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Por Lucas Berlanza, em Sentinela Lacerdista

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Ives Gandra Martins, jurista, advogado, professor e escritor brasileiro, é uma figura que dispensa maiores apresentações. Apenas por ser quem é, seu livro Uma breve teoria do poder, que acaba de ser relançado pela valente editora Resistência Cultural, em uma terceira edição de belíssimo acabamento, revista, ampliada e atualizada, já seria automaticamente recomendável. Constato, após a leitura, que a qualidade prometida pelo nome do autor está entregue.

Ao tecer comentários sobre a obra, jamais, em minha pequenez, eu poderia me substituir, diga-se de passagem, aos textos introdutórios, anexados ao conteúdo, redigidos por figuras do calibre de Ney Prado, Antônio Paim e Ruy Altenfelder. Ainda assim, ainda que algo acanhado pela grandeza dos nomes, permito-me a ousadia. Em contraposição a essa ousadia, o autor acredita que seu trabalho tem uma pretensão modesta. Ele já o principia afastando de sua “breve teoria”, tal como ela já é apresentada no título, qualquer adjetivação convencional – seja política, econômica, histórica ou jurídica. “É apenas uma teoria sobre a natureza do homem, no exercício do poder sobre os outros, quando assume governos”, o que seria, a seu ver, a restrição fundamental de seu escopo temático, estando ele inclusive não muito à vontade com a suposta abrangência da própria palavra “teoria” que selecionou, na ausência de outra melhor.

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Minha dificuldade é em compreender sob que ponto de vista isso pareceria pouca coisa. O professor Ives Gandra está atacando o ponto fulcral: a real dimensão do humano, sem conferir credibilidade a abstrações por definição intangíveis, no trato com a questão do poder. O livro tem uma pretensão analítica, desde já digo que muito bem realizada, maior do que a que confessa, e das observações que destrincha podemos deduzir consequências práticas, úteis às nossas presentes reflexões sociais e políticas.

Essencialmente, Ives Gandra é cético em relação às grandezas morais do homem e do poder. A busca pela sua posse e exercício não seria, em caráter geral, consequência de anseios transformadores motivados por nobres virtudes, ou disposições naturais para servir; conquanto consinta em que existem, como exceções, os nobres estadistas (entre os quais ele pontua Churchill e o presidente brasileiro Campos Salles), em geral os homens querem o poder em uma sanha de ambição pessoal originária “do instinto de sobrevivência”. O autor compara o homem primitivo aos animais, que disputam a liderança para se manterem vivos. Entre as primeiras tribos, o objetivo seria o mesmo: buscar o comando para ter maiores chances pessoais de sobrevivência, muito embora, justamente por isso, ainda que totalmente em segundo plano, esse anseio “egoísta” o levasse a aumentar, pelo próprio talento, as chances de sobrevivência da coletividade.

“Desde os tempos primitivos, o homem deseja o poder por um instinto de sobrevivência e de comando, em que o servir é apenas um efeito colateral – mas não necessário – e que o próprio exercício do poder esconde uma luta pela sobrevivência, a qualquer custo, em patamares inimagináveis, em face das ambições dos que o procuram”. A partir dessa premissa, Ives Gandra faz uma viagem, ancorada em extensa e apurada bibliografia e reveladora de um vastíssimo conhecimento em História, por diferentes épocas da humanidade – com direito a uma reconstrução curiosíssima das principais guerras e conflitos em geral da Antiguidade -, pelo desenvolvimento da questão do poder ao longo de todos os tempos do Homo sapiens sapiens. Sua conclusão é que esse princípio não se modificou de maneira substancial, e que variantes dos mesmos anseios e dos mesmos erros ainda grassam nas diversas sociedades, quer na Babilônia Antiga, quer na Roma dos césares, quer na era de Napoleão, quer no mundo dos bolivarianos, dos populistas latino-americanos e dos extremistas islâmicos de hoje em dia.

Essa visão que pode soar pessimista e demasiado “pé no chão” não exclui a convicção, a nosso ver profundamente meritória e necessária, na existência de um Direito Natural. Gandra acredita, como eu mesmo, que existem direitos que “a convivência humana pode criar e adequar, de acordo com seus interesses, desejos e ideais, conformando a ordem jurídica de seu povo e de sua comunidade”, mas que há, ao mesmo tempo, aqueles outros que o direito positivo “apenas reconhece”, tais como “o direito à vida, à dignidade, à privacidade, à não tortura”. A partir do próprio famigerado e antiquíssimo Código de Hamurabi, Ives Gandra enxerga que os códigos legais, em todos os tempos, reconheceram, a despeito de seus desvios e defeitos, a existência de direitos naturais dos seres humanos. Apenas reconhecer essa prerrogativa moral não o torna cego ao fato de que existe uma “indesejável tendência humana de o mais forte terminar por conquistar o poder, dentro das leis da sociedade em que vive, principalmente nos regimes democráticos, ou fora delas, desde que tenha força para rompê-las, criando seu próprio espaço jurídico para justificar o poder”.

