História viva
Takayuki Shibuya é um dos seis sobreviventes que vivem em Curitiba
São Paulo é o estado brasileiro que abriga mais sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagasaki. São 115. No Paraná, o número é bem menor: cerca de 10 hibakushas como são chamados os sobreviventes da bomba. Seis deles moram em Curitiba e entre eles está Takayuki Shibuya (foto), 81 anos. Ele morava em Hiroshima quando a bomba caiu e trabalhava com a fabricação de armas na empresa Mitsubishi.
A jornada começava às 8h30, mas, como tinha de chegar meia hora antes, quando a bomba caiu, às 8h15, ele brincava no pátio. "Ouvi uma explosão e em seguida muitas faíscas azuis. Depois foi um clarão." Nesse dia não teve trabalho. Shibuya voltou para casa (morava com as irmãs e a avó) e encontrou a residência tombada. A avó juntava os cacos de vidro que haviam sido estilhaçados e só se salvou porque estava no corredor da casa no momento da explosão. "Acho que ela ficou fora de si. Ela juntava os vidros, mas eles não teriam a menor utilidade depois."
Acesso
Ele tentou entrar na cidade para ver como estava a empresa da família, mas só conseguiu chegar lá três dias depois. Os bondes caídos e a fiação elétrica complicavam o acesso. "Encontrei pessoas muito queimadas, sem cabelo. O cheiro era horrível e elas me pediam água. Não sei se era melhor dar a água contaminada para elas morrerem de uma vez ou não. Era muita dor."
A firma da família virou pó, assim como os tios de Shibuya que trabalhavam lá. Ele também perdeu dois primos. "Eu não toquei em nada e consegui me salvar. Mas um exame logo depois mostrou que meus glóbulos brancos haviam caído de 10 mil para 2 mil. Até hoje, quando um pernilongo me pica, fico com um hematoma na pele", conta.
As bombas
Às 8h15 de 6 de agosto de 1945, os norte-americanos soltaram sobre Hiroshima a bomba Little Boy. Três dias depois, às 11h02 de 9 de agosto, a bomba Fat Man caiu sobre Nagasaki. Quem estava a menos de um quilômetro do epicentro morreu carbonizado ou teve os órgãos vitais cozidos. A radiação fez com que muitas pessoas morressem depois, principalmente de câncer.
Há mais de meio século, o município de Frei Rogério, no interior catarinense, tem sido o refúgio de três sobreviventes da bomba atômica de Nagasaki, uma das cidades japonesas destruídas em 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. O pequeno número foi reduzido ainda mais na última terça-feira com a morte de Kazumi Ogawa, 83 anos. Pouco antes de dormir, o hibakusha como os sobreviventes do episódio histórico são conhecidos não resistiu a uma parada cardíaca.
Quatro dias antes, seu Kazumi havia dado uma entrevista para o pessoal do Paraná, como dizia ele. Sentado diante de uma mesa com uma pilha de cartolinas brancas, ele dobrava papel por papel até obter a forma de uma ave. "É tsuru", disse sorrindo, o pássaro (ou garça) que significa paz. A meta era fazer 10 mil dobraduras semelhantes para compor uma cortina no Museu da Paz, que ele fundou em 2002 na cidade catarinense. Além do museu, é lá em Frei Rogério que ficará o maior tesouro de Kazumi: um tsuru gigante de concreto, edificado no alto de um morro e que pode ser visto de longe.
VÍDEO: Sobreviventes contam suas histórias
FOTOS: Veja mais imagens dos sobreviventes
Todas as manhãs, bem cedo, antes de começar os trabalhos de guia no museu, ele subia as escadas que dão acesso ao pássaro e lá fazia suas orações. Queria paz. A obstinação de Kazumi por um mundo sem guerras tem um motivo. Como ele mesmo dizia, no dia 9 de agosto de 1945, ele esteve no inferno. Ele viu o fogo, sentiu o calor, inalou o cheiro de pele humana queimada. Estava a oito quilômetros de onde a bomba atômica de Nagasaki caiu. Viu se formar no ar uma nuvem em formato de cogumelo. "Todo mundo fala de inferno, mas naquele dia eu vi com meus próprios olhos o que era isso."
Aos 16 anos, Kazumi se salvou por intuição da mãe. Assim como todos os jovens, ele deveria ter ido trabalhar em uma fábrica que foi atingida pela bomba. Lá, eles moldavam metais usados na construção de armamento e transporte do Exército japonês. A mãe achava que aquele dia estava mais perigoso porque havia muitos aviões passando pela cidade e algumas bombas já tinham caído. Ela pediu para ele ficar em casa. "Acabei me atrasando, contudo, fui. Precisava pegar um barco, mas perdi. Como éramos castigados pela falta no trabalho, comecei a ir para lá a pé."
No meio do caminho, Kazumi encontrou um amigo e, como estavam atrasados, decidiram ficar por ali. Com a marmita nas mãos, subiram até um morro para comer. Foi de lá que avistaram, às 11h02, a bomba explodir em cima da cidade onde moravam. Estavam longe do epicentro, por isso não se feriram. "Fui até a cidade para ver o que era essa bomba, diferente das outras." Se deparou com a destruição.
