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O conservadorismo nacionalista não pode atropelar o liberalismo econômico
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Donald Trump sabe como poucos mobilizar multidões, energizar comícios, enfrentar adversários políticos e vencer eleições. Vem do showbiz e não se importa em adotar discursos mais populistas. Nunca foi um intelectual e sequer demonstrava ter convicções ideológicas fortes. Não era um conservador parrudo como um Ted Cruz, que disputou com ele as primárias. Mas era talvez o mais apto a derrotar, como de fato fez, a esquerda “progressista”. Contou com a ajuda de uma péssima adversária.

Trump despertou reações diversas dentro da própria direita conservadora. Surgiu o movimento dos Never Trumpers, que se recusavam a apoiar um nome contrário a quase tudo aquilo que os republicanos defendiam. Tal postura parece radical e infantil, e Trump se mostrou, no governo, mais conservador do que muito conservador do establishment. Mas é inegável que não só aspectos morais de comportamento, como também sua visão econômica batem de frente com tradições republicanas.

Julgo a mais correta postura aquela de gente como Ben Shapiro, que elogia quando acha que o presidente merece elogio, e critica quando acha que a crítica é merecida, preservando assim sua independência. Políticos de direita não devem ter bajuladores de torcida, e sim críticos construtivos. E uma das principais críticas que Shapiro faz ao governo atual diz respeito ao seu entendimento da economia e da globalização. Esse, como já disse lá atrás, é o calcanhar de Aquiles de Trump, que mantém uma visão mercantilista e excessivamente nacionalista de mundo (não confundir com o saudável patriotismo).

Pois bem: o fenômeno do bolsonarismo no Brasil parece seguir a mesma linha. Sem um movimento conservador organizado, muito do que os seguidores de Bolsonaro fazem é olhar para o próprio Trump como inspiração, e o filho do presidente eleito, Eduardo, saindo do prédio do magnata usando seu boné diz tudo. É o que argumenta o professor Carlos Gustavo Poggio em importante artigo publicado no Estadão:

A solução bolsonarista para a ausência de um movimento conservador organizado no Brasil tem sido, aparentemente, importá-lo dos Estados Unidos. Portanto, torna-se fundamental compreender a evolução do movimento conservador naquele país – bem como que tipo de conservadorismo é representado por Trump – se quisermos entender o que se passa atualmente em terras tupiniquins.

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Aquilo a que nos referimos hoje nos Estados Unidos como “conservadorismo” é na verdade uma coalizão de diferentes perspectivas ideológicas que de início não faziam parte de um mesmo conjunto articulado de ideias. Essa coalização, como demonstra George Nash no seminal The Conservative Intelectual Movement in America, foi construída apenas a partir dos anos 1950 e consolidada ao longo da década seguinte. Não que não houvesse conservadores antes disso, mas os que existiam eram vozes isoladas e não um movimento organizado de intelectuais. Isso só se tornou possível com a criação da revista National Review, fundada por William Buckley Jr. em 1955. 

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Grande parte do esforço de Buckley à frente do periódico foi compatibilizar duas perspectivas que de início não pareciam ter muito em comum: os libertários e os tradicionalistas. Os primeiros, eram representados por intelectuais austríacos que, durante a ascensão do nazismo entre os anos 30 e 40, emigraram para Inglaterra, como Hayek, ou para os Estados Unidos, como Mises. Esses intelectuais da chamada “Escola Austríaca” e seus aderentes reagiam contra aquilo que viam como um excesso de intervenção estatal na economia. A publicação de O Caminho da Servidão de Hayek, em 1944, foi um enorme sucesso nos Estados Unidos, que naquele momento experimentavam as políticas intervencionistas representadas pelo New Deal de Roosevelt. Nesse livro, Hayek faz uma incisiva crítica ao planejamento estatal da economia, que tenderia a levar ao totalitarismo. Ao desenvolver a noção de “ordem espontânea”, Mises, Hayek e outros integrantes da escola austríaca deram uma forte contribuição intelectual para a defesa do livre mercado e para a crítica ao intervencionismo estatal. A partir de então, muitas das críticas ao New Deal seriam feitas tendo como pano de fundo o edifício intelectual construído pela Escola Austríaca.

