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Liberalismo e conservadorismo na mesa do bar
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Meu amigo João Luiz Mauad, colunista do Instituto Liberal, escreveu um breve texto em seu Facebook sobre as principais divergências entre liberais e conservadores. O texto é bom e tem tido boa repercussão, mas acho que erra no essencial: trata como conservadores não aqueles de boa estirpe, mas os mais reacionários. E deixa transparecer qual seria, em minha opinião, o principal equívoco de muito liberal hoje. Vou reproduzir o texto na íntegra, grifando algumas passagens, e faço meus comentários em seguida:

Liberalismo e conservadorismo na mesa do bar

– “Sou liberal na economia e conservador nos costumes”, disse um amigo de longa data, repetindo um bordão que se popularizou por aqui ultimamente.

Ao perceber a minha careta, foi logo perguntando:

– Como você se define?

– Sou simplesmente liberal. Na economia, nos direitos civis e nos costumes.

– Não inventa! Eu te conheço. Você também é bastante conservador nos costumes.

– Pelo contrário, sou muito liberal nos costumes. Desde que não interfiram com a minha liberdade, minha propriedade e minha vida, as escolhas dos outros não me interessam.

– Como assim? Você está entrando em contradição. “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.”

– De fato, eu não uso drogas, não frequento prostíbulos, sou casado há quase 40 anos com a mesma mulher e criei meus filhos dentro de padrões bastante conservadores. Mas, ao contrário destes, nunca quis impor esses padrões a ninguém. Se você quiser cheirar, fumar, ir às putas, viver um triângulo amoroso, namorar sua irmã ou se vestir de mulher, é problema seu. Talvez a característica mais marcante do liberalismo seja a ideia de que questões de conduta individual, as quais não interferem diretamente com a vida, a liberdade e a propriedade alheias, não justificam a intromissão da lei ou do governo.

– Ah!, mas nesse ponto eu também sou assim. Minha vida, minhas regras…

– Então você é um liberal. A principal diferença entre um liberal e um conservador não está na forma como eles vivem suas vidas, mas na vontade de usar os poderes coercitivos do Estado para impor a sua moralidade aos demais. Normalmente, os conservadores não se opõem à coerção governamental, desde que utilizada para fins que julgam válidos. De forma geral, eles acreditam, como os esquerdistas, que, se o governo for confiado a homens honestos, bem intencionados e que partilhem com eles opiniões, princípios e valores, não deve ser limitado por restrições demasiado rígidas em suas ações.

– O.K., Mas tem também a questão das tradições…

– Sim, esta é outra questão importante. Nesse ponto, sou como Hayek. Embora tenha imenso respeito pelas tradições e instituições culturais e morais, até porque há todo um legado da história e do conhecimento humanos por trás delas, nem por isso acho que devemos nos guiar exclusivamente por elas, ou agir sempre sem questionar dogmas e tabus estabelecidos.

– E a velocidade das mudanças? Você não acha que a atitude conservadora é mais prudente e sensata politicamente?

– De fato, o conservadorismo é uma atitude legítima de oposição a mudanças drásticas. E é bom que parte da sociedade pense assim. Ajuda a frear o ímpeto revolucionário de outra parte. O problema é que, não raro, a prudência exagerada transforma-se em resistência feroz a mudanças – e é aí que mora o perigo.

O liberalismo, por outro lado, vê o mundo em constante evolução e mudança. E, mais importante, nos casos em que as transformações espontâneas são asfixiadas pelo rígido controle estatal, defendemos profundas e rápidas reformas.

Eu já fui um liberal assim, um tanto libertário. Hoje me vejo mais como um liberal-conservador, mudança que explico melhor em meu novo livro Confissões de um ex-libertário: salvando o liberalismo dos liberais modernosO maior erro de Mauad, em minha opinião, pode ser resumido na primeira frase que destaquei acima: “Desde que não interfiram com a minha liberdade, minha propriedade e minha vida, as escolhas dos outros não me interessam”.

Mauad fala o tempo todo em conservadores desejando usar o poder estatal da coerção para fins moralizantes. Isso existe, é verdade, mas eu mesmo, em meus textos “moralistas”, nunca falo em estado. É uma luta cultural, por costumes, por valores. O liberal mais conservador entende que a liberdade individual, tão valorizada por Mauad (com razão), não sobrevive num vácuo de valores morais, muito menos num ambiente de extremo relativismo moral. E é isso que ele parece não perceber.

