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Frase de Mourão sobre caldinho cultural pode ser infeliz, mas não é racista
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O vice de Jair Bolsonaro (PSL), general da reserva Antonio Hamilton Mourão (PRTB), afirmou nesta segunda-feira (6) que o Brasil herdou a “indolência” dos indígenas e a “malandragem” dos africanos. A declaração foi feita durante evento da Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul (RS).

“Temos uma herança cultural, uma herança que tem muita gente que gosta do privilégio (…) Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem (…) é oriunda do africano”, afirmou. “Então, esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, líderes populistas e dos macunaímas.”

Não foi a primeira vez que Mourão fez essa afirmação. Em junho, numa palestra a mais de 150 pessoas na Associação Comercial do Paraná (ACP), em Curitiba, ele também atribuiu a indígenas e africanos uma suposta herança cultural de indolência e malandragem.

Procurado pela reportagem para comentar o conteúdo da declaração desta segunda, Mourão ressaltou que também falou do privilégio dos brancos. “Não tem nada demais, até porque sou descendente de indígenas. Não é acusação para nenhum grupo, isso não existe. Temos uma raça brasileira, a junção de tudo isso aí”, disse.

Ele argumentou, ainda, que suas frases foram retiradas de contexto. “O que acontece é que as pessoas pinçam determinadas frases e querem retirar do contexto em que foram colocadas. Estava falando da herança cultural de forma genérica.”

Muitos enxergaram racismo na frase, mas isso já é um sintoma dos tempos em que vivemos. Na era do politicamente correto e do multiculturalismo, qualquer menção a temas culturais é logo distorcida para o foco racial, como se não houvesse diferença entre cultura e raça. Isso é uma bobagem. Num texto antigo sobre o culto ao multiculturalismo, com base em livro de Thomas Sowell, escrevi:

Uma das maiores ameaças à liberdade individual atualmente encontra-se no culto do multiculturalismo. Vários autores notaram este risco, entre eles Thomas Sowell, da Escola de Chicago. Em sua coletânea de textos Barbarians Inside the Gates, Sowell lembra que o mundo sempre foi multicultural, por séculos antes de o termo ser cunhado. Tratava-se de um multiculturalismo num sentido prático, diretamente oposto ao que o atual culto dos relativistas culturais prega. Como exemplos, Sowell lembra que o papel onde seu livro foi escrito fora inventado na China, as letras vieram da Roma antiga e os números da Índia, através dos árabes. O autor é um descendente da África, que escrevia enquanto escutava música de um compositor russo.

A razão pela qual tantas coisas se disseminam pelo mundo todo está no simples fato de que algumas coisas são consideradas melhores que outras, e as pessoas desejam o melhor para si. Esta obviedade é justamente o contrário do que o credo do multiculturalismo atual defende, alegando que nada é melhor ou pior, mas “apenas diferente”. Na verdade, as pessoas mundo afora não apenas “celebram a diversidade”, elas escolhem aquilo de sua própria cultura que desejam manter e aquilo que preferem abandonar em prol de algo melhor vindo de fora. Quando os índios americanos, por exemplo, viram os cavalos dos europeus, eles não se limitaram a “celebrar a diferença”, eles começaram a montar em vez de ir andando. À contramão do que o culto do multiculturalismo defende, as pessoas não buscam viver “em harmonia com a natureza”, e sim obter o melhor que puderem. Eis o motivo pelo qual, desde automóveis até antibióticos, os bens demandados se espalharam pelo mundo. Não importa o que os filósofos do multiculturalismo dizem, é isso que milhões de pessoas fazem

Para Sowell, este tipo de multiculturalismo moderno é uma dessas afetações que algumas pessoas podem se dar ao luxo de ter enquanto estão usufruindo de todos os frutos da tecnologia moderna. Normalmente não são pessoas pobres vivendo em países muito atrasados que bradam sobre as “maravilhas” das diferentes culturas. São “intelectuais” de países desenvolvidos que olham com desdém para os processos que tornam possível a produção de todo tipo de conforto que desfrutam.

