Por Percival Puggina
Preocupou-me o voto do relator, ministro Edson Fachin, em relação ao inquérito instaurado pelo STF para investigar ameaças, manifestações antidemocráticas em relação àquele poder, notícias falsas e o que mais possa parecer perigoso, assustador ou difícil de ser tolerado por suas excelências. O inquérito, já haverá percebido o leitor, é uma sacola de feira, onde laranjas e couves se misturam com uvas e tomates. Está aberto, até mesmo, para investigar contas de campanha eleitoral, ainda que haja um tribunal superior para isso em pleno funcionamento.
Aliás, não se requer muita sensibilidade para perceber, no teor do voto, o esforço do ministro para proclamar o caráter excepcional, quase interdito a reiterações da Portaria e do subsequente inquérito que criou todo esse constrangimento à Corte. Enquanto falava, o ministro ia balizando, ao bom ouvinte e ao bom leitor, todas as manifestas demasias e impertinências da Portaria GP Nº de 14 de março de 2019 e em sua aplicação. Fosse tudo de tão bom fundamento quanto vêm tentando fazer crer os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, que razões teria Edson Fachin para sublinhar, em reunião plenária, a necessidade de um inquérito do STF respeitar súmula vinculante (a de nº 14) editada pelo próprio tribunal sobre o “direito de amplo acesso dos advogados aos elementos de prova (...) que digam respeito ao exercício do direito de defesa”? Pois é.
Que necessidade teria o ministro de, em defesa da liberdade de expressão, propor a supressão do escopo do inquérito de postagens, expressões, manifestações pessoais e compartilhamentos se elementos assim já não estivessem acolhidos no escopo do inquérito em desrespeito àquela liberdade? É um desafio à capacidade de compreensão. Do mesmo modo, por que sublinhar o caráter “atípico” desse tipo de aplicação dos artigos 42 e 43 do Regimento Interno, que “não é nem deve ser usual”? E a grande obviedade comparece ao voto do ministro relator eivada de subjetividade: “Aquele que julga não deve investigar, menos ainda acusar, eis a premissa da isenção, sinônimo de independência. Ao fazê-lo, como permite a norma regimental, esse exercício infrequente e anômalo submete-se a um elevado grau de justificação e a condições de possibilidade sem as quais não se sustenta”. Subjetividade pura! Será que isso descreve a situação da poderosa vítima que investiga e julga suposto réu?
É bom lembrar o que está prescrito com todas as letras no art. 43 sobre essa exótica atribuição conferida ao presidente do STF: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”. Como pode essa jurisdição extravasar a sede ou dependência do Tribunal, sair ao ar livre, atravessar a praça, cruzar os céus da pátria e investigar crime praticado por suspeito morador nos confins do território nacional, sem sair das dependências do STF? Onde foram parar o “juízo natural” e o “fruto da árvore envenenada”?
Cada vez que leio os dois artigos do Regimento Interno do STF que respaldam o inquérito (ademais sigiloso!) presidido por Alexandre de Moraes, mais se consolida em mim a percepção de que foram pensados e redigidos como forma de dar tratamento especial a crimes eventualmente cometidos no espaço físico do tribunal, criando ali um mundo à parte. É algo tão singular em relação aos nossos costumes que o ministro relator, se empenhou em promover uma espécie de lockdown do inquérito instaurado pela Portaria GP 69. É para seguir funcionando, mas não deve contaminar as práticas forenses, seja no STF, seja noutros tribunais. Não sirva ele de exemplo.
Vamos ver como votam os pares, mas fiquei com a sensação de que o ministro prestava uma sequência de socorros: um de natureza corporativa, de apoio à própria corte já enrolada nas demasias do inquérito em curso; outro de socorro aos investigados, estabelecendo limites e contenções, fechando portas e janelas para que algo assim nunca mais volte a acontecer.
Por fim, participo da mesma preocupação expressa em artigo que li recentemente: o STF faz o que sua maioria quer. Sempre dá um jeito de impor esse querer, seja mediante uma “interpretação conforme”, seja alegando uma “omissão do parlamento” que não fez a lei necessária, ou ao gosto da Corte, seja mediante “modulação” de decisão extravagante, seja por alegada “inação das autoridades competentes”. Enquanto o STF vislumbra assombrações do passado em certas mobilizações de rua, seu modo de agir fica, por vezes, muito parecido com o preocupante vulto de uma ditadura do judiciário. Ao exibir-se à nação repartindo espaços de protagonismo no noticiário político, o Supremo, querendo ou não, convoca a cidadania a opinar sobre o que discute, decide e faz.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS