Um dos grandes temas da era moderna é nosso crescente desapego a quase tudo. Não digo tanto a coisas materiais, e sim a sentimentos mais atávicos, que estavam enraizados já em nossos antepassados, a valores morais. Vivemos num tempo mais “líquido”, como diria Bauman. Tudo que é sólido se desmancha no ar, como queriam os marxistas. Mas isso gera um evidente conflito entre os seres mais cosmopolitas e aqueles que ainda lutam para se apegar aos valores “tribais”.
Não nego: sou mais cosmopolita. Mas isso não me impede de analisar com algum distanciamento a coisa toda, e perceber que o pêndulo talvez tenha extrapolado. A tese de Charles Murray em Coming Apart é a de que a elite vive cada vez mais em sua bolha, distante da realidade do “povo”. Tenho muitos artigos sobre isso, e meu Esquerda Caviar também fala do assunto. Os “homens de Davos” perderam o elo com o povão.
E os cosmopolitas se caracterizam pelo desapego crescente a tudo (menos aos bens materiais). Não são patriotas e olham com desprezo para os que são. Consideram meio ridícula a paixão por um time. Não conhecem mais quem fume, a menos que seja aqueles “cigarros” eletrônicos. Jamais frequentam a missa aos domingos e encaram os religiosos como gente atrasada. Acham até mesmo que família é um conceito ultrapassado, e preferem o “poliamor”. Possuem menos filhos, pois filho pode ser um fardo caro, que prejudica a felicidade no aqui e agora.
O filme “Up in the Air” (“Amor sem Escalas”), com George Clooney, lida bem com essa questão do desapego: o executivo bonitão, homem de meia idade, era bem desapegado de tudo, viajava pela vida “leve”, sem muita bagagem, e também sem afetos profundos, sem família, sem raízes. É isso: a geração desapegada não quer raízes. Mas sem fincar o pé em algum solo, balançam ao sabor do vento, aderindo aos modismos, acumulando milhas sem propósito algum.
Os relacionamentos sérios exigem cuidado, esforço, dedicação, sofrimento, e a geração desapegada não suporta muito essas coisas. Prefere a “leveza” de quem não criou vínculos demais, não tem elos com quase nada, nem mesmo com seus parentes, muito menos com seus vizinhos. O cosmopolita é um típico “liberal” que olha com desprezo para os conservadores, que consideram tacanhos, alienados.
Luiz Felipe Pondé, em seu novo livro Filosofia Para Corajosos, fala desse tema. Quando o assunto é religião, por exemplo, o cosmopolita prefere uma vaga e abstrata “espiritualidade”, que é para não ter de encarar os ritos e rituais duros de uma religião verdadeira e, portanto, severa. Diz o filósofo:
A solução contemporânea é optar pelo convívio político de tolerância dentro de uma sociedade que só não aceita que não paguemos a fatura do Visa, e não entrar em detalhes teológicos. Por isso, devemos dizer que Jesus, Buda e Che são todos os mesmos (e lutam pela paz, o que no caso de Che é uma mentira deslavada) e servir o jantar. […] A palavra espiritualidade em seu uso contemporâneo e de senso comum (ou seja, usada por gente comum e não especialistas) significa ter “um pouco” de religião, mas não muito. O bastante para você não se sentir um materialista que só acredita em dinheiro e átomos. E para mostrar que você é uma pessoa um pouco profunda. Na prática, significa quase nada. […] A vantagem dela, a leveza e a falta de compromisso institucional, que tanto atraem os mais ricos e famosos, na hora do vamos ver, é sua fraqueza. Essa espiritualidade contemporânea vale tanto quanto o vento que passa.
Adam Smith já previa que a riqueza proveniente do livre comércio teria um subproduto indesejado, um efeito nocivo: transformar as futuras gerações em pessoas acostumadas com o luxo e o conforto, suavizando seus espíritos e as deixando menos preparadas para as agruras da vida. Em outras palavras: uma legião de mimados frouxos. Creio que Smith não poderia antecipar o quão afeminados se tornariam os homens modernos, a ponto de os alemães “protestarem” contra o estupro coletivo de suas mulheres vestindo saias nas ruas, mas ele atirou na direção certa.
O tribalismo é sem dúvida perigoso. O sentimento nacionalista pode ser o último refúgio dos canalhas, como dizia o Sr. Jonhson. Fenômenos recentes, como o Brexit, o crescimento da extrema-direita nacionalista na Europa, o avanço de Donald Trump nas eleições americanas e os discursos populistas antiglobalização atestam o risco de a reação ser exagerada.
Mas, por outro lado, os cosmopolitas parecem não ter se dado conta de que seu tiro pode ter saído pela culatra, que eles deixaram o pêndulo exagerar demais, achando que todos eram como eles, “descolados” e desapegados. É a tese que sustento no meu curso “Civilização em Declínio”. O multiculturalismo é bonitinho na teoria, mas na prática é diferente. A globalização, do jeito que tem se dado, em meio ao “capitalismo de compadres” e bancos centrais manipulando as taxas de juros, gera a turma dos excluídos. A concentração de poder nos burocratas sem rosto gera desconforto. A diluição da religião ocidental, em meio ao avanço do Islã, produz medo.
E os cosmopolitas vão fingir que o problema é só Trump? Vão ignorar as ameaças reais, de fora? Vão descartá-las como fruto apenas da paranoia desses “idiotas”? Se Smith estava certo, e tudo indica que sim, resta perguntar: como os cosmopolitas, tão desapegados de tudo, inclusive de valores que justifiquem seu sacrifício mortal, vão ter a coragem necessária para enfrentar o terrorismo islâmico? A geração desapegada será a primeira a bater em retirada, fugir para as colinas. Tem aversão a armas, preconceito mesmo. Isso é coisa de gente bruta, pouco sofisticada.
Mas quem vai lutar de verdade para salvar o que merece ser salvo no Ocidente?
Rodrigo Constantino
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