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Há uma visão histórica que relata o surgimento do estado como um ato de subjugação por parte de um grupo mais poderoso, e depois, com o tempo, os escravos foram se acostumando e aceitando a ideia de pertencimento a uma “nação”. O sociólogo Franz Oppenheimer é um dos grandes defensores dessa tese, com seu The State, mas outros pensadores, como David Hume e Nietzsche, também adotaram visão semelhante. Por outro lado, pensadores como Rousseau e John Locke encararam o estado como uma espécie de “pacto social”.

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Independentemente de qual lado esteja mais próximo da verdade, o fato é que, hoje, o estado-nação ainda é visto como algo a ser defendido pela grande maioria dos cidadãos. As conquistas do povo em relação aos poderes mais limitados dos governantes, com pesos e contrapesos, eleições, constituições, carta de direitos etc, tornaram a aceitação desse modelo maior.

Principalmente em países mais desenvolvidos, os habitantes não se sentem súditos, mas cidadãos que participam, de alguma forma, do comando da nação, apesar da crescente insatisfação com seus governos federais. É inegável que existe uma crise de representatividade nas principais democracias do mundo, o que não chega ao extremo, porém, de anular a vontade de se preservar a nação. Pode até alimentar, ao contrário, o desejo de se resgatar o comando da nação, com “outsiders”, gente de fora do establishment que supostamente represente melhor o povo. Donald Trump vem à mente aqui.

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Há, em outras palavras, uma forte identidade nacional nesses países, um elo cultural, linguístico, histórico que une aquelas pessoas sob o mesmo território. Isso ficou muito claro nesse 4 de julho nos Estados Unidos, com um fervor patriótico que é de impressionar, ainda mais aqueles que flertam com uma visão mais “racionalista” de que essa coisa de pátria está obsoleta, ultrapassada. E os ataques a esse patriotismo, que é de arrepiar aos mais conservadores, vêm de dois lados distintos: da esquerda socialista e dos libertários ou anarco-capitalistas.

Publiquei agora mesmo um texto instigante de João César de Melo, em que defende o direito de secessão dos povos até o limite quase individual. Pequenas comunidades locais substituiriam o estado, que se tornaria desnecessário. O mundo, por essa ótica, seria um somatório de condomínios, nada mais. Tudo seria privado, inclusive as ruas. Não haveria mais sentido falar em “orgulho nacional” ou sequer identidade nacional. Os povos poderiam até se sentir ligados por características comuns, mas seria o fim do conceito de nação.

Curiosamente, há socialistas que atacam o estado-nação pela esquerda, como Vladimir Safatle, que chegou a diagnosticar como “patologia” a existência desse ente tão obsoleto. “O Estado-nação não existe mais e melhor seria que ele fosse desmantelado de vez. Ele é apenas um zumbi que se alimenta de algumas das piores patologias sociais de nossa época, como a paranoia identitária, a ilusão das fronteiras, a paixão pelo isolamento”, escreveu o socialista.

Ou seja, se os libertários condenam o estado-nação porque ele concentra poder demais, os socialistas o condenam porque ele impede mais concentração ainda num “governo mundial”. Naturalmente, penso que os libertários estão mais próximos da verdade, e a tendência deveria mesmo ser a de maior descentralização do poder. O federalismo é um antídoto ao poder central muito concentrado, e por isso é desejável. Os Estados Unidos sempre valorizaram essa ideia, e talvez por isso sejam uma grande nação.

Mas acho que a visão libertária é um tanto utópica e peca pelo mesmo “racionalismo” dos socialistas. Se o caminho de descentralizar o poder é saudável, isso não quer dizer necessariamente que abolir o estado-nação o seja, nem que seja possível. Claro, entende-se a preocupação com governos federais acumulando muito poder, ou com o risco constante de um nacionalismo tacanho. O grande Samuel Johnson teria dito que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, e basta pensar em Hitler para ter calafrios com essas ideias muito nacionalistas.

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Só que prefiro fazer uma distinção entre nacionalismo e patriotismo, e creio que a frase de Johnson se aplique melhor ao primeiro, não ao segundo. Nacionalismo não passa de uma visão coletivista que trata o cidadão como meio sacrificável por um “bem maior”. Nesse aspecto, é muito parecido com as demais formas de coletivismo, como o racismo, que coloca a raça no centro de tudo, ou o marxismo, que coloca a classe. Já patriotismo me parece um sentimento saudável quando bem dosado, e justificado em um passado que realmente permita orgulho àquele povo, como no caso americano. Desenvolvi melhor esse raciocínio numa coluna antiga do GLOBO.

Samuel Huntington escreveu seu influente O choque das civilizações alertando para as novas guerras que surgiriam quando certas nações desaparecessem. Elas eram o denominador comum daqueles povos, e sem elas, outras características identitárias tomam seu lugar. Acertou mais do que Francis Fukuyama, que imaginou o “fim da história” com a queda do império soviético. Se não for a nação, talvez seja a raça, a classe, a religião, o gênero: não importa, o ser humano dará algum jeito de buscar alguma identidade, e a mentalidade tribal de “nós contra eles” não necessariamente desaparecerá.

Em suma, os “globalistas” querem abolir o estado-nação para implantar em seu lugar um “governo mundial”, com o poder totalmente concentrado numa elite política e intelectual. São as viúvas da União Soviética, que encontraram na União Europeia uma nova chance, ainda que mais suave, para seus anseios. Já os libertários querem abolir o estado-nação para focar apenas no indivíduo, em pequenos grupos locais, comunidades voluntárias que rejeitem a ideia de nação. Acho uma utopia melhor, mas ainda assim uma utopia.

Fico, portanto, com a visão mais realista dos liberais clássicos e conservadores aqui: devemos lutar pela descentralização do poder, reduzindo o escopo do governo federal e adotando cada vez mais o federalismo, mas sem jogar fora a ideia de nação, pois ela está entranhada em nós e não se brinca impunemente com certas tradições. O Brexit demonstrou como os ingleses entendem isso. E uma nota na coluna de Ilimar Franco mostra que os brasileiros também parecem pensar assim:

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Um ano após ganhar as estrelas do Mercosul, os passaportes brasileiros vão voltar a ter o Brasão da República na capa. Quando o governo Dilma fez a troca, no ano passado, houve muitas críticas de que era um ataque à identidade nacional.

O brasileiro não quer ser “latino-americano” apenas; ele quer continuar sendo brasileiro. Ainda mais quando percebe que o Mercosul virou sinônimo de bolivarianismo. As identidades nacionais ainda pesam nas escolhas. Isso pode servir tanto para o lado negativo, quando sentimentos nacionalistas exacerbados criam uma mentalidade tribal e protecionista, como para o lado positivo, quando impedem programas “globalistas” que buscam concentrar o poder numa elite.

Se for bem dosado, com equilíbrio, os sentimentos patrióticos e a identidade nacional podem servir para preservar as liberdades individuais, e não o contrário. Como em quase tudo, o veneno está na dosagem. De qualquer jeito, a morte do estado-nação foi decretada de forma muito precipitada. Ele ainda vive entre nós, e aparentemente será assim por um bom tempo ainda. Felizmente, diriam alguns.

Rodrigo Constantino