O presidente Lula, o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação do governo sobre o IOF no Supremo Tribunal Federal| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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As coisas estão escalando tão rápido no Brasil que ficamos zonzos, atordoados e até anestesiados com tanto bombardeio de abuso de poder. Nesta quarta, a decisão de Alexandre de Moraes sobre o IOF mereceu o maior destaque na farta lista de absurdos. Um Congresso basicamente humilhado vira cada vez mais uma peça decorativa e extremamente cara e inútil.

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Um conhecido meu, advogado extremamente competente, desabafou num grupo de debates: "Olha, eu me dedico ao estudo e a prática do direito há 30 anos. Alcancei a máxima titulação acadêmica que existe no país, tenho livros e artigos publicados aqui e no exterior, fui professor e orientador na graduação, mestrado , doutorado etc. Sabem para que serve isso atualmente? ZERO. Nada. É como se um físico descobrisse de repente que não há realidade a ser estudada por ele, na verdade é tudo uma simulação de Matrix. É desalentador. Deprimente".

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Nunca tivemos uma República que merecesse tal nome em nosso país, mas é inegável que as coisas se deterioraram de uma maneira impensável há alguns anos

Tenho certeza de que ele fala em nome de muitos operadores do Direito, pois o Brasil virou terra sem lei. Outro advogado tarimbado, Leonardo Correa, interrompeu suas férias para escrever um texto explicando, de forma didática, o surrealismo da decisão alexandrina. Eis um trecho:

Há momentos em que uma decisão judicial deixa de ser apenas um ato técnico e se converte numa inflexão política. Foi exatamente isso que se viu na decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes ao suspender, por liminar, os efeitos do Decreto Legislativo 176/2025, com o qual o Congresso Nacional havia sustado os decretos presidenciais que majoraram o IOF. A cena é de um simbolismo desconcertante: um único ministro se sobrepondo à deliberação de 383 deputados federais. E nem mesmo os 98 que votaram “não” devem ser ignorados, pois também deliberaram. Cada voto, ainda que vencido, é parte legítima do processo. A vitória, no jogo republicano, é sempre construída sobre o conflito legitimado pelas regras do debate.

Mas esse simbolismo não é apenas retórico — ele traduz uma patologia institucional. O Congresso, ao exercer o controle político previsto no art. 49, V da Constituição, atuou com base na percepção de que os decretos do Executivo, sob o pretexto de extrafiscalidade, estavam sendo usados com fins puramente arrecadatórios. Trata-se de uma avaliação política, não técnica. Ainda assim, o Judiciário decidiu que caberia a ele, e não ao Legislativo, aferir a “finalidade legítima” do decreto presidencial. A consequência? Um esvaziamento simbólico e jurídico da principal função de vigilância do Parlamento.

Leonardo Correa segue explicando em detalhes técnicos os erros grosseiros cometidos por Moraes na decisão sobre o IOF, e mesmo um leigo pode compreender que o ministro foi longe demais desta vez até para seus padrões! Usando o clássico de Lewis Carroll como pano de fundo, Correa mostra que a lógica de Humpty Dumpty em diálogo com Alice é desconcertante:

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"Quando eu uso uma palavra", disse Humpty Dumpty num tom um tanto desprezível, "ela significa exatamente o que eu decido que signifique nada mais, nada menos". "A questão", retruca Alice, "é saber se se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes". "A questão", finaliza Humpty Dumpty, "é: quem é o mestre só isso". "A disputa semântica que Carroll satiriza é, aqui, tragicamente real: não se trata mais ou ao menos não apenas de interpretar a Constituição, mas de dominá-la. E quem domina as palavras, domina os Poderes", escreve Correa. O advogado conclui:

O Congresso fez o que lhe cabia: fiscalizou, julgou, decidiu. Sua legitimidade não decorre de pareceres técnicos, mas do voto popular. Quando o STF desloca esse julgamento para si, com base em avaliações econômicas do Executivo, o que se impõe não é o direito é o tecnocratismo judicial. A política, reduzida a ruído. A deliberação, condicionada à chancela dos intérpretes togados.

Há algo profundamente incompatível entre esse modelo de jurisdição e a ideia de República. O juiz, que deveria exercer autocontenção, passa a ser o protagonista. A Constituição, que deveria vincular, passa a ser um menu interpretativo. O Legislativo, que deveria ser o coração da deliberação democrática, passa a ser tutelado. E o povo? Emudecido com solenidade, expulso da cena pela liturgia do poder judicial.

Defender a Constituição é, antes de tudo, reconhecer que ela não é obra de iluminados, mas de um pacto. E pactos se honram na forma sobretudo na forma. Quando o órgão máximo da democracia representativa decide, é a própria soberania popular que se manifesta. A decisão que nos impôs a suspensão do decreto legislativo pode até se dizer jurídica, mas é, antes, um ato de poder. E quando o poder se mascara de técnica para invadir o espaço da política, é a República que se ausenta silenciosa, traída, ainda que vestida de legalidade.

Nunca tivemos uma República que merecesse tal nome em nosso país, mas é inegável que as coisas se deterioraram de uma maneira impensável há alguns anos. O deputado Marcel van Hattem, uma das vozes mais firmes na defesa do Legislativo independente, desabafou sobre a decisão de Moraes sobre o IOF: "Ou os presidentes da Câmara e do Senado reagem à altura ou o Congresso estará definitivamente fechado pelo Alexandre de Moraes e pelo STF". Não é exagero, mas um fato.

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Constatamos que um "juiz" tem mais poder do que mais de 500 parlamentares eleitos pelo povo para decidir sobre o aumento do IOF. O advogado André Marsiglia fez uma pergunta retórica com a qual termino o texto, deixando no ar a reflexão: "Será que Moraes hoje deixou claro que é o STF quem mantém o governo Lula de pé e que aquilo que o Congresso faz e a Constituição diz já não importam mais, ou ainda tem gente que não entendeu?".

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]