Durante décadas, milhões de brasileiros se sentaram diante da TV para assistir às novelas da Globo. "Roque Santeiro", "Que Rei Sou Eu?", "Vale Tudo", "Tieta", "O Rei do Gado". Esses são títulos de clássicos da teledramaturgia que dominaram a audiência e, assim, influenciaram os costumes, o vocabulário e até a forma como o brasileiro se vê e vê o país. Mas e se as novelas não forem apenas entretenimento de qualidade questionável? E se essas novelas, direta ou indiretamente, tiverem moldado o nosso modo de pensar a política, a justiça, a religião, o trabalho e a moralidade?
É essa provocação que norteia o "Última Análise" desta sexta (20). Numa conversa bem-humorada, mas nada superficial, Francisco Escorsim e Paulo Polzonoff Jr. dão uma de noveleiros e analisam como a teledramaturgia, especialmente da década de ouro das novelas (os anos 1980 e 1990) ajudou a formar o imaginário coletivo de toda uma geração.
Você pode até odiar as novelas...
Você pode até odiar as novelas. Mas não dá para negar: você conviveu com quem assistia e foi, de algum modo, moldado por elas. E é aí que a coisa ganha uma dimensão política: porque a geração "doutrinada" pela ficção popular de Janete Clair, Dias Gomes, Aguinaldo Silva, Glória Perez & Cia é justamente a que hoje ocupa os altos postos no funcionalismo público, nas redações, nas ONGs, no Judiciário, no marketing e na política.
Mas será que tudo foi parte de um projeto ideológico? O vídeo evita o conspiracionismo fácil, mas não descarta que o conteúdo dessas novelas refletisse, e talvez reforçasse, valores atrelados a uma ideologia bem específica. A corrupção, por exemplo, era sempre dos ricos. Os empresários eram sempre vilões. E a religião, quando aparecia, era para ser questionada, ironizada ou substituída por um sincretismo esotérico.
Nuances e sutilezas
No "Última Análise", Escorsim e Polzonoff lembram como as novelas criaram heróis de classe média baixa, vilões de elite e mocinhas sofridas sempre em busca de ascensão social. Tudo isso embalado em histórias envolventes, mas que, vistas em retrospecto, parecem alinhadas a uma determinada visão de mundo — uma visão que hoje se reflete nas decisões políticas, nos comportamentos coletivos e até na forma como enxergamos justiça e moralidade.
Outro ponto que vale menção é o vínculo emocional criado entre o espectador e os personagens. Não era raro ver as pessoas se referindo a eles como se fossem reais, comentando suas decisões como se fossem vizinhos ou parentes. Essa imersão não apenas alimentava o escapismo, mas também naturalizava certos comportamentos e ideias. Além de transformar o semelhante de carne e osso, da vida real, num ser unidimensional, retilíneo e pouco afeito às nuances e sutilezas próprias do ser humano.
Narrativa simples, barata e maniqueísta
O que torna essa análise das telenovelas especialmente relevante hoje é o fato de que estamos colhendo os frutos de uma geração inteira educada por esse tipo de narrativa simples, barata e maniqueísta. E, num momento em que o país parece cada vez mais dividido entre narrativas políticas reduzidas ao conflito entre vilões e heróis absolutos, talvez seja o caso de perguntar: será que aprendemos a ver o Brasil como uma novela?
Seja você fã ou crítico das novelas, o "Última Análise" é um convite à reflexão sobre como a cultura popular não apenas nos distrai, mas também nos forma ou, se você preferir, nos doutrina.