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Como agregar ao debate com a razão
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O filósofo Arthur Schopenhauer escreveu um ensaio sobre como vencer um debate sem precisar ter razão, em que elenca 38 “estratagemas de erística”, ou seja, instrumentos retóricos e falácias lógicas para “derrotar” o adversário num embate intelectual. Entre os mais conhecidos está o famoso ad hominem, ou seja, o ataque pessoal, que mira no mensageiro e ignora a mensagem.

Na era das redes sociais, essa tem sido a modalidade mais usada, sem dúvida. Foi o tema da coluna de Lionel Shriver na The Spectator da edição comemorativa de seu 190.º aniversário. Absorvendo com perfeição a missão da tradicional revista conservadora britânica, o autor oferece inteligência e elegância aos leitores, num mundo que definitivamente anda em falta dessas qualidades.

Shriver começa citando o caso de uma representante do Partido Democrata americano, Maxine Waters, que, num protesto na Califórnia, exortou todos aqueles que encontrassem um político republicano num restaurante, loja de departamento ou posto de gasolina, a sair e formar uma pequena multidão, para gritar que ele não era bem-vindo ali ou em qualquer lugar público.

Eis, constata com tristeza o autor, no que se transformou a política americana atual. Os ativistas democratas estão cada vez mais ensandecidos e raivosos, incitando a violência verbal ou mesmo física contra os defensores de Trump. De fato, temos visto vários casos de intimidação ou agressão, como o de um adolescente que teve seu boné “Make America Great Again” tirado à força e roubado por um funcionário de um bar, que gritava e colocava o dedo na cara do rapaz.

Mas, se os democratas se transformaram numa esquerda radical intolerante, não dá para afirmar que a retórica do próprio presidente Trump desde a campanha, por sua vez, tenha ajudado muito a criar um ambiente de debate civilizado. O clima é de uma briga de vida ou morte em que ambos os lados encaram o outro como um inimigo mortal, e nesse caso as luvas de pelica são abandonadas e substituídas por um “vale tudo” raiz, sem regras.

Se você jura que está disputando o poder com fascistas que querem destruir sua nação e alterar significativamente todo o seu estilo de vida, então qualquer reação mais enfática parecerá tímida diante do perigo. Claro que existem fascistas de fato, à esquerda e à direita. Mas será que todo simpatizante de Obama é um comunista que deseja transformar a América numa Venezuela? E será que todo simpatizante de Trump é um supremacista branco que quer o retorno da escravidão?

Não quero bancar o “isentão”. Não vejo com equivalência os dois lados, até porque sei muito bem que quem começou e foi avançando com essa agenda de “discurso de ódio”, monopólio das virtudes e demonização do adversário foi a esquerda. Mas, uma vez que o gênio saiu da garrafa, ele dificilmente retornará a ela. Óbvio que parte da direita aprenderia a usar os mesmos métodos e a reagir da mesma forma, com o sinal trocado.

Os insultos que não só Trump como seus eleitores receberam foram sem precedentes na história americana. A própria imprensa jogou lenha na fogueira, deixando o jornalismo de lado e agindo como torcedora fanática, tendo depois de encampar uma cruzada contra as “fake news”, como se não tivesse sido ela mesma a grande fábrica de notícias falsas ou deturpadas.

A premissa por trás dessa postura é a de que o outro lado tem intenções ruins, ou seja, não se debate os meios propostos, e sim o suposto caráter dos outros. A esquerda passou a considerar que os conservadores não são pessoas apenas equivocadas, mas imorais, insensíveis, egoístas, preconceituosas, estúpidas ou “deploráveis”, como disse Hillary Clinton. Já os republicanos pensam que todo “liberal” (palavra que, no contexto americano, identifica pessoas mais à esquerda) é sentimentalista, infantil, sem humor, autoritário e ignorante.

São características sempre pessoais, que não falam da essência das questões, das visões de mundo, de como o outro chegou às suas conclusões. Que muitos preenchem bem essas descrições não resta dúvida. E as redes sociais deram voz a eles, o que fez com que uma minoria barulhenta parecesse a maioria. Mas será mesmo que todo democrata é uma criança mimada idiota? E será que todo republicano é um obscurantista tosco e racista?

Como cada um chegou ao seu ponto? Só saberemos se perguntarmos, e estivermos realmente interessados na resposta, em compreender suas razões. A arte da conversação sempre foi fundamental por isso. Podemos pensar em quem conhecemos pessoalmente, gostamos, mas diverge de nosso ponto de vista em muitos aspectos: não há outra postura, bem mais tolerante, uma vez que não colocamos em xeque seu caráter ou suas intenções?

Infelizmente, não vivemos na era dos argumentos, mas sim dos xingamentos. Essa ira toda, porém, impede o debate que realmente agrega valor, e acaba se tornando pregação aos já convertidos, numa bolha ou seita fechada. Shriver recomenda aos democratas os vídeos de Jordan Peterson, cujo livro novo já foi tema de resenha aqui. A mensagem de Peterson pode ser considerada de centro-direita, e se analisada em detalhe fica claro não ter nada de radical. Mas sua postura é que tem atraído tanta gente, diz Shriver. O psicólogo canadense quase nunca ergue o tom da voz, mantém a calma, escuta o outro e espera para falar. Quando fala, apela à razão, usa lógica, evidências, e com isso demonstra incrível poder de persuasão.

Sem civilidade não há respeito mútuo, não há diálogo possível. Não quer dizer, naturalmente, que seja possível debater com todo mundo. Com extremistas, com fascistas de verdade, não há diálogo viável. Mas será que não estamos extrapolando? Será que todo aquele que discorda da gente é mesmo um radical fascista? Não basta mais discordar, é preciso vilipendiar o interlocutor como se fosse alguém ruim, malvado?

Repito: não finjo ser imparcial nisso. Condeno a esquerda por ter destampado a garrafa do gênio. Mas o importante não é apontar culpados, e sim resgatar o velho e bom debate, se ainda for possível. Para tanto, a direita também terá de fazer sua parte, reconhecendo que a reação de alguns que falam em seu nome saiu do controle. A meta não deve ser vencer o debate sem ter razão, e sim agregar ao debate usando a razão. Podemos ao menos tentar. Devemos isso aos nossos filhos e netos e ao legado de nossa civilização.

Texto originalmente publicado pela Gazeta impressa

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