
Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Se é perfeitamente sabido que o aborto é um tema que provoca atritos e polêmicas entre os liberais e, particularmente, entre liberais e conservadores, de antemão deixamos claro que estamos entre aqueles que sempre o repudiaram com o status moral de um assassinato. Por isso, é claro, apenas o título simples e direto da obra do professor Francisco Razzo, “Contra o aborto”, lançada recentemente pela editora Record, já nos despertaria as maiores simpatias. Ocorre que o livro, por óbvio, é mais que sua capa.
O texto de orelha é assinado pela ativista e ex-feminista Sara Winter, que realizou um aborto no passado. Em vez de um comentário filosoficamente articulado, Sara presta sua contribuição com um testemunho pessoal – e o convite para ler a obra de Razzo não poderia ter sido feito de maneira mais impactante. Diz ela: “Hoje me dedico a contar minha história e a tentar salvar vidas. Mas tenho absoluta certeza de que, se tivesse lido esta obra antes, eu teria dois filhos ao invés de um filho vivo e outro morto”.
Confessamos ser um dos textos de orelha mais poderosos que já lemos. Ele já introduz o tom da atitude que Razzo pretende adotar ao redigir seu trabalho, debruçando-se sobre tema de tal monta que, como diz o texto de apresentação assinado por Gustavo Nogy, deveria ser tratado “por meio de vagarosas (e necessariamente vagarosas) discussões éticas e legislativas, com a gravidade e a minúcia técnica” que sua natureza demanda, com preocupação confessa com a sensibilidade humana.
O autor frisa que “uma mulher prestes a interromper a gravidez não precisa de argumentos filosóficos”, ou ao menos não tanto quanto de “apoio de sua família, de seus amigos, pais, enfim, do generoso acolhimento de sua comunidade” – de preferência no interesse de que mude de ideia. O propósito nunca é apedrejar pessoas, vociferar contra o ser humano que experimenta uma angústia extrema. Em vez disso, o que Razzo pretende é qualificar o debate, de onde saem as posições e direcionamentos que influenciarão as pessoas na tomada de suas decisões. É lançar um facho de racionalidade sobre um problema eivado dos mais variados matizes de baderna e slogans irracionais, a se imporem como autoridades soberanas em problema que diz respeito ao próprio lugar da vida humana na consideração social.
O argumento principal do autor virá na quarta e última parte do livro, que repete o seu título: “Contra o aborto”. Seu mote está, em primeiro lugar, em desafiar o que chama de “ontologia materialista”, um pressuposto paradigmático que presume estarem “os fenômenos da subjetividade e da vida psíquica – como sensação, percepção, crença, interesses, desejos, imaginação e até os pensamentos” limitados a “subprodutos complexos que emergem do mundo físico e cuja compreensão da vida humana como um todo – existencial, psíquica, intelectual, ética, estética, social, política e religiosa -, em última instância, sempre será dada, porque só pode ser dada e investigada pelas ciências empíricas”.
Esse paradigma, que evidentemente carece de qualquer pretensa neutralidade, é o que influencia a tomada das posições favoráveis ao aborto dissecadas na obra. Para além de confundirem o corpo da mulher com o corpo do embrião/feto, como se este último equivalesse ao primeiro, induzem a atropelos dogmáticos (no pior sentido) de definição da vida e da personalidade humanas – como Razzo se esforça bem por demonstrar, arbitrários – que as identificam e qualificam em seu valor e respeitabilidade a partir de critérios relativistas como a consideração alheia a seu respeito – de modo a que, por exemplo, decorressem da “opinião” ou dos “sentimentos” da mãe – ou o seu grau de consciência.
O objetivo de Razzo é demonstrar que a “pessoalidade” e a consequente dignidade pessoal daquilo que chama de “vida por nascer” não dependem desses fatores, sendo inerentes e estabelecidas. Em respeito ao seu profundo cuidado com a definição criteriosa dos vocábulos e expressões empregados e com o encadeamento harmonioso e preciso dos argumentos para construir seu ponto de vista, o que naturalmente ecoa sua formação em Filosofia, não daremos sequer um passo além em transcrever essa argumentação. Fica com o leitor a tarefa de se aventurar em suas páginas e apreciar o pensamento de Razzo in loco para construir seus próprios julgamentos – e o autor está aberto a eles. Ele deixa claro que quer municiar todos os interessados, contrários ou favoráveis ao aborto, com instrumentos para tratar o tema com a maturidade que tanto tem faltado.
Para isso estão ali todas as partes anteriores do livro. As duas primeiras, “Como o aborto deve ser debatido – e combatido” e “Primeiro precisamos falar destas coisas: filosofia, retórica, democracia e violência”, existem para “preparar o terreno”. “Preparar o terreno”, no entanto, é exatamente um dos principais propósitos desse livro. Razzo encontra um território conflagrado e arrasado, em que opiniões e subjetividades se investem do caráter de autoridades, reivindicando uma suposta prerrogativa de a decisão majoritária revolver os fundamentos da realidade – se a maioria decidir que o feto é apenas uma “coisa”, podemos abortar. Se a maioria decidir que podemos fazer montanhas voarem, elas literalmente voarão. Aí, seguindo nesta linha esquizofrênica, para o Inferno o apelo do bom senso; que se lasque quem pretender travar uma discussão tão crucial, que diz respeito ao resguardo da própria vida humana, o direito maior que devemos proteger para conviver em sociedade, com base em instrumentos tão dispensáveis quanto, digamos, argumentos racionais (!).
A reflexão do livro, antes de sua parte final, é, portanto, mais sobre como conversar sobre aborto e como não conversar sobre aborto do que sobre o mérito da questão em si. Dando sequência a essa abordagem, a terceira parte, “Imposturas intelectuais e políticas: a propaganda pró-aborto”, é uma utilíssima construção de síntese lógica e histórica que, da filósofa objetivista Ayn Rand até o ministro do STF Luiz Roberto Barroso e a própria ONU, passando pelo Católicas Pelo Direito de Decidir, por Eliane Brum e pela Planned Parenthood, mapeia a construção de um verdadeiro império retórico, imposto inclusive por cima da autoridade dos Estados-nações, em razão de “pressões da comunidade internacional” e de “influentes movimentos sociais que atuam em várias camadas da sociedade”, arquitetando “uma complexa rede de influência formada por grupos engajados em vários níveis de atuação e com amplo respaldo de intelectuais, acadêmicos, filósofos, jornalistas, juristas, médicos e até teólogos” – tudo para travestir de “debate” e de razoabilidade o que nada mais é que propaganda maciça a favor do aborto.
Para construir algo, por vezes é preciso destruir o que está em seu lugar, ou pelo menos desembaralhar o que está completamente bagunçado. Essa obra de paciência, ao mesmo tempo que de urgência, é o principal mérito desse mais jovem produto da lavra de Francisco Razzo.
Aqueles que, como nós, já não admitem a moralidade do aborto encontrarão aí novas perspectivas para organizar as próprias ponderações e um panorama precioso a respeito da dimensão de poder e destruição que o adversário logrou êxito em obter. Aos demais, cumprirá o papel de reajustar a linguagem e o canal de comunicação para que algo possa ser dito sem que nos restrinjamos a cartazes com palavras de ordem ou militantes seminuas – e, quem sabe, o resultado não seja a salvação de mais vidas, como a do filho de Sara Winter que não pôde ver a luz do dia. Realização mais nobre do que essa, não conhecemos nenhuma que um livro possa conseguir.
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