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Por Flavio Morgenstern, para o Instituto Liberal

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Visões de mundo distintas costumam se distanciar a partir de concepções distintas de justiça.

Uma tendência moderna é a crença de que toda a sociedade está errada – portanto, apenas uma reforma integral desta sociedade pode ser considerada verdadeira justiça. Nenhuma medida interna de tal sociedade será considerada justa, porquanto é preciso reformar a inteireza do social, inclusive seus mecanismos de justiça. Nada pode ser corrigido enquanto tudo não for corrigido.

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Seu trabalho é calcado na “microfísica do poder”, ou, em um resumo grosseiro, no entendimento de que todas as relações, contratos e o mero convívio possuem discrepâncias de poder que costumam ser ignorados por uma máscara social construída para obscurecer nosso entendimento da estrutura da realidade.

Esta máscara é moldada conforme a épistème, um conjunto de valores culturais de determinada época e local que formam a superestrutura do social – e tal épistéme é variável e relativa, tornando-se outra coisa distinta tão logo os poderosos em questão decidam atualizá-la conforme o passar do tempo. É uma atualização da “ideologia” e da “superestrutura” marxistas.

Um intelectual foucaultiano, portanto, busca sempre encontrar uma estrutura de poder dispare, ocultada dos olhos não-treinados, em qualquer relação humana analisada (e Foucault escreveu sobre manicômios, prisões, palavras, psicologia, literatura, sexualidade, hermenêutica, biopolítica, and so on).

Michel Foucault é uma das principais influências dos intelectuais brasileiros, com grande destaque para jornalistas, psicanalistas e juristas penais.

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Diante de um fato como um crime cometido, o mais facilmente analisável, como um estuprador que agrida uma mulher indefesa na rua e depois a espanque, sob a ótica de Foucault, os intelectuais buscam sempre uma crítica que vá contra o senso óbvio e use o fato como desculpa para atingir uma estrutura social “por detrás” do fato.

Assim, caso o estuprador seja negro, e a estuprada seja branca, o fato primordial a ser “julgado” por tal intelectual será uma crítica à punição de um negro por uma sociedade que partilha da mesma cor de pele da vítima, e não a violência cometida.

No caso de um estuprador ser pobre, a vítima ser rica, o analista imbuído de Foucault irá até mesmo materializar uma abstração, como a “desigualdade social”, julgando então não o crime, mas a sociedade em que o crime foi cometido – a culpa se materializa não em um humano cometendo uma ação, mas na“desigualdade” agindo.

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Mesmo no caso de um crime não financeiro, como um estupro: após a tomada total do poder, supostamente para acabar com a desigualdade de poder (sic), o intelectual tem a crença de que não haverá mais crimes, pois não há mal humano: apenas uma sociedade ruim. A única injustiça no mundo é alguém ter algo que outro não tenha.

É o lado curioso de tal algaravia. As injustiças passam a ser todas catalogadas não pelo grau de dor ou perda que provocam, e por motivos fúteis ou torpes ou meios mais ou menos violentos. As injustiças são auferidas tão somente pela posição que as pessoas ocupam na sociedade – sobretudo o tripé gênero-raça-sexualidade.

Não à toa que o estupro se tornou a injustiça da vez para o progressismo: ao contrário de um assassinato, é um crime impossível de ser “justificado” (o estuprador é claramente quem detém um poder usurpador), e com isto tudo passa a ser uma espécie de “variação” do estupro – de coação a cantadas indecorosas, tudo se torna parte da “cultura de estupro”, que chama mais atenção do que análises de mortes que possam ser em legítima defesa.

Para os progressistas, todos os problemas sociais cessarão quando houver igualdade de poder político (o famoso “empoderamento”, que está se tornando moda no Brasil). Não há maldade humana: basta apenas “incluir” (outra palavra em voga) os “excluídos” (terceira) para que todos os problemas sumam de uma vez, visto que não há liberdade humana de ação que permita ações ruins, apenas aparatos sociais iníquos que forçam humanos a agir de maneira ruim ou violenta.