"As pessoas que estavam vivas e com o corpo queimado tinham muita sede e pediam água para beber. Quando tomavam, segundos depois morriam. Estava tudo contaminado pela radiação", contou. Kazumi também teve muita sede, mas aguentou firme. Apesar de não saber que a bomba tinha radiação (soube disso meses depois), evitou o contato com a água. Passou por centenas de corpos mutilados e queimados. Teve medo e voltou para casa. Encontrou a mãe e as irmãs em pânico procurando por ele. Os vidros da casa estavam estilhaçados.
Consequências
Kazumi foi um sobrevivente de Nagasaki. Apesar de não ter sido atingido diretamente, foi prejudicado pela radiação. Foi esse contato com o epicentro que lhe rendeu o status de sobrevivente. Ele foi internado três vezes porque vomitava sangue. Viu a morte em todas elas, mas aguentou firme.
Ainda no tempo em que tinha ódio de tudo o que viu, resolveu conhecer seu maior inimigo, os Estados Unidos. Em 1957, mudou para lá para estudar e entender porque os norte-americanos decidiram bombardear a cidade em que vivia. Percebeu que nem os americanos sabiam o que efetivamente havia ocorrido. Acabou transformando o ódio em pedidos de paz.
Ele não gostava de falar dos detalhes do atentado. Tudo o que narrou, em japonês, aos ouvidos ocidentais parecia ser no mesmo tom. Não havia alteração de voz ou mudança de expressão em seu rosto. Kazumi decidiu vir ao Brasil, em 1961, para plantar maçãs e peras e acabou no interior de Santa Catarina por causa do clima adequado. Ali, com outras 30 famílias japonesas, aprendeu a falar pouco o português e manteve os costumes orientais do tempo em que viveu em Nagasaki.
Seu último pedido antes de se despedir da equipe de reportagem foi que aceitássemos como presente uma garça branca e levássemos conosco a paz. Infelizmente, a cortina de 10 mil tsurus vai ficar pela metade.
Os últimos hibakushas de Santa Catarina
Os mesmos galhos das pereiras plantadas no quintal da casa de Wataru Ogawa são os que lhe sustentam o corpo. O senhor de 83 anos tem dificuldades para caminhar e prefere os galhos às bengalas para andar entre as árvores enquanto faz as podas e retira as flores para ajudar na polinização. É nesse cenário do interior de Santa Catarina, em Frei Rogério, que vivem o cunhado e a irmã de Kazumi Ogawa. Eles são os últimos sobreviventes da bomba atômica que restaram no estado catarinense.
A irmã de Kazumi, Chiyo Ogawa, 81 anos, está bastante doente e não quis falar sobre o que viu em Nagasaki. O filho Naoki narrou o que a mãe um dia já lhe contou. Ela estava em casa quando a bomba caiu e os vidros da residência se estilhaçaram. Junto com outros irmãos, ela saiu à procura de Kazumi. "Não vale a pena falar disso", diz Chiyo enquanto caminha de um lado para o outro da casa cantando uma música japonesa.
Soldado
Já Wataru não se importa em contar os fatos, mesmo que timidamente. Em 6 de agosto de 1945 ele era soldado reservista e estava em treinamento próximo a Hiroshima quando a bomba caiu. Não viu ou ouvia nada, mas lembra que estava em um navio e que, de repente, corpos de pessoas queimadas e estraçalhadas começaram a passar flutuando.
Ele voltou à base de treinamento e descobriu que se tratava de uma bomba atômica. Ficou mais alguns dias no quartel, quando soube em 15 de agosto de 1945 que o Japão havia se rendido e a guerra acabado. Ele voltou para Nagasaki. "A cidade estava destruída e deserta. Ainda havia fumaça saindo de alguns lugares, mas, à medida que me afastava, encontrava algumas casas." A sede tomava conta dele até que encontrou uma pessoa comercializando água. "Nem me lembro quanto paguei."
Dois anos depois do ataque, Wataru perdeu o tio para as sequelas da radiação. Além do parente, diversos amigos morreram. Apesar da destruição, ele ajudou a reconstruir Nagasaki e ali viveu por mais uma década e alguns anos até casar com Chiyo, que era sua vizinha. O casamento se deu em uma cidade ainda em meio a escombros. Veio ao Brasil com Kazumi e a esposa em 1961.
Questionado se em algum momento teve medo, Wataru resume: "Fui soldado japonês, ensinado a ser um homem suicida se precisasse dar a vida pelo meu país. Era um orgulho estar no Exército, apesar de saber que tinha entrado lá para morrer".
Wataru defende o uso da energia sustentável, retirada da força da natureza, e se posiciona contra a energia nuclear. Ele faz questão de lembrar que no dia da maior desgraça da cidade japonesa, em um 9 de agosto, recebeu um presente divino: nasceu o neto Artur Hirakazu. Nome que, em japonês, também significa paz.
Tradução das entrevistas: Naoki Ogawa
Sobreviventes de Nagasaki contam suas histórias
Kazumi e Wataru relembraram os momentos que antecederam a explosão que destruiu a cidade japonesa em 1945. Kazumi foi salvo por um pressentimento da mãe.
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