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As recentes manifestações populares e os dados das pesquisas de opinião apontam para a consolidação de um novo fenômeno político no país: a rejeição ao ministro Alexandre de Moraes e ao Supremo Tribunal Federal (STF) pode estar ganhando corpo próprio, à semelhança do que ocorreu com o antipetismo. Assim como a rejeição ao Partido dos Trabalhadores (PT) ultrapassou o campo partidário e se tornou um sentimento disseminado na sociedade, a revolta contra a Corte começa a atrair adeptos para além da base de apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A prisão domiciliar de Bolsonaro, determinada na segunda-feira (4) por Moraes, funcionou como catalisador. No domingo (3), milhares de manifestantes já haviam ido às ruas em diversas capitais para protestar contra o ministro e cobrar do Senado uma resposta aos abusos da Corte. Na segunda e na terça-feira (5), carreatas e buzinaços em Brasília mantiveram a mobilização em alta.
A presença do público em atos realizados na Avenida Paulista, em São Paulo, em Copacabana, no Rio de Janeiro, e em capitais como Brasília e Belo Horizonte surpreenderam até mesmo os organizadores. A expectativa era de público reduzido, em razão das complicações judiciais enfrentadas por Bolsonaro e do desgaste causado pelas tarifas comerciais impostas pelos Estados Unidos. No entanto, a reação popular foi expressiva, sinalizando que a insatisfação com o Supremo tem ganhado capilaridade.
"O povo perdeu o medo do Alexandre de Moraes no domingo. Foi uma manifestação clara. Nós tivemos desde 2022 as maiores manifestações já vistas por todo o Brasil. O povo não suporta mais. Apesar da intimidação que ele faz com as prisões arbitrárias, o povo tá dando a resposta", disse o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) à Gazeta do Povo.
Analistas ouvidos pela reportagem destacam dois fatos recentes como combustível para esse novo ciclo de mobilizações: a aplicação da Lei Global Magnitsky pelo governo dos EUA contra Alexandre de Moraes, e a detenção do ex-mandatário. A resposta do ministro - que, no mesmo dia da sanção americana, fez um gesto obsceno em público durante um jogo de futebol - reforçou a percepção de que ele atua com deboche e desdém diante das críticas internacionais e domésticas. A avaliação oficial do Departamento do Tesouro dos EUA foi dura: Moraes teria promovido uma "caça às bruxas ilegal" contra cidadãos e empresas brasileiras e americanas.
O paralelo com o antipetismo ajuda a entender a força potencial desse novo sentimento. A rejeição ao PT começou a tomar forma no fim da década de 1980, quando Lula disputou a Presidência pela primeira vez. Àquela altura, setores da sociedade temiam uma guinada autoritária.
Posteriormente, com os escândalos de corrupção no governo quando o PT chegou ao poder, como o Mensalão, o sentimento se ampliou e mobilizou eleitores de diferentes perfis — muitos dos quais passaram a votar em qualquer candidatura que se opusesse ao partido.
O ápice dessa força foi o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, impulsionada por uma ampla coalizão de eleitores movidos mais pela rejeição ao PT do que por afinidade com o então candidato do PSL, hoje no PL.
Agora, a oposição tenta canalizar o crescente descontentamento com a Corte para o Congresso. Na Câmara e no Senado, parlamentares articulam obstruções e trabalham para reunir as assinaturas necessárias para abrir um processo de impeachment contra Moraes. O senador Ciro Nogueira (PP-PI), porém, vê pouco espaço político para essa pauta avançar: são necessários 54 votos para que a proposta seja aprovada no plenário do Senado, número considerado improvável diante da atual correlação de forças na Casa.
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Números mostram que rejeição ao STF e a Moraes furou a bolha
As recentes pesquisas apontam o tamanho do descontentamento da população com o STF. Levantamento feito pelo instituto DataFolha*, publicado na terça-feira (5), mostrou que 36% dos brasileiros reprovam o desempenho do Supremo, enquanto 29% aprovam. Aqueles que consideram regular somam 31%. Em relação à pesquisa anterior, realizada em março de 2024, a reprovação subiu oito pontos percentuais e superou a aprovação. Na época, 28% consideravam o trabalho do STF ruim ou péssimo e 29% bom ou ótimo.
O mesmo instituto também mediu, em junho deste ano**, o sentimento de orgulho e vergonha da população em relação aos ministros. De acordo com os resultados, 58% afirmaram ter vergonha do STF, enquanto 30% afirmaram ter orgulho. A pesquisa perguntou aos entrevistados se eles tinham "mais orgulho do que vergonha ou mais vergonha do que orgulho".
Para Juan Carlos Arruda, cientista político e CEO do Ranking dos Políticos, o desconforto com o Supremo Tribunal Federal está se espalhando por diferentes espectros ideológicos.
“A insatisfação com o Supremo deixou de ser um discurso apenas da direita. Hoje, ela começa a tocar também setores liberais, conservadores moderados e até eleitores de centro que veem com preocupação o acúmulo de poder no Judiciário.”