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Sempre que um crime é cometido, uma pessoa normal escandaliza-se e busca uma punição para os criminosos e meios para se evitar repetição e espalhamento do mal. Sempre que um crime é cometido, alguém embebido em Foucault julga não o criminoso, mas a própria estrutura jurídica que o julga.

Se há disparidade de poder, mesmo entre um assassino e um juiz e um júri, esta é a razão fundamental da injustiça, e é a única coisa a ser condenada e reformada, pela visão de Foucault.

Não espanta, portanto, que a visão progressista, tão sugestionada por tal parlenga, tenha se resumido a basicamente duas ações: 1) relativizar totalitarismos, desde que “acabem com a igualdade” (ainda que tornando todos igualmente pobres – sem uma “microfísica do poder” para ser considerada injusta); e 2) defender criminosos, sempre apelando para o expediente de que um sistema jurídico, por ter mais poder do que um criminoso sozinho, é mais injusto do que o criminoso, não importando o tamanho de seu crime e a justiça buscada pelo aparato julgador de poder dividido.

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Por conseguinte, exatamente por isso, até mesmo o estupro acaba encontrando cabeças que o relativizem, seja por afinidade com o estuprador, seja por ele pertencer a uma das categorias com menos poder (os oprimidos e/ou excluídos) – negros, pobres, gays, menores etc. Tais categorias, para a curiosa épistème de Foucault, são as únicas que de fato variam. Sua filosofia permanece desbaratada para explicar a realidade, mas é perfeita para criticar… a sua própria filosofia.

É com este expediente que, como vimos, quando um casal de namorados é assassinado, o professor de Direito Penal Túlio Vianna escreve:“Liana e Felipe, em sua sede de aventura, foram vítimas da desigualdade brutal que tanto os distanciavam de Champinha, seu suposto algoz e atual personificação do demônio segundo a mídia-urubu que a cada dia infesta nossos noticiários.”

Ou seja, o estuprador, seqüestrador, torturador e assassino frio Champinha, que matou Liana no meio de uma sessão de estupros no meio do mato com facadas lentas, é um “suposto” algoz, e o verdadeiro algoz é a “desigualdade brutal” (sic), esta que sai estuprando e dando facadas no meio do mato pela noite até decapitar adolescentes.

Ou o que faz Marilene Felinto, colunista da Caros Amigos, ao comentar o mesmo crime: “O que torna um crime mais ‘hediondo’ que outro? Só se for a classe social da vítima: quando é rica e loirinha, então, o crime é mais hediondo do que se a vítima for um ‘Pernambuco’ qualquer”.

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Traduzindo, o injusto não é seqüestrar, estuprar, torturar, matar a facadas. O injusto é um “Pernambuco” não poder satisfazer desejos animalescos com uma loirinha rica, pois loirinhas ricas, mesmo debaixo da sevícia de sessões ininterruptas de estupro durante um seqüestro, seriam o lado mais “poderoso” de tal relação.

O lado mais curioso, e que seria mesmo engraçado, não fosse, literalmente, trágico, de tal visão de mundo é que ela pretende defender sempre o lado mais fraco das relações de poder.

Todavia, a própria busca por uma “microfísica do poder” (que julga estar descrevendo, quando está mesmo inventando uma tal microfísica) busca sempre encontrar disparidades de poder cada vez mais sutis por detrás até dos mais óbvios aspectos da realidade.

Assim, mesmo uma feminista (a versão foucaultiana da “disparidade de poder entre sexos”) se torna “machista” (logo ela) caso diga alguma coisa que não coloque a mulher como vítima, ainda que numa mera brincadeira ou automatismo verbal.

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Um ativista do movimento negro passa a ser considerado “racista” (logo ele) se usar alguma expressão idiomática (comum a praticamente todos os idiomas sobre a superfície terrestre) que denigra (!) a cor negra como sinônimo de negativo – mesmo não fazendo relação alguma com a cor de pele das pessoas (nenhuma tem a pele, de fato, preta).

