O deputado federal Enrico Misasi (PV-SP) é um defensor do Marco Legal do Saneamento, recentemente aprovado pelo Senado e que agora aguarda sanção do presidente Jair Bolsonaro. O parlamentar, que está em seu primeiro mandato no Congresso, foi o vice-presidente da comissão da Câmara que discutiu o assunto e lidera a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Saneamento.
Misasi define o marco como o início de uma "nova era para o saneamento" e também como um possível "símbolo da retomada econômica do Brasil pós-covid". Para ele, porém, a implementação das metas da norma vai representar o principal desafio do governo Bolsonaro para o setor. "O grande teste do governo Bolsonaro em termos de saneamento vai se dar no dia depois [da sanção], em como o governo federal vai se organizar para fazer o marco do saneamento se tornar realidade, chegar na ponta", declarou.
O Marco Legal estabelece que o Brasil deve ter, até 2033, 99% de fornecimento de água potável e 90% para coleta e tratamento de esgoto. Misasi considera as metas factíveis, "na medida que se tenha dinheiro para isso". O deputado aposta na atuação do setor privado para impulsionar os investimentos no setor e vê o campo do saneamento como menos suscetível a instabilidades políticas e econômicas.
O deputado descarta a ideia de que o marco legal represente a "privatização da água", como adversários da proposta alegaram, durante a tramitação no Congresso. Ele, porém, diz concordar com a preocupação de que localidades menos ricas acabem descartadas pelos investidores e continuem desassistidas. "A solução que nós estamos apostando e estamos construindo é a solução dos blocos regionais que unem cidades rentáveis com periferias ou com outras cidades menos rentáveis", apontou.
O parlamentar conversou com a Gazeta do Povo sobre os próximos passos para o saneamento no Brasil e falou sobre possíveis vetos de Bolsonaro a trechos do projeto, sua proposta de destinar recursos de emendas parlamentares da saúde para o saneamento, e o posicionamento da Agência Nacional de Águas (ANA) como fiscalizadora dos dispositivos da norma. Confira a entrevista:
Com a aprovação do Novo Marco Legal, começa realmente uma nova era para o saneamento básico no Brasil?
Com certeza começa uma nova era para o saneamento. A questão é se nós vamos agora conseguir nos organizar para aproveitar o máximo que essa nova era pode trazer. Tem um potencial gigantesco, mas a gente pode aproveitar mais ou aproveitar menos. Porque o marco traz mais segurança jurídica para o setor, e portanto possibilita mais investimento privado, principalmente, e traz competitividade para o setor, o sempre que se reverte em benefício do serviço. E organiza alguns pontos centrais, como a questão dos blocos regionais, da uniformização da regulação através da Agência Nacional de Águas (ANA). Enfim, ataca alguns dos problemas crônicos da regulação do saneamento no Brasil.
Agora, eu sempre disse desde o começo do ano passado, quando a gente estava discutindo as medidas provisórias, que nós temos como Parlamento, como sociedade, os governos municipais, estaduais e federal, que nós temos que nos preocupar com o day after, o "dia +1", o dia depois da aprovação do marco, que agora chegou. Isso significa o quê?
Para que se consiga aproveitar ao máximo o que essa nova era do saneamento pode nos trazer, a gente precisa se organizar para azeitar as relações interfederativas nesse setor, para que estados, municípios e o governo federal atuem em conjunto. Nós precisamos fornecer ao menos financiamento ou know-how técnico para que os blocos regionais sejam formados e os planos e projetos regionais sejam feitos com qualidade técnica, precisamos equipar, com mais funcionários até a própria ANA, para que ela exerça sua nova função regulatória.
É uma série de ações que vão ter que ser tomadas agora, algumas que já se iniciaram, para conseguir efetivar o marco do saneamento em todas as suas potencialidades. É uma nova era sim; agora, a gente tem que se organizar para aproveitar ao máximo.
Lideranças que se opuseram ao marco regulatório disseram que a medida representa a "privatização da água", e que a água precisa ser vista como um direito, não como uma mercadoria. Como o senhor responde a isso?
