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Serguei Cherkasov num restaurante em 2017, em Moscou, durante uma videochamada descoberta pelo Departamento de Justiça dos EUA
Serguei Cherkasov num restaurante em 2017, em Moscou, durante uma videochamada descoberta pelo Departamento de Justiça dos EUA| Foto: Departamento de Justiça dos Estados Unidos

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou no mês passado a entrega à Rússia de um cidadão russo que, segundo agências de inteligência estrangeiras, é um espião que usava o Brasil como base para suas operações. Em uma audiência com um juiz brasileiro, ele despertou suspeitas por se declarar culpado rápido demais e por não ter decorado detalhes de seu disfarce brasileiro.

O caso ocorre em um momento em que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se aproxima cada vez mais da Rússia. Em suas declarações, Lula vem repetindo informações falsas originadas na propaganda russa que visam culpar a Ucrânia (país invadido) pela guerra iniciada por Moscou em 24 de fevereiro de 2022.

Investigações da Polícia Federal apontam que o espião chegou ao país em 2010, conseguiu emitir um passaporte falso como um brasileiro, por meio dos quais se apresentava como Victor Muller Ferreira.

Por conta desse crime, ele já foi condenado a aproximadamente 15 anos de prisão pela Justiça Federal de São Paulo, mas ainda é investigado pela PF por corrupção, lavagem de dinheiro e espionagem. Apesar de ter autorizado sua entrega, Fachin decidiu que ele só poderá deixar o país quando essa investigação for encerrada. Até lá, permanecerá preso na Penitenciária Federal de Brasília. Seu nome verdadeiro é Serguei Vladimirovich Cherkasov, nascido em 1985 e, segundo o serviço secreto holandês, pertence à GRU, unidade de inteligência militar da Defesa da Rússia descendente da KGB soviética.

Ele foi descoberto em abril do ano passado, quando desembarcou na Holanda se apresentando como um brasileiro nascido em Niterói (RJ), em 1989 e com uma trágica história familiar. Levava consigo uma carta de apresentação, escrita em português e cheia de erros gramaticais, na qual contava que tinha um pai que o abandonou e uma mãe brasileira, que teria morrido de pneumonia. Teria assim sido criado por uma tia, com quem teria morado por anos no exterior.

O serviço de segurança holandês diz que ele é um oficial de inteligência do Kremlin que recebeu um “longo e extenso treinamento”. Seu objetivo, ao tentar entrar na Holanda, era trabalhar como estagiário no Tribunal Penal Internacional, o TPI, também conhecido como Corte de Haia, e que julga crimes de guerra e genocídio. No órgão, Cherkasov teria acesso a informações sobre investigações em andamento das atrocidades cometidas pela Rússia na invasão à Ucrânia. No mês passado, o TPI emitiu um mandado de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, acusando-o de, entre outros crimes de guerra, deportar ilegalmente crianças ucranianas para a Rússia.

“Se o oficial de inteligência tivesse conseguido acesso como estagiário ao TPI, ele poderia coletar informações lá e procurar (ou recrutar) fontes e conseguir acesso aos sistemas digitais do TPI. Assim ele teria conseguido dar uma contribuição significativa para a inteligência que o GRU busca. Ele também poderia ter sido capaz de influenciar processos criminais do TPI”, alertaram as autoridades holandesas em junho.

Ainda segundo a inteligência holandesa, esse tipo de espião, conhecido como “ilegal”, dificilmente é descoberto por usar pseudônimos, valendo-se de identidades forjadas no exterior, e que conta sua história misturando elementos falsos e verdadeiros.

“Os serviços de inteligência russos passam anos construindo ‘lendas’ para ilegais. Para isso, coletam informações, por exemplo, sobre como outros países registram e armazenam dados pessoais, mas também obtendo ou falsificando documentos de identidade ilegalmente. As informações podem, portanto, ser rastreáveis a uma ou mais pessoas reais, vivas ou mortas, bem como indivíduos que existem apenas no papel (nos registros das autoridades locais)”, afirmou a inteligência holandesa em junho do ano passado, quando informou sobre o caso.

Cherkasov foi deportado para o Brasil em abril e desde então ficou preso, inicialmente numa carceragem da PF em São Paulo, sendo transferido em dezembro para Brasília. Em julho, mês seguinte ao anúncio de que ele havia sido descoberto na Holanda, a Rússia pediu ao Ministério da Justiça brasileiro sua extradição, alegando que, em junho, um tribunal de Moscou o teria condenado por supostamente pertencer a uma organização criminosa de tráfico de drogas.

O pedido de extradição tramitou em sigilo até outubro do ano passado no STF, quando Fachin decretou nova prisão preventiva de Cherkasov, para garantir sua extradição para a Rússia – à época, ele já estava detido, por causa da condenação por uso de documento falso. O ministro constatou que o pedido de extradição atendia aos requisitos formais, como a existência de crime semelhante no Brasil e a declaração da Rússia de que lá Cherkasov não seria perseguido, submetido a pena superior a 30 anos, nem era buscado por motivo político ou militar.