Culturas evoluem ou regridem, mas não necessariamente dependem da “raça”. Em Brasileiro é otário?, fiz uma análise dos traços culturais brasileiros, como o famoso “jeitinho”. São marcas de nossa cultura, sempre generalizando. Fiz questão de explicar para não permitir interpretações equivocadas:

Vários sociólogos, antropólogos e pensadores em geral, antigos ou contemporâneos, mergulharam no assunto para tentar explicar as raízes deste traço cultural evidente em nossos costumes. Vamos analisar algumas teses, abordar alguns aspectos das possíveis causas desse excesso de malandragem, sempre lembrando que toda generalização é limitada ou injusta com alguns.

Mas as origens dessa característica nacional não serão o foco principal do livro, ainda que sejam importantes. O que realmente pretendo analisar é o custo de nossa malandragem, ou seja, o alto preço que pagamos por nos considerarmos extremamente sedutores e espertos. O que significa para nós, como país, ter a Lei de Gérson como traço marcante em nosso cotidiano? Qual o custo de oportunidade disso, ou seja, o que deixamos na mesa por rejeitarmos certos valores vistos como mais “caretas” que outros povos adotam?

Minha tese central é a de que o tiro saiu pela culatra, isto é, aquilo que poderia ser uma vantagem comparativa nossa se tornou o grande fardo que carregamos, o maior obstáculo para nosso desenvolvimento e progresso. Sim, ter algum jogo de cintura é algo positivo, saber lidar com o lado mais emocional da vida também. Tudo isso poderia enriquecer nossa sociedade para além do ponto de vista material. Só que exageramos na dose, passamos do ponto, deixamos o pêndulo extrapolar, e agora não sabemos como colocar o gênio de volta na garrafa.

O resultado? O povo dos malandros criou um país de otários! Somos o “país do futuro” que nunca chega. Sei que o diagnóstico é duro, até cruel e difícil de engolir, pois fere nosso orgulho nacional. Mas o que se pode fazer se for verdadeiro? Um pai que ama seu filho, que por sua vez sofre com problemas ligados às drogas, deve fingir que o mal inexiste de modo a sofrer menos no curto prazo? Claro que não! Tapar o sol com a peneira e empurrar o problema com a barriga iria apenas agravá-lo.

Ou seja, quando falamos da “cultura brasileira”, claro que estamos generalizando, e assim sendo injustos com muitos. Mas todos entendem o ponto: são características predominantes em nosso povo, e por isso se destacam entre outras para compor as “regras de comportamento” da maioria. Nesse sentido, podemos até julgar a fala do general Mourão infeliz, mas não racista.

Se alguém ainda não está satisfeito, eis quem fez um comentário praticamente idêntico, no prefácio de Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano: “Boa parte de nosso subdesenvolvimento se explica em termos culturais. Ao contrário dos anglo-saxões, que prezam a racionalidade e a competição, nossos componentes culturais são a cultura ibérica do privilégio, a cultura indígena da indolência e a cultura negra da magia…”

Trata-se de ninguém menos do que Roberto Campos, uma das mentes mais lúcidas que o Brasil já teve. Campos era racista? Claro que não! Era um arguto observador dos nossos traços culturais, e sabia que eles não têm ligação direta com “raça”, já que cultura é absorvível e apreendida, enquanto “raça” é algo inato, determinado, biológico.

Os racistas culpam a “raça” pelos problemas ou se sentem superiores só por serem de determinada “raça”. Os que entendem a importância da cultura sabem que elas podem mudar, evoluir, independentemente da “raça”. Vejo mais racismo em quem tenta segregar a população brasileira miscigenada com base na “raça” do que em quem simplesmente reconhece que temos heranças culturais, algumas boas e outras ruins, mas todas passíveis de mudanças.

Creio, portanto, que estão fazendo muito barulho por nada por conta da fala do general. Até porque, convenhamos: ele não se parece um típico ariano defensor da “supremacia branca”, e admitiu ter herança indígena. Lado a lado, analisando o fenótipo, é tão merecedor de cotas quanto o frei David Santos, da Educafro, que só enxerga na frente negros ou brancos, nada mais. Criticar uma cultura não é atacar uma raça.

Rodrigo Constantino

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