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 | Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
| Foto: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

Portal de entrada

"Quando eu cheguei aqui tinha um topete que nem o seu", brinca o líder comunitário José Cordeiro, da Vila das Torres, ao reencontrar o cabeludo Luciano Coelho. Falam como velhos amigos, perguntando-se "onde andará fulano?". O projeto Minha vila filmo eu – desenvolvido de 2005 a 2011 – é com folga um sinônimo do Olho Vivo. Luciano não esconde o impacto que a Vila das Torres teve em sua vida, como se aquele pedaço de Curitiba fosse seu portal de entrada para todos os outros.

Curitiba, a negra

Se pedirem a Luciano Coelho para destacar um de seus trabalhos, ele vai fazer uma pausa. E responder Preto no branco – negros em Curitiba, documentário coordenado com Marcelo Munhoz, em 2004. Mês passado, Luciano levou a reportagem até a Rua Cidade Modelo, no Sítio Cercado, onde mora o bombeiro aposentado Otacílio Sebastião e sua mulher Idalina. As histórias de racismo que contaram na ocasião das filmagens são cortantes e confirmam, sem meios tons, o que se diz baixinho sobre os preconceitos que se escondem na Curitiba branca e europeia. Receberam Coelho com alegria – "essa casa é sua", disseram. Preto no branco é um capítulo da história dos Sebastião.

Depoimentos

"Luciano Coelho tornou o cinema possível para pessoas de estratos da sociedade que estavam muito distantes dessa linguagem. Me chama atenção a maneira como ele trabalha com a população – não é panfletária nem paternalista. Ele provoca solidariedade entre as pessoas. É enriquecedor."

Fernando Severo, cineasta, professor da FAP e diretor do MIS.

"Sou suspeito [risos]. Assisto a tudo o que ele faz. É um cara preocupado com as pessoas, com os espaços da cidade. Quer registrar o cotidiano. Acho que aprendeu isso em casa. Somos gente simples, sem frescuras. O olhar dele sobre os pobres não é pesado, é humano. Resulta da preocupação dele com os outros."

Manoel Coelho, arquiteto, pai de Luciano.

"Sou de São Paulo e conheci o Luciano num evento. Fiquei interessado no Minha vila filmo eu e vim para cá. Já imaginava o ‘lado B’ de Curitiba. E não acredito que o cinema possa transformar sozinho uma realidade. É um processo. Me impressionou saber que ele trabalhava com a comunidade. Ele não vai lá para provocar compaixão."

Bruno Freddy Mancuso, cineasta.

  • Luciano Coelho na Rua Cidade Modelo, no Sítio Cercado, onde filmou parte do documentário Preto no Branco
  • Luciano Coelho novamente na Rua Cidade Modelo, no Sítio Cercado
  • Luciano Coelho com seu Otacílio e dona Idalina, da família de negros que expôs, em documentário, as mazelas do racismo em Curitiba
  • O cineasta Luciano Coelho na ponte do Rio Belém, na Vila das Torres: trabalho na comunidade foi iniciado em 2005 com o nome Minha vila filmo eu
  • O cineasta Luciano Coelho na Vila das Torres: comunidade lhe serviu de passaporte para a Curitiba das margens dos rios e das linhas de trem
  • O comerciante e líder comunitário José Cordeiro e Luciano Coelho conversam sobre as oficinas feitas na Vila das Torres

No início de 2013, o morador do município de Matinhos Ben-Hur Martins, 15 anos, vai lançar no YouTube a primeira edição do programa de variedades Conexão Teen. Tem se preparado para esse dia com a gana de um expedicionário – juntou as economias para comprar equipamento, treinou uma pequena equipe e contou com as benesses da experiência. Sim, experiência: Ben-Hur tem três filmes no currículo, realizados no período em que viveu na Vila das Torres, uma das mais antigas zonas favelizadas de Curitiba.

FOTOS: Veja fotos de Luciano Coelho

O cinema surgiu para o adolescente quando ele tinha meros 8 anos, ao saber que "havia uma turma fazendo filme no bairro". Aquilo lhe pareceu uma invasão extraterrestre. Desembestou para ver o que era. E viu. Num estalo, virou astro mirim da oficina de cinema para crianças Minha vila filmo eu (2005) e estrelou o curta O cavalo, de 6 minutos. O filme conta o drama de um pequeno catador de papel que vê seu animal ser roubado. Detalhe: o roteiro partiu de um episódio narrado pelo próprio guri à equipe de filmagem.

"O Luciano me pediu para contar uma história verdadeira, mas preferi usar a minha imaginação", confidencia, sem saber até hoje se o cineasta se deu conta da mentirinha contada por aquele Ben-Hur franzino, vindo não das margens do Rio Jordão, mas do Rio Belém. E que jamais tinha ouvido falar de Charlton Heston.

Ao lembrar do ocorrido, Luciano Coelho, 41 anos, se diverte. Sabia das ficções de Ben-Hur e por isso mesmo gosta de contar esse episódio, dentre tantos vividos em quase dez anos de circulação pela periferia de Curitiba, câmera na mão, provocando as pessoas a se tornarem narradoras de suas vidas. Ouviu os pobres, os negros, as minorias sexuais, culturais e religiosas. Documentou a transexual Maitê Schneider e o lixão de Paranaguá; o seu João do Parolin e os anônimos das escolas de samba. "Foi terapêutico não olhar só para o próprio umbigo", resume.

Ao todo, foram 20 filmes, cerca de 450 oficineiros e, como não dizer, um sem número de participantes que tiveram suas trajetórias modificadas pela presença de Coelho e de seu parceiro na lida – o jornalista, ator e cineasta Marcelo Munhoz. "Para mim, depois do cinema mudou tudo", resume Ben-Hur.

