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A crise da democracia liberal no Ocidente
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Uma das características mais humanas que existem é o viés de confirmação, quando buscamos entrar em contato apenas com ideias com as quais já concordamos. Não é por acaso que o método científico é tão importante: ele cobra do analista justamente o oposto, a busca de fatos que refutem sua tese. É por isso que gosto sempre de ler autores com pontos de vista contrários aos meus. Do confronto entre seus argumentos e minhas crenças, ou estas saem fortalecidas, ou dão lugar a novas, numa incessante busca pela verdade.

Confesso ao leitor, porém, que estava ficando cansado de ler autores de esquerda, pois percebia na imensa maioria uma incrível falta de honestidade intelectual e capacidade de autocrítica. Não é mais possível ler gente como Paul Krugman e Joseph Stiglitz hoje e os levar a sério. São militantes que abandonaram há muito qualquer interesse por um debate sério.

Daí minha feliz surpresa ao ler The Retreat of Western Liberalism, de Edward Luce, graduado pela Oxford University em Política e que trabalhou no governo Clinton, seguindo depois para o Financial Times. Sua visão de mundo é claramente “progressista”, mas isso não o impede de tecer severas críticas aos próprios “liberais”, ainda que o alvo principal seja o “populista” Donald Trump.

Ele reconhece que o Progresso, com “p” maiúsculo, tornou-se uma religião no Ocidente, e que seus companheiros de ideais, quando mais jovens, pensavam que sua trajetória era inevitável, que o mundo caminharia mais e mais em direção a um modelo de ampla liberdade individual e prosperidade para todos, com menos desigualdades. A fé nas democracias liberais era inabalável, especialmente após a queda do Muro de Berlim em 1989, mas ela se mostrou prematura, ingênua até. E hoje essas democracias correm perigo.

A grande ameaça, para Luce, vem da direita nacionalista e populista, representada por gente como Trump. Até aí ele está junto com todos os “progressistas” e repete o lugar comum da mídia. A grande diferença, porém, é que ele assume a parcela de culpa da própria esquerda nesse resultado. Esses líderes populistas não causaram a crise; eles são seu sintoma.

Se o modelo ocidental de marcha para a liberdade parecia indestrutível antes, hoje já não há mais essa confiança. Era arrogância, diz, crer que todos adotariam o mesmo script e teríamos o “fim da história”. Luce aponta o dedo para vários erros dos “progressistas”, apesar de eu considerar que ele ainda está bem longe da magnitude da responsabilidade da esquerda nessa crise democrática, com a qual concordo.

Como alguém que escreveu discursos durante o governo de Clinton, era apenas natural que Luce adotasse a visão economicista de mundo, seguindo o famoso ditado de um assessor do ex-presidente: é a economia, estúpido! Ele diz que somos ensinados a acreditar que valores sustentam nossas democracias, mas que, na verdade, elas dependem mesmo é do crescimento econômico. Quando grupos brigam pelos frutos do crescimento, as regras políticas são mantidas com maior facilidade, mas quando esses frutos desaparecem, ou são monopolizados por um seleto grupo, as coisas se tornam bem feias.

Essa visão que reduz tudo à economia pode ter uma parcela de verdade, mas é bem simplista e limitada. É a tese que explica o surgimento de Trump ou o Brexit com base na insatisfação da classe média prejudicada pela globalização, sem levar em conta os valores morais esgarçados pelos “progressistas” ou a noção acurada de que o sistema está podre, não por causa da globalização, e sim por conta de sua manipulação pelo que chamamos de “globalistas”.

Ou seja, não seriam as desigualdades naturais do capitalismo o motivo da revolta, e sim as injustiças artificiais que deturparam o sistema para um “capitalismo de compadres” em escala global. Como o próprio autor reconhece, a sociedade meritocrática deu lugar a uma hereditária, em que os filhos dos ricos têm uma probabilidade bem maior de continuarem ricos, reduzindo a mobilidade. Mas ele não enxerga o estado benfeitor como culpado por isso.

Luce esbarra na verdade quando admite que a política de identidades promovida pela esquerda é parcialmente culpada pela situação. O que mudou, afirma, é a confiança pública de que estamos todos nisso juntos, incluindo as elites. O contrato social do Ocidente depende desse “referendo invisível”, que hoje não mais existe. Mas as políticas de identidade, que tratam a sociedade como menos do que a soma das partes, em nada ajuda. Elas ajudaram a inflar a revolta de uma maioria branca que agora pega emprestado as mesmas táticas das políticas das minorias. É claro que se ficarem repetindo o tempo todo que “as vidas negras importam”, em algum momento haverá grupos gritando que “as vidas brancas importam”.

Para Luce, a crise do Ocidente é real, estrutural e persistente. Nada é inevitável, e seu tom pessimista serve de alerta para aqueles que tomam como garantidas as liberdades e a prosperidade atuais. Apesar de carregar um viés de esquerda, ele quer preservar o Ocidente em vez de destruí-lo. Afinal, ele reconhece que a superioridade ocidental não tem a ver com o colonialismo ou algo do tipo, e sim com o avanço tecnológico. “A modernidade nasceu no Ocidente”, diz.