Em primeiro lugar, não há nenhuma privatização forçada. Há uma organização da regulação para que o investimento privado esteja mais confortável em ser feito, tenha mais segurança para o investimento privado. E existe o fim dos contratos de programa, que são aqueles contratos renovados sem licitação com empresas públicas. Isso para que haja mais competitividade. Então, a primeira coisa que tem que desmentir é que esse é um projeto que força e obriga a privatizar tudo. Não.
Aqui, a nossa ideia é que haja competição entre o público e o privado entre quem presta o melhor serviço. Para mim não importa, e acho que também para os outros deputados, se é público ou privado que está fornecendo, contanto que tenha água limpa e esgoto tratado na casa dos brasileiros. Esse é o primeiro mito que tem que se desfazer em relação a essa objeção.
Em segundo lugar, mesmo quando se privatiza, não se privatiza a água. A gente acaba tendo uma dificuldade de entender, de separar o que é privatização e daquilo que é concessão de serviço público. O que vai se estimular é que haja licitações para que o serviço público — e não a água 1 seja privatizada, mas se abra para atores privados a prestação de um serviço público via concessão, como acontece em tantas outras áreas. Então, polarizar em cima do termo privatização, torna o debate menos claro.
O que está se discutindo aqui é em que medida a gente vai poder fazer concessões para que o setor privado atue como operador de um serviço que é público, que tenha regulação pública. O novo marco regulatório, o que ele quer fazer é criar boa regulação para que o setor privado consiga também trabalhar em prol do bem comum e do atendimento a um direito básico. Ninguém discute que a água não é uma mercadoria, que é um direito. E ela não vai ser privatizada.
Mas o que acontece é o seguinte: o tratamento da água e toda a operacionalização de um sistema de saneamento tem custo. E esse tratamento e essa operação podem ser feitos por atores privados via concessão, com regulação pública, com agência reguladora, com o MP em cima, com tudo.
Outro argumento contrário ao marco legal é de que apenas as localidades mais ricas seriam atraentes à iniciativa privada, e as mais pobres ou ficariam às custas do poder público ou permaneceriam desassistidas. O senhor concorda com essas observações?
Essa é uma questão que se discutiu muito e é uma preocupação genuína e justa. O que nós vamos precisar fazer para que isso não aconteça é justamente o mecanismo dos blocos regionais. Os blocos servem para fazer uma construção de cidades rentáveis, ou às vezes regiões rentáveis com regiões que não se sustentam do ponto de vista econômico-financeiro para que haja um equilíbrio, e portanto sejam viável.
Agora, muitas vezes o problema da viabilidade econômico-financeira do saneamento é uma questão de escala. Se você pega várias cidades juntas — é claro que tem que analisar uma situação concreta, por isso é importante ter plano e projeto com base em dados científicos, — mas muitas vezes pega várias cidades pequenas, que isoladamente não seriam interessantes, mas juntas elas se tornam economicamente viáveis. O investimento gera retorno. Diante dessa crítica ao marco legal, a solução que nós estamos apostando e estamos construindo é a solução dos blocos regionais que unem cidades rentáveis com periferias ou com outras cidades menos rentáveis.
Uma terceira crítica é que o marco legal retira dos municípios a possibilidade de escolherem seus próprios sistemas de saneamento.
Existe uma certa incompreensão. Todo mundo diz que saneamento é uma competência dos municípios. Agora, a gente tem que lembrar e não estou falando que está errado, mas eu queria colocar isso em uma perspectiva realista. Isso não está escrito na Constituição. O que existe, o que existiu, foi uma interpretação do Supremo Tribunal Federal, naquele caso da Cedae do Rio de Janeiro, dizendo que saneamento é interesse local e portanto, se é de interesse local, é de competência dos municípios [Cedae é a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, que atua no estado. A Constituição estabelece o saneamento uma "competência comum" de municípios, estados e da União].
Portanto, a primeira coisa que tem que se falar é que essa questão da competência dos municípios foi uma construção jurisprudencial do Supremo. Que me parece, em muitos sentidos, embora nós tenhamos que respeitar, muito criticável, principalmente com os efeitos que ela teve. O marco regulatório mantém a possibilidade do município renunciar a formação do bloco. E prestar o serviço de outra forma — autônoma, fazendo uma empresa municipal, fazendo uma licitação, enfim. Isso se preserva.
