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“Fastos da Ditadura Militar no Brasil”: liberalismo monárquico versus República da Espada
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

Aquele que se deparar com um exemplar do pequeno livro Fastos da Ditadura Militar no Brasil, assinado por Frederico de S., sem nenhuma informação prévia, pode pensar que lerá sobre acontecimentos das décadas de 60, 70 ou 80 do século XX. Terá uma surpresa ao folhear este clássico e perceber que é uma coletânea de artigos publicados entre dezembro de 1889 e junho de 1890.

A ditadura militar em questão não é o regime iniciado pelos militares que participaram da deposição do presidente João Goulart, mas a República da Espada, alcunha pela qual ficou posteriormente conhecido o período de domínio militar marcado pelos governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, os dois primeiros presidentes brasileiros, após o golpe de 15 de novembro de 1889 que destronou o imperador D. Pedro II – até hoje homenageado com um feriado sob o nome de “proclamação da República”.

Frederico de S. é na verdade o pseudônimo de Eduardo Prado (1860-1901), um importante jornalista, advogado e escritor, membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, amigo do Barão do Rio Branco e do escritor português Eça de Queiroz. Graças a essa amizade, Eça ofereceu a Prado espaço para publicar na Revista de Portugal a série de artigos que compõem os Fastos, um registro para a posteridade – que seus compatriotas contemporâneos não podiam ler, ao menos não livremente.

Monarquista decidido, Prado se tornou um dos mais emblemáticos militantes da causa nos primeiros tempos de morte do regime sob o qual cresceu e que aprendeu a admirar. Alguns aspectos de seu pensamento, que se compreendem em seu tempo, podem merecer críticas. Por exemplo, é evidente que a monarquia brasileira, tal como ele a descreve, era um dos regimes mais liberais e politicamente abertos de seu tempo, mas também é certo que seu parlamentarismo era aristocrático, suas eleições não eram totalmente lisas e a intervenção do Poder Moderador era muito mais necessária do que se gostaria.

Não há que dizer que havia ali o “suprassumo” da representação popular; para a sua época, no entanto, era dos melhores sistemas na prática, e compreende-se o elogio de Prado. Também não tenho muita afinidade com as críticas algo excessivas que costuma fazer aos Estados Unidos, mas é outra postura que se compreende, diante do fetiche norte-americano que seduzia os seus adversários, os republicanos, desejosos de transplantar para o Brasil fórmulas acabadas de outros países, menosprezando o processo particular de formação nacional.

Postos de parte esses elementos, os textos são sensacionais, redigidos com a revolta de quem, no calor dos acontecimentos, assistiu à tomada do poder, em um país com total liberdade de imprensa e esforço de aperfeiçoamento de um sistema representativo de bases políticas liberais, por militares afeiçoados à prática de pronunciamentos políticos, enfeitiçados pela ideologia castradora do Positivismo comteano, e por liberais republicanos que, não obstante o seu liberalismo de princípios e pretensões, acabaram por se fazer cúmplices de inúmeras práticas de censura e perseguição com o pretexto de efetivar a República e sufocar os monarquistas.

Ao longo dos seis artigos que constituem a coletânea, nas pouco mais de 150 páginas do volume publicado pela editora do Senado Federal, o espetacular polemista alveja nomes sagrados do panteão republicano recém-formado em seu esforço por sepultar o regime anterior e desonrar o Império de D. Pedro II. Não poupa o marechal Deodoro da Fonseca – o “generalíssimo ditador”, acusado de ser patrimonialista, nepotista e sem controle; o teórico e ministro da Guerra Benjamin Constant, a quem acusa de sequer arriscar a vida em qualquer batalha, responsável por desvirilizar o Exército com as teorias antimilitares do pensamento positivista, ingrato que desfrutou da benevolência do imperador que ultrajou; o ministro dos Negócios Estrangeiros, Quintino Bocaiúva, que, embora não fosse positivista, é acusado de ceder parte do território brasileiro à Argentina, descumprindo o acordo feito pelo Império de que os Estados Unidos decidiriam a querela como julgador imparcial, devido à sua “tietagem” da República Argentina, e que foi enfático e desavergonhado em admitir decretos censores, aplaudir fechamentos de jornais e punições de jornalistas; e, finalmente, o grande Rui Barbosa, que, se protagonizou páginas nobres da história combalida da República Velha, nesse período realmente se fez cúmplice de um autoritarismo imaturo e desordeiro, além de ser criticado pela política econômica que marcou a conhecida crise do Encilhamento.