Paralelamente ao desenvolvimento da Escola Austríaca, emergia nos Estados Unidos um grupo de intelectuais que seriam posteriormente classificados como “tradicionalistas”, cujo marco central foi a publicação do clássico de Russell Kirk The Conservative Mind, em 1953. Esse livro é largamente considerado o texto fundador do moderno conservadorismo americano. Kirk, e outros intelectuais de peso, como Richard Weaver e Robert Nisbet, tinham como preocupação central não necessariamente o aspecto econômico, mas os efeitos sociais e políticos tanto do totalitarismo como da democracia moderna de massas. Eram classificados como tradicionalistas, pois defendiam a tradição e os costumes da civilização cristã ocidental que era percebida como ameaçada pelas forças da modernidade industrial. 

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Enquanto libertários se focavam em aspectos econômicos, tradicionalistas pouco falavam de economia, preferindo tratar de sociologia, filosofia ou literatura. Enquanto libertários sublinhavam a questão da liberdade, tradicionalistas se preocupavam com a virtude. Enquanto que as teorias libertárias prosperavam entre intelectuais seculares no norte industrial dos Estados Unidos, os tradicionalistas se sentiam mais confortáveis no sul agrário. Com enorme frequência, os tradicionalistas criticavam o capitalismo moderno, encarado como uma ameaça aos valores tradicionais. Kirk em particular era um forte crítico das posições libertárias. 

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Juntar essas duas vertentes não foi tarefa simples. Exigiu anos de debate nas páginas da National Review, cuidadosamente orquestrado por Buckley. Uma função importante de Buckley durante esses debates foi marginalizar expressões do conservadorismo consideradas indesejáveis, tais como aquelas que esposavam ideias abertamente racistas, teorias da conspiração ou ateísmo militante. Os defensores dessas ideias eram frequentemente criticados ou impedidos de escrever para a revista. 

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Marginalizando algumas expressões e ajustando outras, chegou-se por fim a um compromisso, que ficou conhecido como “fusionismo” – a fusão de ideias libertárias e tradicionalistas com o fim de criar um conservadorismo de características marcadamente norte-americanas.

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No entanto essa fusão não pode ser atribuída apenas às habilidades intelectuais de Buckley e Meyer. Um elemento crucial era a existência de um inimigo em comum a ambas as vertentes: o comunismo. O sistema representado pela União Soviética, ateísta e estatista, era simultaneamente uma ameaça tanto à tradição cristã quanto à liberdade econômica. Em outras palavras, o anticomunismo da Guerra Fria foi o cimento dessa união que criou e sustentou o conservadorismo norte-americano durante a segunda metade do século XX.

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Dado que um elemento central da eleição de Bolsonaro foi sua conversão ao liberalismo econômico, representada pela escolha de Paulo Guedes como assessor de primeira hora, temos um óbvio dilema para a consolidação do nascente movimento conservador brasileiro. De forma similar à síntese operada pela National Review ao longo dos anos 1950 e 1960, os novos conservadores brasileiros têm pela frente a tarefa de harmonizar o liberalismo guedista com o paleoconservadorismo araujista. Já é possível detectar alguns indícios desse esforço na insistência dos defensores do presidente eleito em marcar as diferenças entre o conceito de globalização e o que seria o “globalismo”. Assim, Paulo Guedes e a ala liberal bolsonarista são a favor da globalização. Araujo e os paleocons não se oporiam necessariamente à globalização, que seria um fenômeno meramente econômico, mas apenas ao “globalismo”, que seria um fenômeno político. Portanto, insistem os bolsonaristas, são duas coisas diferentes que não necessariamente se anulam. Falta ao fusionismo tupiniquim, no entanto, o cimento da Guerra Fria que foi tão central para a versão original americana. Não está claro ainda se o antipetismo, que foi um fator importante para a aproximação dessas duas correntes, poderá ser esse cimento no longo prazo. Com o PT fora do poder é possível que o antipetismo perca gradualmente esse papel, podendo levar a uma desagregação desses blocos.

