“A ideia do herói revolucionário não é, de forma alguma, nova. Na realidade, é um dos mais interessantes paradoxos do marxismo que este tenha combinado uma teoria da história que nega a eficácia da liderança com uma prática revolucionária que depende inteiramente da liderança para seu sucesso, e que foi capaz de consolidar-se no poder somente por estabelecer hábitos de adoração ao herói revolucionário”.
A passagem, de Roger Scruton sobre Gramsci, traz um ponto muito interessante sobre uma das maiores – entre tantas – contradições do marxismo: a crença no determinismo histórico concomitante ao culto do líder revolucionário. As “forças históricas” são produzidas pela luta de classes, segundo os marxistas, e do feudalismo passamos ao capitalismo que, inexoravelmente, chegará ao socialismo.
A crença em qualquer fatalismo deveria levar à inação. Ora, se tais acontecimentos independem da volição das pessoas, até mesmo da ação de indivíduos, então por que lutar tanto? Para “acelerar” o processo histórico inevitável? Claro que não faz o menor sentido, e o classismo marxista, esse abjeto coletivismo que só enxerga classes abstratas e nunca indivíduos de carne e osso como os protagonistas da história, não passa de uma forma de tornar o violento revolucionário mais insensível ao dano que causa às pessoas.
Somente quando a “burguesia” é o alvo, o grande inimigo, que revolucionários podem dar vazão à sede de violência eliminando os kulaks, os pequenos proprietários russos de terras. Somente quando os seguidores de Pol-Pot enxergam nada além de “classes dominantes” é que um terço da população do Camboja pode ser exterminada sem tanto peso na consciência dos revolucionários. Não matavam pessoas, pais e mães, gente de carne e osso, mas uma “classe”. O mesmo com os nacional-socialistas na Alemanha, exterminando “ratos judeus”, e não seres humanos como você e eu.
Não perceber que são indivíduos os verdadeiros agentes da história, cuja trajetória é sempre indefinida, é um equívoco primário que o marxismo comete, e que possibilita todo tipo de prática nefasta por parte dos revolucionários – eles mesmos indivíduos também, seguindo seus instintos mais do que sua razão, e agindo impunemente e com paz na consciência, pois se sentem agindo como uma “classe” oprimida, nunca como pessoas responsáveis por seus atos.
Toda essa longa explanação foi para chegar na realidade brasileira atual. Os petistas, herdeiros tupiniquins do marxismo, julgavam-se os “protagonistas da história” como representantes da “classe oprimida”, enquanto os demais, mesmo os esquerdistas tucanos, eram da “elite”, da “classe opressora”, e portanto “reacionários”. A mobilização das massas nas ruas era monopólio do PT, pois somente ele agia em prol do avanço da história rumo ao seu destino inevitável: o socialismo.
Muitos realmente acreditaram e acreditam nessa baboseira. É por isso que olham perplexos, com um sentimento doloroso de dissonância cognitiva, para milhões nas ruas contra o PT. Precisam ser acusados de “classe golpista”, de “elite”, mesmo que sejam pessoas comuns, da classe média, um misto de tudo, de trabalhadores, de profissionais liberais, de aposentados, de jovens estudantes, de empresários grandes, médios ou pequenos. Todos viram um monolítico grupo de “reacionários golpistas”, pois se colocam contra o “progressismo” petista, aquele que fala em nome dos pobres e de seu futuro brilhante.
Reinaldo Azevedo falou algo similar em sua coluna de hoje na Folha, mostrando, com o próprio Marx, como alguns podem ser vítimas de sua própria visão de mundo. O PT está em crise grave, definhando, murchando, e antigos aliados pulam fora do barco que afunda. O partido pode até mesmo ser totalmente destruído. Mas esquerdistas históricos se recusam a ver o que acontece. Escreve Reinaldo, usando o petista Andre Singer como exemplo:
Tentei achar nos seus textos onde estão os sujeitos que fazem história fora das hostes da esquerda. Não há. Ou os homens que disputam as narrativas estão engajados num movimento que traz em si o germe da mudança necessária ou estão articulando as forças da reação, o que levaria o mundo a andar pra trás.
É impressionante que mesmo os esquerdistas que leram mais de três livros ignorem que os valores do homem médio –que, no fim das contas, asseguram a estabilidade disso que entendemos como civilização– também podem ser afirmativos, não apenas reativos ou derivados da mobilização esquerdista. Bakunin, numa crítica pela esquerda, apontava “a falta de simpatia” de Marx pela raça humana. A crítica era pertinente. O furunculoso nunca se interessou pelo homem que há, aquele que realmente faz história, mas sempre pelo homem a haver, que existe como projeto.
O petismo perdeu o bonde. Também perdeu a rua, como ficará claro, de novo!, no dia 12 de abril. O petismo já morreu. Tornou-se vítima de sua própria concepção de mundo.
Amém! Mas não chega a ser uma declaração de fé, e sim uma conclusão lógica derivada da análise fria dos fatos, algo que os petistas jamais foram capazes de fazer. Eles eram o “motor da história”, e isso era tudo que bastava para sua arrogância e seu ataque virulento aos opositores, tratados por eles como inimigos, como obstáculos ao futuro radiante de sua utopia.
É o que dá essa mania de enxergar somente coletivos abstratos, e nunca o indivíduo de carne e osso, o único agente verdadeiro da história, sempre imprevista. Para os liberais, o indivíduo sempre faz a diferença – para o bem e para o mal.
Rodrigo Constantino