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Nostalgia dos tempos revolucionários utópicos? Fuja para as artes ou a religião!
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Ganhei de presente da autora Suzana Mag o livro Retorno a 64, e gostei. Trata-se de uma criativa história em que Úrsula acaba voltando no tempo, para os agitados dias de março de 1964, e tenta impedir o “golpe” militar. Ela não era comunista, sequer esquerdista, mas acaba se metendo com os revolucionários da UNE, desenvolvendo um caso amoroso, e vira uma peça-chave nos planos para impedir o radicalismo brizolista de Jango e, com isso, a reação dos militares.

O que permeia as páginas do livro é um sentimento de nostalgia em relação ao clima idealista daqueles jovens, que a autora não mais encontra nos dias atuais. Uma passagem deixa isso claro: “Neste País, a política, o luto, a guerra, estão sempre em clima de festa. No meu tempo, usa-se a máscara do ‘V’ de vingança, de conhecido blockbuster… A diferença está na expectativa, na esperança. Eles tinham e nós, não mais”.

Essa perda de sonhos utópicos já foi lamentada por muitos, inclusive ex-comunistas que envelheceram. Arnaldo Jabor é um que escreveu vários textos nostálgicos nesse sentido. Diz a narradora: “O problema estava talvez na minha insatisfação com a época em que vivia. Eu achava que todo o passado era interessante, menos a época que eu vivera, a insípida década do meu nascimento, os entediantes anos 90, quando foram enterradas de vez as mais delirantes utopias, sem ter nada para colocar no lugar, a não ser estudar para ter uma casa e um bom carro, educar os filhos, envelhecer e esperar a morte”.

Essa “corrida dos ratos” desespera muita gente, leva ao repúdio do sistema capitalista e do materialismo. Queremos mais! Temos sede de espírito! E gostamos de idealizar o passado, como o personagem de Owen Wilson em “Meia-noite em Paris”, filme de Woody Allen, que sonha em regressar aos anos da Belle Époque, onde tudo era “maravilhoso”. Ele descobre que não é bem assim, e que sempre reclamamos do presente e idealizamos o passado. Ou o futuro.

Eis onde entra o idealismo utópico revolucionário. Queremos fugir da mediocridade, como dizia José Ingenieros. Em O homem medíocre, Ingenieros sustenta que é fundamental manter acesa a chama de um ideal, uma meta visionária que não sucumbe às contingências da vida prática imediata. Esses visionários buscam alguma perfeição moral, emancipando-se do rebanho. São espíritos livres, adversários da mediocridade, são entusiastas contra a apatia. Sem ideais o progresso seria impossível. O culto ao “homem prático”, com foco apenas no presente imediato, representa a renúncia à evolução, acredita o autor.

Quem tem alguma sensibilidade, olha para o presente com certo desdém, desejando mais. “Quando colocamos a proa visionária na direção de uma estrela qualquer e nos voltamos às magnitudes inalcançáveis, no afã de perfeição e rebeldes à mediocridade, levamos dentro de nós, nesta viagem, a força misteriosa de um ideal”, diz Ingenieros. Quem deixa essa força se apagar, ficando simplesmente inerte, não passa “da mais gelada bazófia humana”. O autor conclui: “O ideal é um gesto do espírito em direção a alguma perfeição”.

A narradora Úrsula concordaria, e rejeitava o capitalismo: “Aliás, neste País ninguém em sã consciência faz a apologia do capitalismo do subdesenvolvimento que temos. Pode ser considerado como um mal necessário, mas deseja-lo como alternativa era uma façanha exclusiva de economistas completamente desprovidos de imaginação utópica”. E lá vamos nós para as utopias novamente, porque o “aqui e agora” não basta, é sem graça.

Coloquei na epígrafe do meu livro Liberal com orgulho a seguinte frase de Mario Vargas Llosa: “Devemos buscar a perfeição na criação, na vocação, no amor, no prazer. Mas tudo isso no campo individual. No coletivo, não devemos tentar trazer a felicidade para toda a sociedade. O paraíso não é igual para todos”. Para o escritor peruano, o ato de criar uma história vem justamente desse “complexo de Deus”. Ali naquelas páginas em branco podemos bancar o criador, comandar os pensamentos alheios, voltar no tempo, cair em contradições.