Ao dizer que, desde que os outros não interfiram em sua liberdadesuas escolhas não lhe interessam, Mauad adota postura negligente, egoísta e perigosa, que no limite libertário flerta com a sociopatia. Eu posso não desejar o uso da força estatal para impor valores, mas isso não quer dizer que as escolhas dos outros não me interessam. Se meu vizinho acha legal transformar sua casa num prostíbulo mesmo tendo filhos pequenos, se outro vizinho tornou sua casa uma espécie de cracolândia, se um terceiro vizinho acha cool brincar de ver seu filho agir como filha em nome da “ideologia de gênero”, e se um quarto vizinho prega o aborto de bebês inocentes, isso deve sim dizer respeito a mim.

Vivemos, afinal, em sociedade, e os valores disseminados importam. Ideias têm consequências, nome do livro de um conservador famoso e também slogan do próprio Instituto Liberal. Como assim o que os outros fazem não me interessa? Claro que interessa! E interessa muito, especialmente para quem entende sobre a importância do arcabouço de valores morais para sustentar a liberdade individual. Sem o tecido social, sem a cola que nos une por meio da comunidade, temos apenas a visão atomista de cada um como uma ilha fazendo o que der na telha, e os “liberais” vibrando: live and let live!

Essa postura costuma levar a um abismo. A grande confusão de Mauad, então, é misturar quem quer usar o estado como instrumento moralista com quem é liberal, mas compreende perfeitamente que a principal luta se dá no campo dos costumes, por meio da tal “guerra cultural”. O liberal que entende isso é visto como um conservador pelos libertários, e mesmo o Hayek citado por Mauad teve de se explicar com um texto sobre por que não era conservador (ele conseguiu no máximo explicar que não era um neoconservador, mas seu liberalismo clássico cauteloso se aproxima muito do conservadorismo de boa estirpe da linhagem britânica).

Sim, há conservadores que, por excesso de prudência ou medo, tornam-se reacionários contra basicamente qualquer mudança. Sim, há neoconservadores que querem usar a força estatal para impor uma visão única de vida decente. Mas isso não esgota o conservadorismo, muito menos o liberalismo mais conservador. Os liberais podem perfeitamente entender que o comportamento dos vizinhos importa sim, e muito, pois vivemos todos em sociedade. Eles podem desejar guiar tais comportamentos por meio de ideias, de valores morais, sem falar em uso de coerção estatal (ser contra a prostituição, por exemplo, sem pregar a proibição legal dela).

E, acima de tudo, eles podem se dar conta de que o tecido moral se esgarçou demais, que progresso material não deve ser confundido com progresso moral, e que vivemos tempos perigosos hoje, justamente porque o pós-modernismo espalhou um relativismo moral perverso, uma ideia de que liberdade é sinônimo de libertinagem, e que ninguém deve mais sequer julgar o outro, a menos que se trate de um conservador cristão ou judeu, que pode ser linchado em praça pública em nome do combate à “intolerância”.

O “liberal” que não entendeu isso, que não se deu conta do grau de estrago do “progressismo”, acaba agindo como inocente útil da esquerda. O liberalismo, hoje mais do que nunca, precisa de fortes pitadas de conservadorismo de boa estirpe para sobreviver e reverter o caos criado pelos marxistas. O liberal pode perfeitamente defender mais ordem em meio a tanta baderna, e não precisa falar em uso do estado para tanto.

Sempre gosto de lembrar que o “pai do conservadorismo”, Edmund Burke, era um liberal Whig, não um conservador Torie, mas que percebeu a enorme ameaça dos revolucionários jacobinos e lutou para preservar o legado das tradições, realizando reformas com prudência e maturidade em vez de fazer tábula rasa do passado para criar um “novo mundo possível” parido na cabeça de intelectuais vidrados em abstrações. Burke, um exemplo ótimo de liberal-conservador, assim como Tocqueville e tantos outros. Gostaria de ver Burke numa conversa de bar com Rothbard, mas acho que não ficaria muito bom para o libertário…

Rodrigo Constantino

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