“A imprensa brasileira, hoje tão submissa, nem sequer lamenta a perda da própria e antiga liberdade com que ela noutro tempo ridicularizava, e às vezes insultava, o velho imperador, simpática e generosa fisionomia, uma das mais belas deste século, uma das que o mundo civilizado mais admira. Que terrível lição recebe todos os dias a consciência dos jornalistas brasileiros, reduzida somente à liberdade da apoteose, quando tenham agora de falar dum soldado ambicioso, para quem eles não passam de um rebanho encarcerável ou fuzilável à vontade e que só se mantém livre e vivo com a condição de elogiar, de elogiar ainda, de elogiar sempre…”, lamentou Eduardo Prado, que enuncia em seus artigos com destaque o horror das prisões e fechamentos de veículos em sucessão, denunciando que o liberalismo monarquista da época era sofisticado, prevenido contra o veneno do despotismo militarista que tomava conta do país com o golpe republicano.

Acusa com muita pertinência e atualidade os perigos de governantes que se cegam pela vaidade e se alienam da crítica, quer seduzidos pela pura bajulação, quer recorrendo objetivamente à violência e à censura. Relaciona como, em outras monarquias, os republicanos continuavam livres para se expressar, e em outras Repúblicas, igualmente a divergência era livre, mas os golpistas brasileiros submergiram o país no monopólio da claque do governo provisório de Deodoro.

“O Sr. Benjamin Constant tomou a palavra e, depois de afirmar que o Exército não quer a ditadura, disse ao povo: – ‘O povo que não seja ingrato nem ambicioso; reconheça o bem que se lhe fez e não procure morder a mão que o amparou!’ Fala quase como um czar este ministro da Guerra”, ironiza Prado. Questiona ainda a opinião de um observador internacional que saudou a quartelada de Deodoro e seus companheiros como sendo o início do “self-government” no Brasil, como se o autoritarismo instalado fosse equiparável à República norte-americana; ataca a opulência de Deodoro e seus auxiliares e o seu rigor com aqueles mesmos republicanos que passavam a divergir dos procedimentos tirânicos adotados. Acusa, por fim, o governo de mentir em documentos oficiais sobre uma quantia que D. Pedro teria aceito como indenização, quando em verdade a recusou.

No entanto, acredito que o aspecto mais profético e de maior apelo nos textos de Eduardo Prado está em sua percepção sobre o militarismo, diagnosticando que a espada dos generais “é para as nações o que são certos venenos na medicina. São coisas de uso externo. Só é nobre a espada desembainhada contra os inimigos da pátria; já não merece esse título quando é empregada contra a população desarmada, contra as leis, em satisfação de vinganças pessoais e em proveito próprio”. Para ele, ao se permitirem triunfar através do golpe armado contra o imperador, contra todo o regime constitucional estabelecido e todas as instituições desenvolvidas ao longo do século XIX, os republicanos consolidaram a abertura das portas para a indisciplina e a agitação constante nas Forças Armadas, criando consequências pedagógicas ameaçadoras ao enraizamento de outras fórmulas institucionais, de uma legalidade e de uma estabilidade política.

“A ausência da obediência passiva nos exércitos significará sempre, cedo ou tarde, a escravização do povo à força armada. (…) A política no Brasil está hoje reduzida à arte de adular com mais ou menos sucesso os militares. É inútil que os brasileiros estejam alimentando ilusões pueris. Os partidos políticos hoje só poderão galgar o poder agarrados à cauda do cavalo de um general. (…) Dizem eles que o militarismo jamais dominará definitivamente no Brasil, porque o Brasil não é um país militar, porque o brasileiro é um povo sem predileção pelas armas. É verdade. Mas esse desamor do brasileiro pela profissão militar é justamente o que constitui a sua inferioridade e faz dele um homem desarmado por hábito, e incapaz de se armar para reagir”, prognostica Prado.

A maior parte da história republicana, ao longo do século XX, não foi senão a combinação de instituições frágeis e defeituosamente assentadas com Forças Armadas tensionadas, politicamente agitadas e sublevadas. Isso a ponto de os próprios políticos liberais, convencidos pelo realismo de que todas as situações políticas eram tuteladas e garantidas por Armas, se verem obrigados a também recorrer a elas, terminando o processo na década de 60, quando as Forças Armadas iniciaram um regime político amplamente sob a sua liderança, esgotando-se após 21 anos de gestão.

O recado de Eduardo Prado, como ele disse, seria lido no futuro, quando ele tinha a esperança de que quem o folheasse estimasse “o escritor que se revoltou contra a ditadura da inconsciência jacobina e soldadesca”. Que ele nos inspire para que assimilemos a importância do esforço por construir e assentar instituições sólidas que imponham limites à arbitrariedade, por zelar por nossas liberdades e rechaçar os apelos e a afobação dos demagogos.

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