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Chernobyl e o império da impostura
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Por João Paulo Seixas, publicado pelo Instituto Liberal

A série Chernobyl da HBO, dirigida por Craig Mazin alcançou rápido e merecido sucesso, obtendo a melhor avaliação já conquistada por uma série no IMDB, superando clássicos como Os Sopranos e The Wire. A obra relata a tragédia causada pela explosão da usina nuclear de Chernobyl, na cidade de Prypiat, na antiga URRS. Surpreende tanto por seus méritos estéticos e narrativos quanto pelas grandes atuações de Stellan Skarsgard e Jared Smith ,que interpretam Boris Scherbina, vice-presidente do Conselho de Ministros da União Soviética, e Valery Legasov, cientista responsável por investigar a explosão do reator.

Além de seus méritos artísticos, a mais surpreendente e duradoura contribuição trazida pela série se encontra no delicado e bem construído retrato do clima de terror, mentira e tensão existente no ambiente político e social da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Especialmente no Brasil, o estudo sobre a realidade da URSS – e, diga-se de passagem, de quase todos os regimes socialistas – é matéria propositadamente jogada para escanteio pelos currículos escolares e universitários. Muito se discute, com razão, sobre os horrores do Nacional-Socialismo e do Fascismo. Por outro lado, há um silêncio sepulcral sobre os campos de concentração soviéticos (Gulags), sobre o Holomodor na Ucrânia e sobre os democídios praticados por Stalin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot, Ho Chi Minh, Fidel, Nicolae Ceausescu e outros facínoras idolatrados pela narrativa socialista.

Chernobyl centra sua narrativa na importância da verdade e nas consequências que as mentiras necessariamente manifestam. A URSS talvez tenha sido o experimento humano em que a mentira foi finalmente elevada à sua potência absoluta; lá absolutamente tudo era mentira. Hoje se sabe que boa parte das estatísticas econômicas e de produção eram inventadas pelos planejadores centrais, uma vez que sem preços fixados pelo mercado era impossível saber as quantidades de bens e serviços realmente demandadas pela população, a qual era quase que majoritariamente abastecida por um intenso e pujante mercado negro de produtos roubados ou contrabandeados, o que por sua vez alimentava uma enorme corrupção dos oficiais soviéticos – uma consequência antecipada por Ludwig Von Mises quando irrefutavelmente apresentou a impossibilidade do cálculo econômico sob um regime socialista ainda na década de 1920.

A revolução socialista de 1917 prometeu ao povo russo o paraíso na terra, mas rapidamente entregou-lhe o nono círculo do inferno de Dante, o abismo gelado do lago Cócite, aquele destinado aos traidores, enganadores e mentirosos. A imperfeição da realidade trazida pela revolução, marcada por mortes, perseguições e principalmente pela fome destoava de tal maneira do paraíso prometido que só restava aos soviéticos, tanto aos perpetradores como às vítimas, a mentira e a falsificação total da realidade. Se o paraíso ainda não havia chegado, era necessário falsificar a história, apagar indivíduos inconvenientes dos anais do partido, encontrar culpados pelas falhas na utopia socialista. Daí iniciam-se os grandes expurgos Stalinistas, as perseguições aos fazendeiros Kuláks que levaria ao Holomodor e a criação da monstruosa máquina de propaganda e repressão criada para falsificar a realidade e eliminar todos aqueles que ousassem apontar que o imperador estava nu e que o socialismo era uma farsa demoníaca. O resultado, embora as cifras ainda sejam objeto de disputa, certamente se aproxima de algumas dezenas de milhões de mortos.