É claro, nós esperamos que haja uma construção política, e é aí que eu digo da necessidade de azeitar as relações interfederativas, entre governadores e prefeitos, para fazer os blocos do ponto de vista econômico-financeiro da melhor forma possível. Às vezes, o bloco vai ser o estado inteiro. Em um estado como Sergipe, se pode fazer uma licitação do estado inteiro. Em Minas Gerais, São Paulo ou Bahia, eventualmente os blocos regionais vão estar desenhados de outra forma. Mas, em última análise, embora todos os estímulos sejam para que o município integre o bloco, ele permanece tendo uma palavra final.
O marco regulatório estabelece a meta de que o Brasil deve ter, até 2033, 99% de fornecimento de água potável e 90% para coleta e tratamento de esgoto. É uma meta viável?
Elas são viáveis na medida em que tem dinheiro para isso. Agora, muitas vezes pode ser que, para colocar tanto dinheiro, você acaba infringindo aquele princípio da modicidade tarifária, das tarifas módicas para o acesso à água. Tem um instrumento no projeto para que, caso o atingimento da meta de universalização implique o desrespeito à modicidade tarifária, tem um gatilho para levar a meta para 2040, para que não seja muito oneroso. Acho que o marco foi muito engenhoso nesse sentido.
É factível sim para 2033. Basta que haja o dinheiro, a segurança, que a gente faça a nossa lição de casa. Agora, se isso implicar, em algumas regiões, em uma tarifa mais cara, e se entender que é mais cara num nível insustentável, pode-se postergar para 2040 o cumprimento da universalização. O que é importante é que a gente consiga num prazo de 15 a 20 anos universalizar o saneamento no Brasil. Isso é plenamente factível.
O senhor propõe que emendas parlamentares para a saúde sejam destinadas ao saneamento. Sabemos que o orçamento público é um "cobertor curto", que quando se coloca em um lado, se tira do outro. Privilegiar o saneamento não pode prejudicar a saúde?
O argumento que responde isso são os dados da OMS [Organização Mundial da Saúde], que todo mundo repete, o pessoal do saneamento gosta de falar, e é importante fazer essa catequese. A cada real que se investe no saneamento básico, são quatro reais economizados na área da saúde. Saneamento básico é saúde preventiva. Além de ser proteção ao meio ambiente, um direito básico, é saúde preventiva na veia.
Hoje, no Brasil, tem 15 mil pessoas que morrem de doenças transmitidas pela água. Ou seja, gente que não tem saneamento, não tem água potável em casa. Essa é a lógica que está por trás de permitir isso. Se nós temos que ter 50% para saúde [do total das emendas parlamentares], tem gente que coloca 50% para fazer a reforma do telhado da Santa Casa, para fazer uma banheira de hidroginástica. Isso tudo está dentro da saúde. Saneamento também está dentro da saúde. Sanear uma área que está sem acesso a esgoto tratado, que não tem água potável chegando, isso é um investimento tremendo na saúde.
Então eu não consigo enxergar [destinação de recursos ao saneamento] como retirar dinheiro da saúde. Para mim, colocar dinheiro em saneamento é colocar dinheiro em saúde, com um retorno que em outras áreas geralmente não se tem, porque se resolve o problema na fonte, e não no efeito. Se faz saúde pública preventiva.
O senhor acha que a ANA está capacitada para fazer a função de regulação do setor em âmbito nacional?
Não, hoje não está. Isso a ANA sabe, o governo sabe e nós sabíamos quando aprovamos [o marco]. Existe um acordo com o governo, que foi quem editou a MP que originou o Marco Legal do Saneamento, que: se você quer os fins, você tem que querer os meios também.
A gente quis dar à ANA essa função por uma questão muito justa, que é uniformizar a regulação de referência, as normas genéricas do saneamento no Brasil. A gente não está suprindo as agências locais, a gente está criando uma reguladora de referência nacional. Mas é claro que se você dá uma competência, você precisa dar os meios. Então hoje, a ANA não tem [os meios]. Mas há o compromisso de fornecer funcionários e fornecer todo o amparo instrumental para que ela exerça a nova competência legal que lhe foi designada. Nós propositalmente estamos reformulando a ANA para que ela possa exercer a função com competência.
