• Carregando...
Quando leões selvagens rondam nossas casas, o que fazer?
| Foto:

Defender ou não defender o governo Trump, eis a questão para muitos liberais. O presidente americano, como Alexandre Borges já argumentou num texto publicado na Gazeta do Povo, não pode ser colocado dentro de caixinhas ideológicas. Ele tem muitos componentes efetivamente liberais, como a defesa da redução da regulação e dos impostos, o combate ao Obamacare e ao ecoterrorismo, o enaltecimento do capitalismo e do empreendedor. Mas ele também carrega o germe do protecionismo mercantilista, e algumas de suas bandeiras são mais conservadoras do que liberais.

Diante dessa mistura às vezes incoerente, alguns liberais preferem se unir à esquerda para transformar Trump num claro inimigo do liberalismo. Seriam liberais e “liberais” unidos para combater o conservador nacionalista. Tenho sustentado a tese de que tal postura é um erro, e que os liberais, hoje, deveriam estar ao lado dos conservadores, mesmo de tipos como Trump, pois o inimigo verdadeiro e mais ameaçador das liberdades vem de outro lado, pela esquerda.

Um dos poucos esquerdistas que respeito no Brasil, o sociólogo Demétrio Magnoli, escreveu um artigo hoje no GLOBO em que ataca a incoerência desses liberais-conservadores que apoiam Trump. Recebeu o elogio de um amigo meu liberal-libertário, o que só demonstra como, nessa disputa cada vez mais polarizada, os libertários têm muitas vezes tomado o partido da esquerda contra os conservadores. Diz Demétrio:

Os liberais-conservadores que aderem ao governo Trump jogam seus princípios numa lixeira instalada à frente da Casa Branca. Convertem-se em defensores do protecionismo econômico e das políticas identitárias nativistas. Curvam-se ao conceito nacionalista do “America First”, que atribui ao governo a prerrogativa de moldar a economia e, inclusive, de premiar ou punir empresas específicas. No mesmo passo, tornam-se cúmplices da parceria com Vladimir Putin e com os partidos da direita antiliberal na Europa. Em busca de um pretexto, esses adesistas agarram-se às promessas trumpianas de desregulamentação, redução de impostos e corte de gastos sociais para simular coerência ideológica. Relida por eles, a doutrina liberal não é uma ferramenta de incremento da produtividade ou de preservação das liberdades, mas um ariete contra o Estado de Bem-Estar e suas redes de proteção social.

Acho que Demétrio descreveu as complexidades do movimento e talvez algumas incoerências, até porque, como já disse, Trump não pode ser colocado numa caixinha ideológica mesmo, e sem dúvida não é um liberal clássico. Sabemos disso! Não viramos as costas para seus defeitos. Eu já critiquei seu viés mercantilista em alguns textos diferentes. Apenas entendemos o “big picture” e avaliamos como positivo o efeito líquido.

Quem viver, verá. “So far, so good”. O “homem laranja” surpreendeu positivamente até agora: desmontou um monte de besteira esquerdista, declarou guerra às regulações excessivas de Obama, enfrentou com coragem o establishment que conta com o apoio da mídia. Não fez mais porque seu partido não deixa, como no caso do Obamacare (uma vergonha!). Mas não resta dúvidas de que Trump tem se mostrado mais liberal do que muito “liberal” por aí.

Para Demétrio, que é de esquerda, atacar o paternalismo estatal é terrível. Para liberais, isso deveria ser o máximo! Mais uma coisa: críticas similares poderiam ser e foram feitas a Ronald Reagan. Muitos liberais atacaram o republicano na época, com seu projeto “Star Wars”, com a expansão de gasto público para financiá-lo, com seu “simplismo” beligerante ao declarar guerra ao “império do mal”. Mas estariam ignorando o “big picture”, não?

Sei que os liberais “purinhos” querem ficar fora da política, acima da política com “p” minúsculo, mas isso não é possível na prática. Eis o que muitos não entendem, em minha opinião. É preciso escolher A ou B, por mais que defendamos nossos princípios e valores em separado, ou que façamos críticas pontuais aos erros daqueles que tomamos partido. Trump é para ser um inimigo hoje, ou um aliado? Eis a escolha. E identificar quem tem considerado ele um inimigo mortal talvez possa ajudar em nossa própria decisão.

Luciano Ayan escreveu um comentário interessante ontem que se aplica aqui:

Li isto de um libertário: “Luciano, você não pode classificar os anarcocapitalistas como sendo de direita ou esquerda, pois eles, como libertários, negam a política”. Que coisa, não é? O duro é que negar a política não faz muito sentido. Imagine que tenhamos dois tipos de tribo na savana. As que se protegem dos leões selvagens, e as que não se protegem dos leões selvagens. Repare também que os leões selvagens rondam a região. A terceira alternativa é “viver como se os leões selvagens não existissem”. Isso não tem consequência prática, a não ser te tornar refeição de leão ainda mais cedo que qualquer indivíduo pertencente aos outros grupos. É como li em algum lugar: “você pode ignorar as consequências, mas não pode ignorar as consequências de ter ignorado as consequências”.

Leões globalistas rondam nossa floresta, e Trump é o líder da tribo que quer se defender. Não vou me alinhar aos leões ou aos que ignoram a existência dos leões. Isso não quer dizer apoio irrestrito a Trump, tampouco que ele é “um dos nossos”, um liberal legítimo ou um conservador de boa estirpe. Há outros nomes em seu partido que possuem maior afinidade com o histórico de ideias conservadoras, sem dúvida. Mas eles perderam ou perderiam para a esquerda globalista.

Trump ganhou. E é inegável que isso se deve muito ao seu estilo, que alguns descrevem como populista (não concordo, pois populismo é pregar o estado como agente de transformação, defendendo benesses para todos, e Trump diz o contrário, pretende retirar o excesso de estado da vida dos indivíduos). Ele pode não ser o ideal para os liberais, ou mesmo para os conservadores de boa estirpe. Mas é o que temos hoje para o jantar. É aquele com coragem para enfrentar os leões. E por isso merece, sim, nosso apoio nessa batalha.

É muito cômodo ficar numa torre de marfim atacando tudo e todos. Mas, na vida real, quando há leões rondando nossas casas, essa escolha significa a morte certa. Eu prefiro lutar. Mesmo que meu aliado não seja aquele “ideal”…

PS: Muitos liberais também teceram ou ainda tecem críticas a Churchill, que seria beligerante demais, incoerente na defesa dos princípios liberais ou conservadores etc. Mas Churchill era a única opção disponível para enfrentar Hitler. E se mostrou um grande estadista. Imperfeito, claro. Incoerente muitas vezes, sem dúvida. Como todo estadista, diga-se. Afinal, o estadista não se torna estadista por sua coesão teórica, mas por seu senso prático, por suas ações concretas que trazem bons resultados. Deveria um liberal da época se opor a Churchill? Seria o mesmo que se entregar aos leões.

Rodrigo Constantino

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]