Arruda alerta que esse incômodo pode se consolidar como uma nova força política. “Pode estar surgindo agora um sentimento de que "qualquer coisa é melhor que esse STF" — ainda que essa "coisa" não seja Bolsonaro. Se esse sentimento se consolidar, ele pode virar uma nova força política: não um bolsonarismo clássico, mas um antipoder judicial difuso e mobilizador. E, como a história mostra, movimentos assim podem ter impacto real nas urnas.”
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“Fora Moraes” pode se tornar nova força popular
Responsável por organizar um buzinaço em Brasília, Deusélis Braga, coordenador do movimento "Influenciadores do Brasil", destaca que o sentimento contra o ministro Alexandre de Moraes pode ganhar força semelhante ao das manifestações de 2013, momento em que a população ocupou as ruas para protestar contra a então presidente Dilma Rousseff (PT).
“Eu participei dos 20 centavos, ninguém acreditava e virou uma onda. Aqui em Brasília foi excepcional. A gente subiu no Congresso Nacional e dali para lá teve o impeachment. Ninguém quer que subam lá, mas queremos que o Congresso faça seu papel: botar [para votar] a anistia já. Hugo Mota e Alcolumbre traíram a direita e não estão cumprindo o que prometeram.”
Ele também comentou que o buzinaço é o início de outras manifestações que podem ganhar corpo pelo país. “Para toda transformação, a gente precisa do início. O início é o buzinaço. A gente já está há três anos fazendo, mas agora tomou uma proporção muito grande. Está o Brasil todo fazendo. Hoje está emblemático, porque os deputados estão lá, o Senado e a Câmara estão paralisados, não tem votação enquanto não botarem as pautas que estamos reivindicando.”
Ativismo judicial acirra rejeição a Moraes e STF
Para o cientista político Elton Gomes, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se afastado de seu papel constitucional ao adotar uma postura ativista, ora atuando como “partido de oposição”, ora como “aliado” do governo, a depender da conjuntura. “O grande problema é que a Corte se imiscui em assuntos políticos. Isso torna a atuação do Judiciário cada vez mais partidarizada, enfraquecendo sua legitimidade institucional”, afirmou.
Esse comportamento, segundo Gomes, tem custo político e econômico. “O apoio às medidas da Corte tornou-se oneroso até para setores que antes a defendiam, como o empresariado. O desgaste se amplia à medida que ministros arrastam o plenário a decisões polêmicas e assumem protagonismo em embates ideológicos”, explicou.
Adriano Cerqueira, do Ibmec de Belo Horizonte, reforça que o sentimento crítico à Corte tem se expandido. “Há uma crítica maior fora do bolsonarismo, inclusive entre setores que antes não se manifestavam”, apontou.
Ainda assim, ele destacou que o ex-presidente Jair Bolsonaro segue sendo o “grande sujeito oculto” das manifestações, cuja marca política continuou presente mesmo sem a sua presença.
Antipetismo moldou política recente ao transformar rejeição ao PT em força eleitoral decisiva
A rejeição ao Partido dos Trabalhadores (PT) se consolidou como um dos fenômenos políticos mais duradouros e influentes do Brasil nas últimas décadas. Mais do que simples discordância partidária, o antipetismo se transformou em sentimento social, cultural e eleitoral profundo, mobilizando milhões de eleitores dispostos a votar “em qualquer um, menos no PT”.
O sentimento começou a ganhar força nos anos 1980 e 1990, quando o PT passou a disputar protagonismo na política nacional com forte ligação a sindicatos e movimentos populares. Para setores mais conservadores, o partido representava desordem, pautas radicais e ameaças à estabilidade institucional. A desconfiança cresceu conforme o PT ampliava seu espaço eleitoral.
O antipetismo se tornou ainda mais robusto com os escândalos de corrupção que marcaram os governos petistas, sobretudo o Mensalão, revelado em 2005. A partir dali, consolidou-se a associação entre o partido e práticas ilícitas na gestão pública. Essa percepção foi reforçada por amplas coberturas midiáticas e por declarações de lideranças políticas da oposição.
Entre 2013 e 2016, o país assistiu à eclosão de grandes protestos que reuniram milhões de brasileiros nas ruas. As manifestações, que começaram com pautas difusas, evoluíram para uma crítica direta aos governos do PT e desembocaram no processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff. O antipetismo foi o motor dessas mobilizações.
Em 2018, esse sentimento se converteu em força eleitoral dominante, ajudando a eleger Jair Bolsonaro à Presidência da República. Pesquisas à época indicavam que, para muitos eleitores, a rejeição ao PT era mais importante do que a identificação com um programa de governo alternativo. O “voto útil contra o PT” foi decisivo para consolidar a vitória do candidato opositor.
Metodologia
*: A pesquisa ouviu 2.004 pessoas, com 16 anos ou mais, nos dias 29 e 30 de julho. A margem de erro é de dois pontos, para mais ou menos.
**: A pesquisa entrevistou 2.004 pessoas em 136 municípios entre os dias 10 e 11 de junho. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos.