Entre ditaduras, democracias e semidemocracias, algumas das quais pormenorizadas em suas características com brilhantismo na obra, Ives Gandra enxerga e diagnostica sempre o uso de diferentes armas – o dinheiro, a demagogia, o que seja – para que os que buscam e atingem o poder possam mantê-lo e ampliá-lo, tal como o líder fazia nas tribos primitivas. Destacando, por exemplo, o grave problema da destinação dos recursos do orçamento para sustentar burocratas confortavelmente instalados na máquina pública e municiar “amigos do rei” – num raciocínio que grita muito aos dilemas do Brasil de hoje -, Ives Gandra mostra que o corpo do poder, mesmo com a presença de códices legais, é constantemente manipulado para sustentar os privilégios do grupo que trabalha por instalar-se nele.

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O que Ives Gandra está dizendo com maestria é que a constatação principal de seu livro não é fácil, não é otimista, não é agradável, mas importa assumi-la, por responsável e realista. A despeito de reconhecer a realidade do poder, a sua inevitabilidade, mas ao mesmo tempo expor esse retrato pouco enobrecedor de sua práxis, Ives Gandra declara em alto e bom som sua crença muito maior na sociedade do que no poder. A sociedade, exercendo o poder – também ele – de contestação, introduzindo o diferente. A sociedade produzindo, desenvolvendo; não, é muito válido destacar, a sociedade caindo no engodo dos ideólogos e dos revolucionários, os imperadores da demagogia, que, julgando-se acima desses estreitos limites da natureza humana, em verdade, ao fim das contas, sofisticam a argumentação abstrata para um mesmo desejo que anima o homem desde as mais priscas eras. Promovem, como eu mesmo disse há poucos dias, a “corrupção da realidade”, a pior de todas as corrupções.

As apreciações sobre as características específicas da Constituição brasileira e as citações a Gene Rodenberry e à série de ficção científica Star Trek – pela qual, pelo visto, eu e o grande Ives Gandra parecemos compartilhar admiração -, agregam ao charme e à consistência da obra. Próximo à conclusão do livro, porém, certa hesitação me afasta do pensamento do professor; ao passo que critica a ingenuidade de Immanuel Kant ao supor que a disseminação de regimes republicanos pelo mundo seria capaz, em breve, de anular a guerra, Ives Gandra postula que, até o final do século XXI, deve surgir um Estado Universal, com uma característica jurídica a ser acatada por toda uma comunidade internacional. “As relações entre as sociedades tendem a se globalizar, razão pela qual a volta da discussão sobre um Estado Universal não é de todo afastada, principalmente após a experiência da União Europeia, que se transformou num ‘Mini-Estado Universal’”.  Vejo a proposta com preocupação e acho muito difícil garantir que tamanho complexo respeitaria a diversidade de culturas e a soberania das nações; o exemplo comparativo também me parece infeliz, defrontando-nos hoje com a crise do multiculturalismo e do intervencionismo daquele bloco europeu, em tempos de Brexit. Antes ele parece evidenciar os problemas da teoria que as suas virtudes. A História deverá dizer de que lado estará a razão a esse respeito.

Finalmente, a pretexto de discordar do mote, que seria especular sobre essa estranha comunidade internacional imaginária que ainda me parece muito distante da realidade, enterneceu-me o coração o pensamento do autor em reconhecimento das virtudes nacionais, quando ele diz que “neste particular, a maneira de ser da civilização lusíada, em que a integração foi sempre o elemento de maior presença, poderá servir de exemplo. Haja vista que, em idêntico espaço americano, conseguiu manter um país único, com variadas formas de cultura, ao contrário da América Espanhola, que se pulverizou em um número enorme de nações. E a prova maior reside numa integração consideravelmente mais relevante entre as diversas raças no Brasil do que em outras nações, ao ponto de todas as culturas que se somaram posteriormente à portuguesa lá conviverem em perfeita harmonia”.

Gosto do reconhecimento da virtude simbólica da pluralidade mais harmoniosa – não sem imperfeições, mas mais harmoniosa – do nosso povo e da nossa cultura, e me sinto em excepcional companhia ao reconhecer em Ives Gandra alguém que, como eu, mesmo com as críticas, sobretudo em uma obra que se destina a colocar nossos pés no chão, não se priva de expressar sua sensibilidade patriótica.

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