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Neopopulismo patrimonialista: precisamos construir instituições republicanas sólidas e evitar clãs políticos com discursos puristas e messiânicos
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O professor Ricardo Vélez Rodriguez assumiu o Ministério da Educação, e logo recebeu diversos rótulos pejorativos da imprensa. O colombiano naturalizado brasileiro, até então um ilustre desconhecido dos nossos jornalistas, passou a ser tratado como “ultraconservador” e outros adjetivos do tipo. Mas Vélez não é nada disso. É um liberal com viés conservador e profundo conhecedor do patrimonialismo, mazela que assola o Brasil desde sempre.

Em seu livro mais recente, A grande mentira, ele faz uma análise, em diversos ensaios, do patrimonialismo petista, sempre com base nesses conceitos tradicionais que não foram inventados pelo PT, mas chegaram ao seu ápice com o partido. Há um ensaio sobre a trajetória do nosso modelo de ensino também, demonstrando que o professor conhece bem as principais causas dos nossos problemas na educação. Mas o foco aqui será o neopopulismo que ele denuncia na obra.

Antes de mergulhar nessa questão, porém, vale destacar um trecho da introdução, em que o autor mostra certo otimismo com a passagem petista pelo poder: “Os países, como os navios, não afundam por uma causa única. Vão ao fundo devido a numerosos erros que, somados, produzem as tragédias dos Titanics da vida. Foi certamente uma década perdida. Eleger o PT constituiu um erro. Mas esse erro foi um sarampo pelo qual o Brasil precisava passar”.

Após o estrago causado pela esquerda, finalmente muitos se deram conta de que precisamos “substituir a crença no salvacionismo messiânico fácil, profundamente ancorada no sentimento sebastianista do povo, pela convicção de que sem defesa da liberdade dos indivíduos e de que sem transparência na gestão dos negócios públicos não há República que mereça esse nome”. Ou seja, precisamos de mais Locke e Tocqueville, e menos Marx e Gramsci.

Entre os principais erros do PT, e Vélez aponta sete “pecados capitais”, está o enfraquecimento definitivo de nossas instituições republicanas. “A lei é entendida pelos governantes patrimonialistas como pura formalidade a ser posta a serviço dos donos do poder”, escreve o autor. Nada novo sob o sol latino, claro, mas, vale repetir, o PT levou a doença ao seu estado da arte. O centralismo do poder no Executivo, sem qualquer preocupação em prestar satisfação à sociedade sobre o trato da coisa pública, foi a marca registrada do petismo.

Na política externa, a ideologia falou mais alto que os interesses nacionais também, e o Brasil “passou a seguir os ditames do Foro de São Paulo”, ou seja, “converteu-se, assim, em repetidor das consignas socialistas do chavismo e do castrismo”. Essa análise certeira contrasta com a cegueira de tantos “formadores de opinião” que negam até mesmo o flerte do Brasil com o socialismo na era petista, como se o presidente Bolsonaro estivesse combatendo fantasmas imaginários ao falar de livrar a nação da nefasta utopia coletivista.

O resultado disso foi a derrubada, de forma definitiva, da “tradição e seriedade que tinha sido conquistada pela diplomacia brasileira, ao longo dos últimos dois séculos”. A origem do problema esteve justamente no neopopulismo patrimonialista, que o PT compartilhou com seus companheiros ideológicos na América Latina, criando um abismo entre a turma vermelha do Mercosul e aquela mais liberal da Aliança do Pacífico (Peru e Colômbia em especial).

Vélez usa vários autores para destrinchar o fenômeno, entre eles Pierre-André Taguieff, que explica o conceito do neopopulismo da seguinte forma: “o populismo, oscilando entre o autoritarismo e o hiperdemocratismo, bem como entre o conservadorismo e o progressismo reformista – não poderia ser considerado nem como uma ideologia política, nem como um tipo de regime, mas como um estilo político, alicerçado no recurso sistemático à retórica de apelo ao povo e à posta em marcha de um modelo de legitimação de tipo carismático, o mais adequado para valorizar a mudança”.

Ou seja, o líder neopopulista encara o povo como uma “entidade mítica afinada misteriosamente com o seu carisma pessoal”. Ele trabalha apenas para sua causa pessoal, elaborando “um discurso em que esta aparece identificada com a causa do povo, dando ensejo, assim, a uma deformação do princípio da soberania; ele é um demagogo cínico”. O povo, ente abstrato e de difícil caracterização, surge como instrumento retórico do populista, que se apresenta como seu único porta-voz. Além disso, ele explora sistematicamente o “ressentimento das massas contra as elites”. Confiem em mim!, grita o populista, sem qualquer apreço pelo império das leis impessoais. Tudo gira em torno de sua pessoa, uma postura contrária ao contratualismo na tradição ocidental.

“O neopopulismo contemporâneo parece emergir do desgaste das democracias representativas, a fim de apresentar uma alternativa democrática, de caráter contestatório”, diz Vélez. Os líderes aparecem como iconoclastas dos sistemas tradicionais de governo, e tudo deve ir por água abaixo: leis, decisões judiciais, instituições “burguesas”. Só restará o líder e o povo, em contato direto, um representando com perfeição o outro. A limpeza será efetuada, à maneira rousseauniana, pelos “puros” (o líder e seus asseclas).

Não há mais necessidade de mediações institucionais. É uma espécie de ação direta do líder carismático sobre as massas, com o uso das novas tecnologias como as redes sociais. A promessa é derrubar as barreiras ou a distância entre governante e governados. “As antigas elites são desprezadas, na medida em que não se assemelham à massa popular, não possuem a sua alma. O governo, para ser legítimo, tem de estar presidido por alguém que tenha a cara e a alma do povão”. O antielitismo se soma à antiglobalização e, juntos, formam “um círculo vicioso que se alimenta do imaginário conspiratório”.

A classe política é tida como completamente corrupta, e não vale a pena o trabalho de modificá-la: deve-se prescindir dela. O autor explica melhor: “A opção neopopulista pela antipolítica, cruzada com a secular tradição patrimonialista ibero-americana que faz da coisa pública negócio a ser tangido pelos donos do poder, como se fosse a sua propriedade privada, transfere para o reino do Estado uma atitude de não profissionalismo e de espírito familístico, que faz com que aquele perca a competitividade necessária nos tempos atuais”.

Em suma, precisamos construir instituições republicanas sólidas e evitar clãs políticos com discursos puristas e messiânicos, que confundem o público com o privado. Eis uma boa sugestão!

Artigo originalmente publicado pela Gazeta impressa

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