomear funcionários fantasmas para desviar parte dos salários deles. Ele chegou a ser condenado a 23 anos de prisão pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), mas a condenação foi anulada em janeiro deste ano e o caso voltou para a primeira instância.

O caso de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz também não é o único na Alerj. Pelo menos 14 siglas estão sob suspeita no Rio de Janeiro pela prática. O relatório do Coaf que mostrou as movimentações atípicas de Queiroz também mostra possíveis irregularidades cometidas pelos deputados André Ceciliano (PT-RJ), atual presidente da Alerj, Paulo Ramos (PDT), Márcio Pacheco (PSC), entre outros.

Ao todo, o Coaf identificou movimentações suspeitas de 75 funcionários de 22 deputados estaduais, pertencentes a 14 partidos diferentes. O valor total identificado pelo Coaf em movimentação ultrapassa R$ 200 milhões.

Em 2003, a Polícia Federal deflagrou a operação Praga do Egito, em Roraima, para investigar a prática de rachadinha na Assembleia Legislativa e no Tribunal de Contas do estado entre os anos de 1998 e 2002. Deputados e conselheiros contratavam funcionários fantasmas e ficavam com os salários. Mais de 85 pessoas foram denunciadas por desviar mais de R$ 230 milhões em verbas públicas para o pagamento de 5,5 mil servidores fantasmas. O caso ainda se arrasta na Justiça.

Ex-ministro dos governos Lula e Temer, Geddel Vieira Lima, com quem a PF encontrou R$ 51 milhões em um apartamento, também é investigado em um caso de rachadinha. Em março deste ano ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) junto com seu irmão, o ex-deputado do MDB Lúcio Vieira Lima, pelo desvio de R$ 5 milhões através do esquema. Segundo o MPF, 80% dos salários dos funcionários contratos nos gabinetes dos deputados federais voltavam para os irmãos.

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