O Brasil vive um período de instabilidade política e econômica. O país está apto a receber os investimentos necessários da iniciativa privada para o setor? As condições atuais do Brasil não poderiam afugentar os investidores?
Claro. Tudo que implique em instabilidade ou imprevisibilidade é um fator de risco que é contabilizado pelo investimento privado. Não há dúvida de que, sempre que houver instabilidade e imprevisibilidade, é um ponto a menos para um país que quer atrair investimentos privados. Por outro lado, nós temos um monte de atrativos.
Esse setor de saneamento tem muita coisa a ser feita que não implica muita tecnologia, as empresas já sabem como fazer, já têm o know-how para fazer. Não é arriscado. Se você faz um bom plano e um bom projeto, sabe que aquilo vai dar dinheiro, sabe qual é o retorno, sabe calcular com bastante previsibilidade qual vai ser o retorno do seu investimento.
Eu acho que temos sim uma lição de casa de pacificar as relações entre os poderes. Isso foi avançado nas últimas semanas, deu uma baixada na temperatura. Nós precisamos fazer disso uma característica permanente do país para atrair investimentos privados. Agora, eu não olho só pelo lado negativo. Principalmente no setor de saneamento, tem muita coisa que estimula o apetite do investimento privado, e que nós precisamos preservar e potencializar isso.
Ainda não houve a sanção do projeto. Há especulações de que o presidente Bolsonaro poderia, no ato da sanção, vetar trechos que desobrigam a licitação para a coleta de resíduos sólidos. Qual a expectativa do senhor para a sanção? Caso haja vetos, o senhor acha que a tendência seria de o Congresso mantê-los?
Com relação à sanção, a gente esperava que fosse essa semana [encerrada em 10/07]. Eu, pelo menos, esperava. Mas com o resultado positivo do presidente [para coronavírus], vai protelar. E é bom que a gente espere mais um pouco, para que o presidente… acho que é importante nós termos consciência disso, do potencial de transformação do novo marco regulador do saneamento. Acho muito justo a gente esperar que o presidente se recupere e possa estar em público novamente para fazer um ato de sanção com todas as formalidades e com todo o simbolismo que o momento merece.
[Sobre os vetos:] sou o coordenador da frente de saneamento, fui vice-presidente da comissão do PL do saneamento, mas não estou empoderado para negociar com o Executivo veto ou não. Comigo ninguém combinou nada. Foi muito mais uma combinação com o Senado. Eu não estou medindo bem a temperatura dos vetos. Sei que há um veto ali no artigo 20, do setor de resíduos sólidos, que o próprio setor está pedindo. Tem a questão da necessidade ou não de anuência dos prefeitos em processos de abertura capital ou de eventual privatização de estatais. Mas eu não tive participação nessa negociação de vetos.
Espero que não haja nada, e não me parece ter nenhum motivo pra ter, porque o projeto é basicamente o que o governo enviou como MP, Ministério da Economia, o do Desenvolvimento Regional (MDR), todos participaram ativamente da construção. Espero que não vá haver vetos centrais para a estrutura, para a concepção do novo marco, eventualmente apenas em algumas questões periféricas que tenham sido alvo de negociação no Senado. [O governo Bolsonaro e seu antecessor, o governo de Michel Temer, produziram medidas provisórias para o saneamento que continham textos similares ao do marco legal agora aprovado. As propostas perderam a validade.]
Qual a avaliação do senhor para o desempenho do governo Bolsonaro no campo do saneamento básico?
Eu acho que o fato de ter cacifado, editado uma nova medida provisória, que já tinha vindo do governo Temer, mas foi reeditada, é de muita valia. Eu acho que o MDR e o Ministério da Economia têm participado ativamente dessa discussão, colocado o tema no debate público, tem tido participação.
Agora, teve um programa de saneamento rural que o governo fez que eu não sei como está chegando na ponta, porque veio essa questão da Covid-19. Mas eu acho que já foi um grande mérito ter reeditado a MP, apoiado o novo marco, dado subsídio para o relator, para todo mundo que estava envolvido. Então, vou olhar o lado positivo: pelo menos fez essa discussão, e tem tido sucesso. O grande teste do governo Bolsonaro em termos de saneamento vai se dar no dia depois, em como o governo federal vai se organizar para fazer o marco do saneamento se tornar realidade, chegar na ponta.
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