Mas a crescente desigualdade estaria impedindo a continuidade desse progresso. Analisar as médias pode ser perigoso, pois, como diz, na média temos todos 1,9 pernas cada um, já que existem os pernetas. Da mesma forma, se Mark Zuckerberg entrar para seu time de futebol, cada membro será bilionário, na média. O ponto é que a riqueza ocidental não é mais percebida da mesma forma por todos, já que uma elite fica cada vez mais rica, enquanto a classe média sofre com dificuldades crescentes, como o custo elevado de saúde e educação e a concorrência com os chineses e indianos.

Parte do problema é estrutural, como a entrada da China no mercado global. Mas o grande equívoco do autor é não se dar conta de que as políticas “progressistas” presentes no “welfare state” acabam agravando a questão. Ele mesmo deixa claro que o clima depressivo no Ocidente tem mais a ver com expectativas desfeitas do que com uma queda real no conforto material. Onde ele erra, em minha opinião, é ao não perceber que isso tem ligação direta justamente com as políticas intervencionistas do estado, com o mecanismo inadequado de incentivos, com a concentração de renda promovida pelo próprio governo, e com a narrativa ideológica da esquerda, que trata a economia como um jogo de soma zero.

Outro erro é reduzir tudo à economia, como já disse. Quando as pessoas perdem a fé no futuro, elas deixam de investir no presente, lembra o autor. Se o crescimento econômico é a religião secular das sociedades industriais, então na ausência de crescimento muitas pessoas caem no equivalente ao ateísmo. O consumo crescente de drogas e antidepressivos seria evidência disso. Mas Luce ignora que há mais do que pão na vida do homem, e que esse niilismo pode ter como causa principal a degradação de valores morais, não a estagnação econômica. A procura desenfreada de opióides pela própria elite deveria ser um sinal de alerta para a tese econômica do autor.

Somando isso tudo, temos que o estado de espírito de um povo normalmente otimista como o ocidental se tornou mais pessimista, e o tom da política mudou de esperança para nostalgia. Os ricos se fecham em suas bolhas, distantes dos demais, enquanto o povo sonha com um passado muitas vezes idealizado, onde tudo era melhor. Os centros urbanos se descolam cada vez mais das cidades rurais e suburbanas, aquelas que garantiram a vitória de Trump. Essas cidades cosmopolitas são como “ilhas tropicais rodeadas por oceanos de ressentimento”.

Diante disso, o que fazer? O autor aplaude bandeiras de esquerda, como investimento estatal em melhor educação e treinamento, mas afirma que é como tratar do câncer com aspirina. Ele critica também a turma de Davos, emblema da elite global que perdeu a capacidade de escutar. Curiosamente, ele mesmo não quer escutar o suficiente o que esses eleitores de Trump e do Brexit estão dizendo. Luce rejeita a visão arrogante dos “progressistas” que trata essa massa toda como “deploráveis”, uns alienados. Mas não consegue romper seus grilhões esquerdistas para entender que não é apenas ressentimento com a desigualdade inerente da globalização, e sim um grito legítimo de revolta contra aqueles que avacalharam com as regras do jogo, não só do ponto de vista econômico como, principalmente, do moral.

O engraçado é que ele chega perto de ver isso. Ele diz: “Quanto mais nós cedemos de poder para entidades globais, mais virulenta se torna a reação contra a globalização”. É porque não é contra a globalização que estão gritando, e sim contra o “globalismo”, contra George Soros, Obama, Davos, Hillary Clinton, contra Bruxelas e Washington, contra uma burocracia crescente que ajuda apenas aqueles já estabelecidos e poderosos o suficiente para enfrentar os custos dos negócios.

“As elites globais ajudaram a provocar aquilo que temiam: um avanço populista contra a economia mundial”, escreve Luce. E diante do declínio do espaço para as democracias nacionais, o que os burocratas pedem? Mais “integração” forçada, mais Europa sempre, e menos soberania nacional ainda. Luce diz que entrevistou vários líderes ultranacionalistas e fanáticos de cultos de todo tipo, mas ainda não viu um melhor exemplo de “pensamento de grupo” do que a Hillaryland, como chama o mundo encantado dos seguidores de Hillary Clinton.

A esquerda ocidental asfixiou o clima para novas ideias. Toda essa parafernália politicamente correta de “locais seguros” em universidades ou “microagressões” encontrou eco na campanha da democrata. Os “progressistas” perderam o elo com o homem comum, que se volta contra o establishment e a mídia em busca de quem lhe dê voz. Citando o professor “liberal” Mark Lilla, Luce lembra que o primeiro grupo de identidade que surgiu na política americana foi a Ku Klux Klan. Aqueles que jogam o jogo de identidade devem estar preparados para perdê-lo, alerta.

A democracia não pode sobreviver por muito tempo num pântano de desconfiança mútua. É por isso que Luce acha que as democracias ocidentais estão caminhando ou para populismos ou plutocracias. Ou ainda para uma mistura, como nos países latino-americanos. Tudo parece fazer sentido. O que espanta mesmo é o autor não se dar conta de quanto a esquerda “progressista” tem de responsabilidade por esse destino. O pêndulo do “liberalismo” extrapolou demais para a esquerda, e para o bem das democracias ocidentais, é urgente que ele volte mais para a direita agora. A crise não é tanto da democracia liberal, e sim do “liberalismo”.

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