Úrsula novamente: “A vontade de interferir na realidade histórica inebria as pessoas, sobe-lhes à cabeça, e como é grande a vaidade do homem que se pensa o sujeito de seu destino, o único animal que realiza escolhas, e que tem o privilégio de sofrer as consequências do seu próprio livre-arbítrio. É uma espécie de droga tão excitante!”

Logo depois, ela acrescenta: “O indivíduo quer fazer a história para vencer a morte, para bani-la por toda a eternidade, inscrevendo nos acontecimentos, colocando neles a sua marca, seguindo o mesmo impulso que o leva a gerar uma prole, eternizando o seu legado na carne expectante e imorredoura”. Desde que o homem é homem ele busca a eternidade.

Mas eis o ponto: Suzana, a autora, sublimou esse desejo com a arte. Foi na literatura que ela deu asas à imaginação e pôde regressar a 1964, mudar a história, deixar sua marca. O perigo é quando deixamos esse anseio nos dominar no mundo real, e nos tornamos revolucionários de fato. Mao Tse-Tung queria escrever belas palavras na História fazendo tabula rasa do passado, e acabou manchando de sangue real as páginas da vida dos outros, como todo comunista utópico.

Alguns acham que não há mais clima para isso, porém, pois a pós-modernidade foi tomada pelo cinismo, pela morte da esperança. Francisco Razzo resenhou o livro de Paulo Arantes, pensador de esquerda, que fala justamente dessa perda:

Paulo Arantes supõe que toda experiência contemporânea, o que chamaríamos de pós-modernidade, vive a crise do tempo da história. Na era das revoluções e promessas utópicas, fazia pleno sentido falar de espera no futuro. No novo tempo do mundo, não. A consequência social dessa experiência é que não existe mais sentido falar em revoluções, só em insurgências. Não adiantaria nada falar em luta de classes, por exemplo, visando a sociedade comunista, já que, no fim das contas, a história acaba aqui mesmo, cujas ruínas do tempo não marcam o fim, mas o eterno começo.

Resumindo: “a ação política não visa o futuro. Logo, esqueçam as revoluções. A esperança — se é que há esperança — está no ato insurgente contra o estado atual de coisas: democracia representativa, economia de mercado, propriedade privada; enfim, a tal da “religião capitalista”. Em outras palavras, vivemos presos num constante estado de sítio em uma sociedade desumana. E, se o futuro já está entre nós, o que precisa mudar? Nenhum ato político traz o sentido de mediações institucionais. Sem história e no atual estado de urgência, só nos resta perpetuar a guerra.”

Sem as utopias, os rebeldes se tornaram “revolucionários sem causa”, niilistas que querem destruir o “sistema”, mas sem saber o que exatamente colocar em seu lugar. O sentimento de mediocridade oprime e é desesperador, como revela a narradora Úrsula: “O que estaria fazendo em meu mundo, àquela hora? Era triste constatar que não seria importante, que não faria a mínima diferença. Estaria cuidando dos meus pequenos interesses, como todo mundo. Mônadas frenéticas tentando sobreviver no caos urbano, prisioneiras nas malhas das burocracias públicas e privadas, como abelhas operárias, sem jamais enfrentar a dúvida ou de vazio que sempre nos espreitam nos interstícios das coisas e eventos”.

Pode ser pesado carregar esse fardo mesmo, acordar e dormir só para sobreviver mais um dia, sem muito sentido, como Sísifo tendo de levar a pedra morro acima apenas para recomeçar do zero depois. Mas eis a lição fundamental dos conservadores: as “fugas” para esse sentimento opressor não devem ser buscadas na política, jamais! Tentar espantar o tédio brincando de revolução é um perigo.

Para isso temos as artes, para sublimar. E para essa angústia da consciência da finitude e do niilismo temos as religiões. É nelas que temos melhores respostas, não na revolução utópica, se ainda existe, ou na pura insurgência destrutiva, mais comum hoje. Aceitar a mediocridade das democracias representativas e do capitalismo, o fato de que podemos sonhar apenas com evolução gradual e não revolução plena, exige certa maturidade. A alternativa é querer ser o escritor do mundo real, bancar o Deus de verdade, e com isso contribuir para transformar a vida dos outros num inferno.

Rodrigo Constantino

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