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"Estou dividido. O progresso da Fanny vai empurrar parte do povo para longe daqui." Ademir Stocco, empresário da Vila Fanny | Antonio More/ Gazeta do Povo
"Estou dividido. O progresso da Fanny vai empurrar parte do povo para longe daqui." Ademir Stocco, empresário da Vila Fanny| Foto: Antonio More/ Gazeta do Povo

Mulheres da vila

Desafio da prefeitura é encontrar uma identidade para o bairro Fanny. Uma das estratégias é ressuscitar a Guilhermina.

Origem

A área lindeira à hoje Linha Verde se originou na década de 1950, em meio a uma leva de loteamentos para operários. O plano diretor de 1966 mostra que a região era pouco habitada, por uma questão prática: boa parte se mostrava imprópria para construções. Os mapas antigos do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) apontam, além de Fanny e Guilhermina, as "plantas" Maria Bettega, Cantelli, Kwasinski, Campo Bello e Lindoia. Nem todas originaram bairros.

Nora e sogra

A Fanny e a Guilhermina que dão nome ao bairro e à vila eram respectivamente nora e sogra. Ambas vieram da aristocracia paranaense. Fanny (1897-1965) era filha de Max Schrappe, dono da Impressora Paranaense, e se casou com Arthur Hauer, filho de Roberto Hauer, dono de uma grande gleba de terra nas rebarbas da fazenda Boqueirão, também de sua família. A matriarca dessa linhagem dos Hauer era Guilhermina. Segundo a filha de Fanny, Lola do Espírito Santo, 77 anos, Guilhermina, que morreu em 1944, deu nome a vila numa homenagem póstuma. Já Fanny gozou dos louros em vida, embora morasse na Vila Hauer. "Era seu orgulho."

Reabilitação

O Setor de Informações do Ippuc prepara há três anos um projeto de reabilitação das vilas de Curitiba. O coordenador do programa, o economista Lourival Peyerl, 54, e sua equipe, chegaram a identificar 4,8 mil vilas. "Nem todas são lembradas pela população", explica. Não é o caso da pequena Guilhermina, com não mais de dez quadras. Raro alguém saber que ela mal está no mapa. O projeto não está pronto, mas a ideia é devolver Guilhermina à vida – sogra e nora, sem desavenças. (JCF)

  • Werner Grubhofer, um dos personagens da matéria da Gazeta: do Jardim das Américas para o sossego da vila.
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Nos idos da década de 1950, as vilas Fanny e Guilhermina – na Zona Sul de Curitiba – eram sinônimo de "jardineiras" atrasadas, falta de calçamento e postes de luz, alguma violência e de tudo mais. Mas nada que as distinguisse de suas vizinhas de muro: Novo Mundo, Portão, Lindoia, Parolin e Guaíra. Juntas, essas zonas todas formavam o conjunto conhecido como "as vilas", nas quais moravam o operariado da capital – então uma cidadezinha de 180 mil habitantes. O poder público, como mostram os jornais da época, não costumava bater ponto naqueles capões.

O tempo e o crescimento po­­­pulacional de até 8% ao ano se encarregaram de mudar parte desse cenário. Basta lembrar que há muito o Guaíra deixou de ser identificado pela favela do Valetão. E que o Portão, além de o décimo mais populoso de Curi­­­tiba, encabeça a maior regional da cidade, somando 232 mil habitantes, o equivalente ao município de Cascavel.

Em miúdos, se o cenário por aquelas bandas hoje pouco lembra a "era das vilas" lamacentas e descalças, para dois entraves da região o relógio custou a andar. Bem que se tentou, mas em vão. Nos anos 2000, a prefeitura promoveu a Fanny a bairro, deletou a Guilhermina do mapa, mas nem assim. A região permaneceu a mesma, o que servia de amparo para os nostálgicos. Circular pelas beiras do Córrego Henry Ford – limite geográfico da região – equivalia a reencontrar algo parecido com a Água Verde de outrora.

Equivalia. Uma série de intervenções acabou por tirar a Fanny do esquecimento, candidatando-a a uma estranha categoria: a de mais novo bairro velho da capital. Foi tudo muito rápido. Para os moradores consultados pela reportagem na última se­­­mana, a invasão da "vila", como seus 11 mil habitantes ainda dizem, se deu em 2006, quando a Avenida Brasília virou mão única. Num passe de mágica, a Rua Maestro Francisco Anto­­­nello, principal via da vila, saiu do anonimato. Além de larga, tem estacionamento fácil e, arrisca, concentra 50% dos 1.187 estabelecimentos do bairro.