Olhos abertos

Em 2012, Marcelo e Luciano decidiram dar por encerrada a fase de oficinas do Olho Vivo, nome oficial do misto de estúdio, escola e oficina de documentarismo que criaram juntos em 2003. Querem desenvolver carreiras solo. Na prática, contudo, é como se ainda desembarcassem de van em alguma rua poeirenta para desvendar realidades escondidas. Explicação? O ciclo de imersões em grupos marginais acabou, é verdade, mas o Olho Vivo continua vivinho da silva na cabeça das pessoas que o conheceram, sempre prontas para sugerir esse ou aquele lugar para ser filmado.

Há quem já tenha começado a explicar a teimosia do Olho Vivo. O cientista social Luís Lima produziu pesquisa recente na UFPR sobre a trajetória da trupe. Foi um passo acadêmico. Mas não faltam palpites, em especial a respeito de Coelho, cuja escolha inesperada por filmar os espaços mais pobres da cidade teria feito dele uma espécie de herói romântico dos pinheirais. Luciano não esquece histórias como a de Ben-Hur. E centenas de pessoas não esquecem a história do cineasta.

Luciano é o filho mais velho do arquiteto e designer Manoel Coelho, 70 anos, um dos profissionais que integraram a equipe do urbanista Jaime Lerner. Sobre a trupe do "Coelho pai" pesa ter virado a cidade canelas para o ar, projetando-a mundo afora como "Cidade Modelo". Sobre a trupe do "Coelho filho", num movimento inverso, pesa ter botado os pés nos endereços onde Curitiba não é propriamente uma proeza urbanística, escancarando o lado B da capital.

"Quase não falamos sobre esse assunto. Não há conflito explícito", diz o tímido e elegante Luciano, defensor da tese de que Curitiba é mal resolvida. "Temos opiniões opostas. Mas sou um grande admirador do trabalho dele. Lá em casa corre um atrito aconchegante", comenta o solar Manoel, entusiasta da capital paranaense.

A contar pelas falas dos dois Coelhos, Luciano estava programado para continuar a linhagem do pai. Estudou Arquitetura e Urbanismo na UFPR e chegou a trabalhar no escritório da família. Menos de um ano. Saiu do batente para embarcar rumo à Escola de Cinema de Santo Antonio de Los Baños, em Cuba, na qual se formou e de onde trouxe filmes que entusiasmaram, vejam só, seu pai. Manoel descreve em minúcias o filme do filho que mostra os malabarismos cubanos para captar imagens de tevê. "Sempre fui de esquerda. Ele foi criado nesse ambiente."

Por ironia, Luciano voltou de Cuba para fazer cinema autoral, como torcia Manoel. E o faz, filmando O fim do ciúme (2002), baseado em Proust, com o ator Marcelo Munhoz, com quem assinaria seu novo passaporte – o de cineasta da linha do trem e das mais de 200 favelas da cidade. O Olho Vivo estava a caminho. "O princípio era simples – a maior parte de Curitiba não estava representada no discurso da cidade. A gente filmava o discurso do outro", resume o cineasta.

Kaspar?

O caso de Luciano com a periferia tem a ver com a ida a Cuba. Mas seu caso com o cinema está em outra era geo­lógica. Tudo teria começado com seu padrinho de batismo, o cineasta catarinense Sylvio Back. Ainda que as relações entre os dois não passem de protocolares, houve ali uma faúlha, transformada em fogo no dia que uma funcionária dos Coelho fez cair nas mãos do guri um filme inadequado para quem ainda brincava de "queimada" nas ruas do Juvevê: O Enigma Kaspar Hauser, de Werner Herzog.

Dado à introspecção, Luciano pode ter se espelhado na história do rapaz criado num porão. Ele não confirma. Mas bem lembra que depois de Herzog vieram Tarkovsky, Bergman e Woody Allen às pencas. Ao voltar de Cuba, é verdade, pensava dialogar com a tradição do cinema de arte – mas quis o destino que se visse sentado em botecos de arrabaldes, entrasse em barracos que balançam mas não caem e ouvisse histórias fictícias absolutamente reais como a de piás feito Ben-Hur. "Sou professor de Cinema e sinto como é pequeno o mundo de muitos cineastas. O Luciano escapou dessa cilada. É um humanista. Quer dar voz ao homem comum", arrisca o cineasta Fernando Severo, diretor do Museu da Imagem e do Som.

Depois de tantas milhagens acumuladas na periferia, o "rapaz do Olho Vivo" já circula em outras fronteiras. Anda ouvindo milongas e bebendo na "estética do frio", uma espécie de manifesto sulista feito pelo gaúcho Vitor Ramil. E às falas com os músicos uruguaios Daniel e Jorge Drexler [Jorge levou o Oscar pela canção original de Diários da motocicleta, de Walter Salles Júnior]. São personagens do seu próximo documentário – A linha fria do horizonte. Depois de ter viajado por tantas Curitibas, está licenciado para outras paisagens.

Confira fotos de Luciano Coelho em Curitiba

VIDA E CIDADANIA | 3:00

Confira trecho do documentário A linha fria do horizonte, em produção.

VIDA E CIDADANIA | 2:35

Projeto iniciado em 2005 levou crianças da periferia a registrarem seu cotidiano.

VIDA E CIDADANIA | 2:42

Projeto Olho Vivo, de Luciano Coelho e Marcelo Munhoz, mostrou bastidores do "Pequeno Príncipe"

VIDA E CIDADANIA | 14:46

Documentário registrou com crueza e lirismo a vida dos negros na periferia de Curitiba.

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