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Assim, quando os conservadores brasileiros olham para Trump como inspiração, devem ter claro que estão diante de algo bastante distinto do conservadorismo que historicamente predominou no país.  Se, na ausência de base intelectual própria, vamos importar o conservadorismo dos Estados Unidos, devemos ao menos saber o que estamos importando.

Concordo com muito do que foi dito no texto. Falta ao movimento conservador brasileiro um mínimo de coesão e embasamento teórico, tudo prejudicado de certa forma pela cacofonia das redes sociais. E Bolsonaro foi eleito, como alerta o próprio “guru” Olavo de Carvalho, antes de uma mudança cultural necessária, o que pode trazer desafios enormes também. O que será entendido como conservadorismo em nosso país?

Creio ser fundamental manter as tradições conservadoras, que destacam o papel cultural e também religioso no advento das liberdades individuais, mas sem matar o grande apreço que os conservadores tradicionais sempre tiveram pelo liberalismo, em especial o econômico. Se os liberais focam demais só na economia e os libertários são quase esquerdistas que a gostam de lucro, os conservadores nacionalistas rejeitam o livre mercado e apostam muito na sabedoria de agentes do estado. É preciso buscar um meio termo.

Se a National Review tentou o “fusionismo” na década de 1950, talvez o papel do Instituto Liberal no Brasil hoje seja buscar esses denominadores comuns, rejeitando o radicalismo libertário de um lado e o nacionalismo tacanho do outro. Um liberalismo clássico com fortes doses de conservadorismo cultural: será que é possível caminhar para essa síntese?

A mídia tratou a Cúpula Conservadora, evento liderado por Eduardo Bolsonaro, como o análogo da CPAC americana, o principal evento conservador que reúne os pensadores que debatem as ideias e rumos do movimento conservador no país. Mas talvez isso não seja o mais adequado. Não só o evento contou com adesão relativamente baixa, como o maior destaque foi dado ao pedido de casamento que o deputado fez ao vivo à sua namorada.

Enquanto isso, o MBL organizou seu quarto Congresso Anual pouco antes, reunindo quase duas mil pessoas e atraindo gente como Paulo Guedes e Janaina Paschoal, além de Helio Beltrão, Guilherme Fiuza, Alexandre Borges e Carlos Andreazza. Eu deveria ter participado como palestrante, mas infelizmente não pude ir por conta de atrasos da imigração americana. O evento do MBL tem uma pegada mais intelectual do que a Cúpula Conservadora de Bolsonaro, debate mais ideias (liberais e conservadoras), e não deixa de lado a importância desse aspecto do conservadorismo tradicional: o enorme respeito pelo livre mercado.

Os jornalistas podem preferir focar no evento de Eduardo Bolsonaro e dar destaque para idiossincrasias dele e de outros presentes, como uma mulher que foi retratada pela Folha de SP como basicamente uma idiota alienada (e esses tipos existem aos montes, mas não são maioria). Mas a verdade é que há em expansão um verdadeiro movimento liberal-conservador no Brasil, que busca raízes intelectuais sérias para dar embasamento ao seu ativismo político.

Bolsonaro foi eleito antes de esse movimento se sedimentar com bases mais sólidas, e isso oferece oportunidade e risco. A oportunidade é chegar ao poder antes e, com a equipe liberal de Guedes, partir para as reformas necessárias e salvar o Brasil da desgraça iminente. O custo seria bem maior depois. O risco é a ala mais nacionalista, que chega a desprezar o liberalismo, atropelar os liberais e manchar a imagem da direita no país, ainda em construção.

Precisamos de mais Hayek e Burke, e de menos Steve Bannon. Trump pode ser uma inspiração, mas com ressalvas. O Brasil não pode se dar ao luxo de virar as costas, uma vez mais, ao liberalismo econômico.

Rodrigo Constantino

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