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Ouvir o outro lado não é o mesmo que ser um “isentão”
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Eu confesso: ataquei muito a figura do “isentão” aqui no blog. Infelizmente, percebo que uma ala da direita tem interpretado de forma equivocada o que seja combater essa “imparcialidade” dissimulada. O “isentão” que eu condenei várias vezes é aquele que tem claramente uma ideologia, mas finge não possui-la. É o tipo que até “critica” a esquerda, mas o faz de forma pensada para, no fundo, defende-la nas entrelinhas. É o que diz “não sou petista, mas…”

Isso não quer dizer que devemos fechar o ouvido para o outro lado, que não haja vida inteligente mais à esquerda, ou que quem não se transforma em bajulador de político e militante partidário seja automaticamente um “isentão” a serviço da esquerda. Podemos – e devemos – ter nossas convicções políticas, de preferência após muito estudo, muita reflexão, numa busca desinteressada pela verdade. Mas devemos sempre partir da premissa da nossa falibilidade, o que demanda maior humildade.

Em sua coluna de hoje na Folha, Vinicius Mota fala exatamente sobre isso, sobre a importância de ouvir o outro lado de forma mais atenta e desarmada. Para Mota, “Ouvir o outro lado é reconhecer a falibilidade do julgamento humano”, o que vai ao encontro do que Karl Popper defendia como força das sociedades abertas, contra os totalitarismos tribais. Diz o colunista:

Ouvir o outro lado é prestigiar a utilidade do contraditório para o progresso da civilização. Apenas expostas à crítica as melhores ideias sobressaem, lapidadas, e as piores restam como contraste sem o qual não se pode enxergar nem compreender.

Ouvir o outro lado é combater o tirano que subsiste dentro de nós. O impulso liberticida está pregado no fundo da alma tribal do ser humano. Insidioso e assintomático, requer abalo externo para se revelar.

Ouvir o outro lado é partilhar a sabedoria que vê na luta política um ritual cívico entre polos que se completam. A razão está no choque entre liberais e conservadores, progressistas e tradicionalistas, revolucionários e processualistas. Nunca está com uma parte isoladamente.

Ouvir o outro lado faz parte da ascese para tornar-se um indivíduo livre. É despojar-se dos laços de parentesco, ideologia, religião, autoridade, coleguismo e amizade em nome de uma compreensão mais equilibrada dos fatos.

Ouvir o outro lado é praticar a democracia. É afirmar, pelo respeito reverencial a quem é atropelado no movimento paquidérmico dos poderosos, que a hierarquia surge da contingência, e não de uma assimetria fundamental entre os cidadãos.

Não necessariamente precisamos concordar que a razão estará entre liberais e conservadores, progressistas ou tradicionalistas, ao menos não de forma equitativa, bem ao centro. Isso seria um “radicalismo de centro” que pode também não fazer muito sentido. Particularmente, eu acho que a razão estará mais de um lado do que do outro, mas o embate civilizado entre eles é mais do que saudável: é fundamental para nosso progresso. E é isso que os “tribalistas” atacam.

O discurso de que ou está 100% do meu lado ou é meu inimigo é típico de totalitários intolerantes. A narrativa de que ninguém do outro lado presta, pode ser inteligente e honesto, idem. Não estendo o “outro lado” ao infinito, aos extremos, ou seja, não estou dizendo que mesmo um comunista, um petista, tem algo bom a acrescentar ao debate.

Mas daí a agir como se qualquer um mais para lá um pouquinho já seja um “comuna infiltrado” vai uma longa distância, que separa os sérios dos militantes fanáticos. Já tem gente mandando um analista sério e com viés conservador como Carlos Andreazza para Cuba! Tem quem diga que João Amoedo, do Novo, seja um “cavalo de Tróia” implantado por George Soros para destruir a direita! É um nível de loucura assustador. Podemos ser um pouco mais compreensivos por se tratar de ano eleitoral, mas não dá para engolir essa postura em quem fala em nome do conservadorismo.

Felipe Moura Brasil comentou sobre esse assunto, e faço minhas cada palavra:

Até anos atrás, “isentão” era uma maneira irônica de se referir na internet a jornalistas que posavam de isentos, mas distorciam os fatos a favor de seus grupos políticos ou ideológicos, como se apontava dando aspas aos textos originais e decompondo-os com argumentos lógicos e demonstrativos, não com meras associações aos grupos.

Hoje virou um rótulo disparado nas redes sociais contra analistas independentes, com credibilidade, relevância e fonte de renda definida, que não militam a favor do candidato de quem dispara, não passam o dia babando ovo de um político específico, não aderem cegamente a movimento algum e que, por todas essas razões, seja na internet ou em veículos de comunicação, falam ao grande público, não a um gueto virtual de convertidos.

A mera associação política é a imitação vulgar da demonstração lógica e argumentativa, assim como a chacota odienta é a imitação vulgar da ironia fina.

Os praticantes das primeiras ainda afetam superioridade em relação aos das segundas, sem se dar conta de que a afetação de superioridade é, também, a imitação vulgar da superação real.

A internet foi e continua sendo, apesar de derrubadas de páginas e banimentos fantasmas, um espaço onde o cidadão comum pode e deve vigiar tanto os profissionais da imprensa quanto os políticos e demais agentes públicos.

Mas a militância vulgariza a vigilância da sociedade, especialmente quando passa a incorrer em tudo que condena.

Direto ao ponto. A militância age como espelho do que condena do outro lado, justamente porque perdeu qualquer capacidade de ouvir o outro lado. Não tenho muito respeito pelo “isentão”, por aquele que tenta esconder seu viés ideológico, que age de maneira dissimulada. Mas tampouco tenho apreço por quem enxerga “isentão” em todo lugar, confundindo-o com um analista sério e independente, que busca a imparcialidade e aceita a própria falibilidade.

Devemos ter mais respeito pelo contraditório, mesmo que, no confronto de ideias, saiamos com mais convicção ainda de que estamos do lado certo.

Rodrigo Constantino

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