No entanto, seguindo uma recomendação da Procuradoria-Geral da República (PGR), o ministro pediu mais informações à Justiça Federal de São Paulo sobre a condenação dele e também sobre as investigações da PF sobre o caso.

As informações que chegaram ao STF dão conta de que, além da condenação a 15 anos de prisão por uso de documento falso por nove vezes, Serguei Cherkasov passou a ser investigado por espionagem, lavagem de capitais e corrupção. A pedido da PF, a Justiça autorizou a quebra de seus sigilos bancário, telefônico e telemático, além do bloqueio de seus bens.

“Durante a referida apuração, foram apreendidas diversas mídias, que ainda se encontram sob análise, indicando que, as circunstâncias de tais falsidades estão relacionadas com atos de espionagem praticados no Brasil, nos EUA e na Irlanda, pelo menos, além da possibilidade da prática de corrupção em face de agente cartorário no Brasil e lavagem de capitais, com a compra de imóvel registrado no nome falso de Sergey Vladimirovich Cherkasov. Cumpre citar também que foram identificados indícios de outras pessoas”, diz trecho do inquérito da PF.

Nos Estados Unidos, apresentando-se como Victor Muller, Cherkasov conseguiu se matricular na renomada Universidade Johns Hopkins, em Washington, para uma pós-graduação em relações internacionais, de 2018 a 2020. Antes, entre 2014 e 2018, também com documentos falsos de brasileiro, estudou ciência política no Trinity College, em Dublin, na Irlanda. No Brasil, segundo as investigações, ele teria conseguido uma carteira de motorista subornando uma funcionária de cartório com um colar Swarovski de US$ 400 (R$ 2 mil, na atual cotação).

Ao analisar o caso, Fachin deixou claro que a extradição para a Rússia poderá ser adiada. Isso porque a Lei de Migração, em vigor no Brasil, determina que “quando o extraditando estiver sendo processado ou tiver sido condenado, no Brasil, por crime punível com pena privativa de liberdade, a extradição será executada somente depois da conclusão do processo ou do cumprimento da pena, ressalvadas as hipóteses de liberação antecipada pelo Poder Judiciário e de determinação da transferência da pessoa condenada”.

Na prática, Cherkasov poderá ter de permanecer no Brasil para cumprir pena pelos crimes cometidos aqui. Sua defesa já recorreu da condenação pelo crime de falsificação de documentos, mas a segunda instância ainda não julgou a apelação.

Em novembro, ele foi ouvido por um juiz auxiliar de Fachin no STF (veja no vídeo acima). O depoimento chamou a atenção de policiais federais pelo fato de ele ter concordado com a extradição e também pelas respostas evasivas e inseguras sobre os fatos que teriam motivado sua condenação. O juiz queria saber se ele estava ciente do motivo de sua extradição.

Serguei Cherkasov primeiro confessa que usava o nome de Victor. Indagado sobre por que usava documento com esse nome, ele respondeu de pronto: “Não, Excelência. Eu gostaria de permanecer em silêncio em relação a essa pergunta. Eu só gostaria de reiterar que eu quero ser extraditado para a Rússia, eu concordo as acusações que [a] Rússia fez e eu pretendo responder aos fatos dos meus crimes que são alegados pela Rússia, no meu Estado, o quanto mais rápido possível”.

Disse depois ter ciência do que está sendo acusado e questionado sobre quais fatos, respondeu que era sobre tráfico de drogas e organização criminosa. Quando o juiz pergunta sobre quando foi iniciada essa organização, ele responde que teria começado nela por volta de 2012 ou 2011. Nesse momento, o defensor público chamado para auxiliá-lo interrompe e diz que Cherkasov iria esclarecer os fatos para a Rússia. O juiz ainda perguntou a ele sobre informações de que ele teria exercido espionagem, mas o russo respondeu que iria ficar em silêncio.

Chamado a falar, o defensor público reforçou que Cherkasov quer se entregar voluntariamente e, assim, acelerar o processo de extradição. Nesses casos, o entendimento do STF admite que um ministro decida monocraticamente pela entrega ao país que pede a extradição, como fez Fachin em março deste ano. O ministro, porém, condicionou a entrega ao fim das investigações ou ao cumprimento da pena. Na prática, o espião poderá ficar bem mais tempo na prisão dentro do Brasil.

O caso de Cherkasov preocupa a PF porque reforça a percepção de que o Brasil se tornou base para espiões russos. Nos últimos anos, descobriu-se, com auxílio de agências estrangeiras, que há pelo menos outros dois russos que se estabeleceram no país passando-se por brasileiros.

A facilidade para obter documentos falsos e o fato de o passaporte brasileiro ser bem recebido em outros países, para onde viajam em busca de informações sensíveis, são fatores atrativos. Além disso, nos bastidores, há uma avaliação de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) perdeu capacidade de monitorar a atuação desses espiões, concentrando-se mais em questões internas. Informações de maior valor, como a real identidade de “Victor Muller Ferreira”, costumam chegar da inteligência de outros países.

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