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Certa vez um menino de rua mirou fixo nos olhos do advogado Luís Carlos de Araújo e mandou ver na pergunta: "tio, por que tem dia e tem noite?". Esse homem viajado, que já foi do paradisíaco Taj Mahal ao inferno dos párias hindus, dos canais de Veneza às geleiras russas, tinha pela frente sua mais nobre missão – não a de tirar a dúvida do garoto, essa qualquer guia de curiosos poderia fazê-lo. Coração mole, Luís Carlos não podia fraquejar na frente do menino. Sentou-se ao seu lado no meio-fio, tomou sua cabeça junto ao peito e, como faria com o próprio filho, deu-lhe um pouco de atenção. Vencida a desconfiança, levou-o das ruas para um lugar quente e seguro.

Essa é a rotina de Luís Carlos e de outros sete educadores do programa Resgate Social, da prefeitura de Curitiba. Eles têm de se antecipar ao tráfico, que busca nas ruas e escolas sua mão-de-obra. Moradores de rua são o público desses grupos antagônicos. De um lado, uma força centrípeta arrastando-os para o abismo; de outro, uma força centrífuga puxando-os para bem longe. Ninguém sabe ao certo quantos estão em cada lado desse cabo de guerra, mas as estatísticas dão conta dos estragos já causados. A cada ano, mais de 1.700 jovens são fichados pela primeira vez na Delegacia do Adolescente Infrator de Curitiba por envolvimento com o narcotráfico.

Luís Carlos e os colegas de jaleco não desanimam diante da desvantagem numérica. Comemoram cada criança ou adolescente tirado da rua. Muitos, porém, ficam num vaivém entre as ruas e os abrigos. A Fundação de Assistência Social (FAS), braço humanitário da prefeitura, tem cadastrados 275 meninos vivendo nas ruas de Curitiba. Volta e meia surge uma cara nova. A maioria tem vínculo familiar. Por que, então, vão para as ruas? "Saí de casa porque minha família é complicada", disse um deles. "Toda família é complicada", respondeu Luís Carlos. "A única família perfeita é de comercial de margarina". Ganhou o menino pelo riso.

"Eles suportam tudo, menos a indiferença", diz. É como se vivessem a dizer "me dê um tapa, mas não vire o rosto". O problema é que essa massa subjetiva chamada sociedade quase sempre vira o rosto. No tráfico eles se sentem úteis, perceptíveis, pertencentes a um grupo. Os educadores investem seus dias, um após o outro, para provar-lhes o contrário. Criam laços afetivos com esses meninos, percebem suas emoções, estendem-lhe as mãos, tiram suas dúvidas (as mesmas de qualquer outro adolescente). Esse é um trabalho individual, não de atacado. "Não é como empilhar tijolos", compara o sociólogo Francesco Serale.

Diretor do Serviço de Ação Social (um dos quatro órgãos públicos do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Infrator), Serale vê meninos cheios de vontade de mudar, mas saem da instituição muito fragilizados. Voltam a viver nas mesmas condições que os levaram à delinqüência. "A realidade socioeconômica é uma variante a ser considerada, mas não a única", adverte o sociólogo. O problema passa ainda pela falência das principais instituições sociais: a família, a escola e a religião. Muitos jovens preferem a rua ao inferno doméstico de um pai violento e uma mãe negligente. Na gangue passa a ser alguém, uma referência.

A escola, outrora conhecida como "segundo lar", perdeu essa condição faz tempo. Já não tem a resposta para as dúvidas e necessidades dos jovens, não interage com o meio em que ele vive. Está fechada no método antiquado de ensinar a ler e escrever. "Quando um aluno passa a ser visto como ‘problema’, é mais fácil expulsá-lo", diz Serale. A religião, antes uma disseminadora de valores morais e de justiça, agora está às voltas com igrejas mais preocupadas em arrecadar dinheiro e menos com a formação do indivíduo, do trabalho com a família.

O menino que questionou Luís Carlos sobre o dia e a noite é um desses que buscam respostas simples, sem ter onde buscá-las. "O que falta, muitas vezes, é só um pouco de atenção", conclui Luís Carlos. Eles estão à mercê da sorte nas ruas, sujeitos às promessas fáceis do tráfico. Quando enraizados nesse meio, a recuperação é mais difícil. "Mas não impossível", salienta o educador. Nem sempre o trabalho é fácil. Há três semanas ele passou um aperto no Parolin, nas imediações do centro de Curitiba. Foi levar uma menina de rua para ver a avó e quase não saiu vivo dali.

Luís Carlos parou a Kombi do Resgate Social na entrada da favela e seguiu a garota, até perder-se nos labirintos de barracos. "O que o prezado tá fazendo aqui?", repreenderam quatro homens armados que o abordaram com cara de poucos amigos. Não adiantou explicar. "Tem 15 minutos para sair daqui. E já marquei a tua cara." Por sorte, a menina reapareceu e o tirou do embaraço. A sorte dos educadores é que nem sempre essas ameaças ocorrem.

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