Para os urbanistas, contudo, a redescoberta da Fanny – e, por tabela, da Guilhermina, vi­­­víssima no imaginário local – tem outros responsáveis. A di­­­zer: a implantação do Shop­­ping Palladium em plena zona vileira; a transformação da desengonçada Avenida Santa Bernadethe num binário; e a Linha Verde. Por fim, conta a favor a desfavelização do Pa­­rolin, iniciada em 2006. A boca pequena, o isolamento e a fama violenta do Fanny era atribuída à proximidade com os becos da favela.

O próximo capítulo será o povoamento da Linha Verde. O bairro tem apenas dois quilômetros quadrados e figura entre os 15 menores da capital. Seu zoneamento ZR3 só permite dois pavimentos, fadando-o a ser uma "vila dormitório", como se pode ver em andanças por lá. Tirando a gurizada nos dois campinhos de pelada, parece não haver viva alma por perto. Mas com a Linha será possível ter prédios de até 16 andares nas divisas.

O comerciante Ademir Stocco, 56 anos, mal pode imaginar. Criado na redondeza, ele faz narrativas idílicas sobre riozinhos, matas e estradas de chão da Planta Kwazinski – uma das vilas que formaram a região. "Eu nasci às margens da BR-116, que o pessoal chamava de Estratégica. Éramos uma vila operária", lembra, diante da fila em sua padaria, quase virando a esquina.

Stocco vende entre 3 mil e 5 mil pães por dia, mas confessa que demorou a acreditar que a Fanny ia ficar parelha aos outros bairros da região. Confessa-se dividido com o que vê. Ele percebe que tanta mudança vai empurrar os mais pobres dali. "Tem muito terreno à venda. Os lotes são enormes. Onde havia uma casinha de madeira nascem três sobradinhos de classe média."

A mudança de perfil pode ser contabilizada na ponta do lápis. Nos últimos dois anos, cerca de 2 mil pedidos de alvarás passaram pela prefeitura. É inegável que vocação de pátio de borracharia da Fanny permanece em alta: foram 105 pedidos ligados ao transporte de carga, herança da antiga BR. Mas cresce o setor de gastronomia, com 55 pedidos. E o de beleza: nada menos do que 130 microempresários notificaram que vão abrir salões por ali. "A Fanny ainda carece de identidade. Falar dela é lembrar do time famoso. Mas, de resto, a vemos como uma extensão do Novo Mundo. Precisamos descobrir que cara ela vai ter daqui em diante", diz o economista Lou­­rival Peyerl, do Ippuc, que coordena projeto de memória das vilas (leia ao lado).

Não há dados à mão, mas tudo indica que o próprio morador da Fanny esteja se somando aos investidores e abrindo uma portinha. A comerciante Mari­­nete Neri dos Santos, 44, viveu fora do bairro e voltou há dois anos. No embalo, comprou uma banca de revistas num dos me­­lhores sítios históricos da redondeza: o ponto de ônibus da Linha Guilhermina, um dia, ponto final. "Tem mais carros passando, mas os hábitos são os mesmos de sempre. Fanny não é um lugar de jovens. Acho que vai tempo até mudar."

As estatísticas desmentem a impressão da comerciante – de acordo com o último censo, 26,7% dos moradores da Fanny estão na faixa jovem, entre 15 e 29 anos; e 25,8% na faixa adultos de até 44 anos. Daí em diante, a porcentagem só diminui. Mas os números não dizem o essencial: a população tem escolaridade abaixo de 11 anos de estudo e ainda se nutre do parentesco e da tradição, o que lhe dá um ar retrô. Experimente perguntar pela dona Alice Link ou por Cecília Savicki, para falar de duas veteranas, ambas moradoras da Rua José Ferreira Bar­­ros. O círculo dos mais ve­­­lhos ainda é referência local. Faz a diferença.

Bom seria se a nova Fanny – que chega sem pedir licença – buscasse a bênção de Fanny, a velha. Há indícios de sobra de que a aura decadente do bairro seja justamente o seu charme. Foi atraído por isso que o aposentado Werner Grubhofer, de 69 anos, deixou o Jardim das Américas e se mudou para um tipo de condomínio fechado que só existe naqueles cafundós. Trata-se de uma vilinha de casas de madeira, dessas que os donos de fábricas construíam para seus funcionários morarem perto da lida.

"O progresso é inevitável, mas prédio de 16 andares eu sou contra", opina o homem que curte o sossego vileiro pintando quadros à moda Jackson Pollock, vendo filmes de arte e ouvindo o latido dos guapecas, abundantes por lá. "Gosto daqui. É um achado." Werner não está só. A dona de casa Rosimeire Zanelatto de Oliveira, 42, natural de Nova Aurora, no Sudoeste, batia o pé que jamais moraria em Curitiba. "Me disseram que eu ia viver aqui dez anos e nunca conheceria um vizinho. Pois era mentira. A Fanny é igual a minha cidade", festeja. Dá para imaginar o que ela deseja de verdade para aquele cantinho que até parece de mentira.

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