Na URSS a mentira e a vigilância tornaram-se onipresentes: em alguns estados satélites estima-se que um em cada três indivíduos atuava direta ou indiretamente como um informante do governo. Era impossível dizer a verdade mesmo dentro de suas próprias casas. A série constrói com precisão o clima de vigilância absoluta que vigorava no regime soviético. Em uma dada cena, Boris Scherbina alerta Legasov para que não expresse críticas veementes às ordens emanadas do Kremlim, pois mesmo que estivessem sozinhos em uma sala fechada, ainda poderiam ser escutados pela KGB. Os relatos do clima de terror e mentira são presenças constantes em boa parte da literatura que relata a vida na URSS, em especial em Aleksandr Solzhenitsyn, Orlando Figes, Alexander Zinoviev, Stephane Cortouis e Svetlana Aleksiévitch. Solzhenitsyn conta que muitos dos membros do partido enviados para os Gulags estavam tão profundamente convencidos da infalibilidade do sistema socialista que se negavam a conhecer sua própria realidade, preferindo elaborar histórias mirabolantes sobre o motivo de terem sidos enviados para aquelas ilhas de terror e sofrimento, muitos iam tão fundo em sua negação à realidade que chegavam a admitir sua culpa, mesmo que seu único crime tivesse sido discordar de um “camarada” de hierarquia superior. Um ambiente semelhante é descrito pelo psiquiatra Viktor Frankl em sua experiência de cárcere nos campos de concentração nazistas. Ao que parece, o inferno é semelhante onde quer que se instale.

Frankl e Solzhenitsyn parecem concordar em que os traços precursores do totalitarismo são o engano, a mentira e a inautenticidade individual. Ambos parecem convergir, como brilhantemente resumiu Jordan Peterson, em que “a mentira deturpa a estrutura do Ser. A mentira corrompe a Alma bem como ao Estado e uma forma de corrupção retroalimenta a outra”. Peterson, em realidade, tem um capítulo brilhante em seu best seller 12 regras para vida em que trata exatamente da importância da verdade e da capacidade destrutiva das mentiras. Peterson ensina que é nossa responsabilidade como indivíduos enxergar aquilo que está diante de nossos olhos de forma corajosa e aprender sobre isso, mesmo que seja terrível e doloroso. É esse senso de responsabilidade e amor pela verdade que impele o cientista Valery Legasov a contrariar os interesses da burocracia sem face do partido, mesmo que às custas de sua própria liberdade, integridade física e legado.

Outra contribuição interessante trazida pela série é o relato do funcionamento da burocracia soviética. Os indivíduos que serviam ao regime acostumaram-se tanto com as mentiras oficiais que temiam a verdade, temiam contrariar ordens claramente emanadas por autoridades incompetentes, passavam a não mais exigir explicações ou provas concretas mesmo que fossem ordenados a tomarem decisões desumanas que poderiam vir a custar centenas de milhares de vidas. A única coisa que importava era a verdade emanada pelo comitê central do partido – apenas o Estado conhece a verdade.

O acidente de Chernobyl, como vai ficando cada vez mais claro ao longo do desenvolvimento da série, não é apenas o resultado de um falha humana ou técnica, mas sim a consequência do acúmulo de uma teia insustentável de mentiras que corroí o tecido social e a alma de cada indivíduo que escolhe participar voluntariamente do jogo de poder.

As mentiras constituíam as bases de areia sobre as quais equilibrava-se o regime soviético. Em uma cena memorável da série, Mikhail Gorbatchov demonstra que sua preocupação inicial com o desastre não eram as vítimas, mas sim o impacto que o incidente teria sobre a percepção do poder Soviético nos inimigos. Tratava-se de um verdadeiro império de impostura e aparências no qual toda a organização social operava sob títulos e pretextos falsos, onde o único valor que realmente importava era o poder. Chernobyl é um relato poderoso sobre o custo das mentiras, preço que, como a história nos revela, normalmente é pago com o sangue e as lágrimas dos inocentes.

Por outro lado, a verdade, como nos mostra Legasov, é capaz de libertar. Mesmo quando praticada por um único indivíduo tem a força de derrubar impérios. O papel que desempenharam Margaret Thatcher, Ronald Reagan, João Paulo II e Aleksandr Solzhenitsyn na queda da URSS é testemunho radiante da força que a alma individual movida pela verdade pode alcançar. O texto final de Legasov é memorável e encerra com perfeição uma grande obra de arte. “Nossos segredos e mentiras são praticamente o que nos define. Quando a verdade ofende, nós mentimos e mentimos, até que não nos lembremos mais que ela existe, mas a verdade ainda existe. Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Cedo ou tarde essa dívida deve ser paga.”

Chernobyl é uma grande lição sobre a força da verdade e sobre a corrupção das mentiras.

*Sobre o autor: João Paulo Seixas é advogado, formado pela Universidade Católica de Petrópolis em graduação sanduíche com Universidade do Porto-PT. Pós graduado pela escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Interessado em Direito, Economia, Política, História, Literatura e Mitologia.

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