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Ainda o Brexit: afinidade ideológica pode ser mais importante do que proximidade territorial
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O Brexit continua dando o que falar. Os mercados parecem já ter se acalmado um pouco, após o susto (pânico) inicial. É o que espero cada vez mais: devemos tomar muito cuidado para não confundir oscilações de curto prazo do mercado financeiro com a ideia liberal de que os mercados são soberanos. Variações diárias não dizem absolutamente nada.

É claro que “talk is cheap”, ou seja, como falar não custa nada, mais importante é observar a reação do dinheiro, pois ninguém gosta de brincar com seus investimentos, nem a esquerda caviar. Logo, as decisões de vender por conta do medo gerado com a saída britânica da UE dizem alguma coisa sobre a real preocupação de milhões. Mas eles podem estar todos equivocados quanto ao longo prazo.

Com isso em mente, comento hoje dois artigos publicados na Folha, um com viés mais pessimista e outro com tom mais positivo. Alexandre Schwartsman adota postura pessimista, acreditando que a vitória do Brexit pode significar “o canário da mina”, ou seja, o alerta de que o mundo começa a se fechar, contra a globalização. Diz ele:

A questão central no caso é o repúdio à livre circulação de trabalhadores no bloco, claramente exposta na questão da imigração. Uma piada local relatava que encanadores ingleses reclamavam da concorrência “desleal” de seus congêneres poloneses, que teriam o desplante de não apenas marcar visitas a seus clientes, mas – para horror local – efetivamente aparecer na hora marcada.

Isto não é um privilégio britânico. Por mais que a elite politica europeia tenha se empenhado em aprofundar a integração econômica do continente, sacudido por guerras sangrentas nos últimos séculos, a triste verdade, desnudada pela crise da Zona do Euro (um pedaço da UE), é que a população jamais comprou a ideia de uma união cada vez mais próxima (“ever closer union”), como expresso na Declaração Solene da UE.

Ao contrário, o que sobreviveu aos planos de integração e hoje se manifesta de forma crescente é um nacionalismo xenófobo, que não raro descamba para o racismo. A faceta mais visível do fenômeno no continente é a ascensão da Frente Nacional na França, personificada por Marine Le Pen, mas está longe de limitar a isto, encastelado nos governos da Hungria e Polônia, ganhando força na Holanda, Alemanha e outros países da UE, para não mencionarmos alguns aspectos da candidatura Trump nos EUA.

São forças que agem no sentido contrário da integração, frequentemente aliadas a seu antípoda ideológico, partidos de esquerda e sindicatos, temerosos desde sempre acerca dos efeitos da globalização.

Com tom mais positivo temos o diplomata economista Marcos Troyjo, que também reconhece esse lado xenófobo e antiglobalização na decisão, mas aponta para outro, aquele que venho destacando aqui:

Percebe-se claro medo de descaracterização da cultura britânica com aumento relativo da população islâmica. Ojeriza à imigração.

Na mesma medida, nostalgia pelo passado de grandeza —”império sobre o qual o sol jamais se punha”. E, ainda, proteção a setores e postos de trabalho na esfera industrial amplamente ameaçados pela globalização.

Contudo, também influiu na decisão britânica uma grande aversão à burocracia comunitária sediada em Bruxelas. Não é apenas uma questão de velocidade. Embora, nesse quesito, a morosidade europeia seja assombrosa.

[…]

Por que os britânicos deveriam dar-se as mãos eternamente a uma região do mundo —a Europa— que demograficamente envelhece e economicamente tende à estagnação?

E, ainda, trata-se sobretudo de um espaço de manobra —assim argumenta a elite dos “brexiters”— cada vez menor para que Londres negocie seus próprios interesses.

Nessa linha, há uma possível interpretação da consulta britânica como algo que deveria centrar-se menos no binômio “populismo-protecionismo”, e mais no que o Reino Unido poderia conseguir em termos de autonomia negocial para a reconstrução de seu perfil como “global trader”.

Troyjo lembra que, na era moderna da globalização, em que bens cada vez mais intangíveis circulam pelo mundo, o aspecto “regional” perde relevância. A antiga limitação da “circunstância territorial” se afrouxa, permitindo um comércio mais interligado apesar das distâncias.

Nesse novo cenário, os britânicos teriam mais liberdade para fechar acordos com países distantes geograficamente, mas com maior afinidade ideológica do que a própria UE, cuja burocracia tem asfixiado o comércio local. “Nesse novo xadrez geoeconômico, a integração pode ser menos intensa com seu vizinho ou seu primo, e mais vigorosa com quem pensa como você”, resume Troyjo.

Qual das duas visões vai prevalecer? O tempo dirá. Particularmente, acredito que há ambas as forças em ação. Tanto a xenofobia e o medo da globalização, como o cansaço com as amarras burocráticas e protecionistas da própria UE. Ou seja, a vitória do Brexit pode significar tanto um ataque à globalização, como uma ode a ela. É muito cedo para dizer, e creio que os britânicos, com o histórico de liberalismo que têm, merecem algum crédito.

A imprensa em geral tem pintado o quadro de forma simplista, acusando de ignorantes os que escolheram a saída. Trata-se de pura ignorância ou preconceito ideológico da própria imprensa. Há claros argumentos em prol da saída, que não representam um desprezo pela integração comercial, e sim um desejo de permanecer livre para tal integração, com o mundo todo.

Como venho repetindo: globalização sim, governo mundial, não!

Rodrigo Constantino

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