E, claro, os grandes e supostos defensores dos pobres e do povo são os primeiros a defenderem causas que só são ideologicamente boas para a elite progressista a qual eles pertencem, a esquerda caviar tão destrinchada por Rodrigo Constantino – mas causas estas que são radicalmente rejeitadas pelos pobres.

Desta forma, os sedizentes porta-vozes dos pobres na grande imprensa, na academia, na cultura e na política são os primeiros a defender que não se reduza a maioridade penal, mantendo o Brasil numa excrecência internacional na qual crimes os mais violentos nunca são punidos.

Apenas “esquecem-se” eles de que, se criminosos pobres são supostamente os mais atingidos pela redução da maioridade penal, a maioria dos pobres não é criminosa (o que é ignorado por seu estruturalismo que nega a liberdade humana, preferindo o determinismo social que exige a tomada do poder total para controlar a sociedade), e as maiores vítimas do crime são, justamente, os pobres (que também podem ser vítimas de ricos criminosos).

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O mesmo “raciocínio” é o que faz crer que ser anti-PT não é uma conclusão a que se chega por estudos e leitura de notícias, mas um determinismo de uma “elite de olhos azuis” protegendo seus privilégios dos petistas robinhoodianos. Todavia, quando os presidentes das empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez são presos, tal fato é comemorado apenas por quem defende indivíduos, e não supostos “pobres” ou supostas “minorias”.

Justamente os ricos que julgam defender os pobres dos ricos são os que se calam quando ricos exploradores de verdade são presos. Nada mal, para um país em que o partido “neoliberal” é que vai à Venezuela cuidar de greve de fome de presos políticos, enquanto os membros do Partido Comunista e os blogueiros comunistas do UOL viajam para Nova York.

Buscando sempre a “injustiça original” subjacente a tudo, a esquerda progressista se divorcia completamente da realidade para “corrigi-la” e ultrapassa demais as raias do ridículo, quando até pessoas de descendência nórdica ou russa passam a querer se considerar “negras”, pois isso as tornaria mais “corretas”, já que brancos não poderiam estar certos em questões sociais.

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É o vezo em buscar “microestruturas de poder” cada vez mais apartadas da realidade, como a opressivíssima, oligárquica e nazista marca de gênero feminino nos substantivos – uma preocupação de quem não tem preocupação na vida. De quem é, afinal, rico (para estes ricos, uma injustiça). De quem não tem mais o que fazer.

Os pobres, majoritariamente a favor da redução da maioridade penal e de quase tudo o que eles combatem “em nome dos pobres”, têm preocupações sempre mais urgentes, como não morrer assassinado num assalto na porta de casa por um maloqueiro que resolveu buscar atalhos violentos na vida para ter sempre intelectuais de porta de cadeia para defendê-lo por ser pobre e criticar a “estrutura da sociedade” que lhe “obrigou” a assassinar alguém.

Jean Baudrillard, ao analisar o foucaultismo quando já dava mostras de estar cansado de repapagaiar Karl Marx e Adorno, reclamou que Freud pensa que tudo é sexo, enquanto Foucault pensa que tudo é político – e assim está “resolvida” a realidade para estes campeões do reducionismo. Não sem razão, intitulou um de seus trabalhos simplesmente como Oublier Foucault (“Esquecer Foucault”).

Cada vez mais apartados da realidade linha 637A Jd. Ângela/Estrada do M’Boi Mirim, cada vez mais a classe verbosa das pessoas julga falar em nome dos pobres – esquecendo que suas frescurites simplesmente são inexistentes para pobres que sofrerão com sua defesa do “lado mais fraco” da estrutura social.

Na vida real, o mais oprimido que nunca tem proteção continua sendo o indivíduo trabalhador que está na mira de uma arma.

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