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 | Fotos: Hedeson Alves/Gazeta do Povo
| Foto: Fotos: Hedeson Alves/Gazeta do Povo

Pé na jaca

Os argumentos de cada lado

O que diz a turma da Sociedade Barracão:

- 1 – A prefeitura poderia ter comprado o terreno da Sociedade Barracão e resolvido o problema, mantendo os moradores no local onde criaram vínculos.

- 2 – Os moradores lembram que têm direito a morar perto, como qualquer cidadão. Os reassentamentos de­vem ser feitos em áreas em que os car­rinheiros têm acesso à matéria-prima.

O que diz a prefeitura:

- 1 – As áreas úteis para a habitação estão se esgotando e a terra em Curitiba é cara demais. Tornou-se impossível acomodar todas as comunidades em lugares ideais.

- 2 – Moradores de ocupação se acostumam à informalidade e têm dificuldade em entender que é possível estabelecer novos vínculos e organizar a sobrevivência em outras paragens. (JCF)

Tábuas feridas

A história da favela começa em 1997, com venda irregular de lotes no Boqueirão

1997 – Vai à falência a Tecnicom – Máquinas e Peças Industriais, instalada em três lotes na esquina da Rua José Maurício Higgins com O Brasil para Cristo.

1999 – "Nego" e "Sadi", da primeira leva de ocupantes, começam a vender terrenos para carrinheiros.

2004 – Massa falida da Tecnicom pede reintegração do terreno para quitar dívidas com a iniciativa privada, Previdência Social e IPTU. Juíza Carmen Lúcia Azevedo e Mello concede reintegração.

Assistentes sociais da Cohab fazem levantamento da comunidade. Chega-se a ventilar que parte dos moradores poderia ficar no terreno, em sobrados que seriam especial­mente desenhados para a situação.

2005 – Presença de cerca de 60 crianças e adolescentes no local intimida oficial de Justiça na hora do despejo. Cohab e Fundação de Ação Social acompanham o caso.

2006 – ONGs especializadas passam a acompanhar moradores da Sociedade Barracão.

2007 – Defesa da Sociedade Barracão recorre a mecanismos do Estatuto da Cidade para evitar nova ordem de despejo. O desem­bargador Carlos Mansur Arida suspende liminar obtida pela massa falida.

Neste mesmo ano, teto desaba e pequeno incêndio piora condições de habitação. Barracos são remontados à beira do asfalto.

2010 – Prefeitura desiste de comprar o terreno e oferece aos 150 moradores reassentamento no conjunto popular Parque Iguaçu 3, a 25 quilômetros da Sociedade Barracão. Moradores dizem que não vão sair. (JCF)

  • Detalhe da Sociedade barracão, na Rua José Maurício Higgins: incêndio, desabamento e rejeição da vizinhança

Há um mês, cerca de 40 moradores da Sociedade Barracão – nome oficial de uma pequena favela do Boqueirão – entraram num ônibus fretado, acompanhados de funcionários da Companhia de Habitação de Curitiba, a Cohab-CT, e viajaram 25 quilômetros até o Ganchinho, num dos extremos da Zona Sul. Estavam a bordo senhoras com o peso da idade, jovens casais e algumas crianças. Pela janelinha, descobriram o Parque Iguaçu 3, loteamento popular onde serão construídos 83 casas e 560 sobrados, para os quais a comunidade deve ser transferida. Poucos gostaram do que viram.

Esse tipo de tour não é de praxe. Basta pensar que de 2006 para cá a prefeitura já reassentou 2.538 famílias, sem maiores liturgias. Mas sobram motivos para tamanha deferência com essa comunidade pobre entre tantas. A Sociedade Barracão se tornou um símbolo da luta pela moradia na capital. E a depender do que disserem seus condôminos, a temperatura do setor – tão alta quanto a do movimento sem-terra – pode atingir índices insuportáveis. Pelo que tudo indica, é o que está para acontecer.

Com exceção de dois passageiros – os irmãos Rogério Carlos, 21 anos e William de Almeida, 19 –, ambos jovens e sem ligação com o principal ramo de atividade do grupo, a coleta de papel, todos os outros passageiros disseram "não" à Cohab, abalando as negociações iniciadas em 2004. Em terra, a reportagem identificou mais quatro moradores favoráveis ao reassentamento. E só.

As mudanças, contudo, têm a urgência de um teto desabando. O terreno onde os carrinheiros estão beira o estopim da bomba: pertence a uma massa falida e ostenta condições sanitárias dignas do Juízo Final. Para ajudar, conhecida como balcão de ideias sustentáveis, a comunidade tem sido abalada pela criminalidade. Há quem se queixe do cheiro da maconha nos domínios da favela. E quem contabilize oito assassinatos em 11 anos de ocupação.

Apesar do pé-firme, é provável que os moradores mudem de ideia, como adiantaram duas assistentes sociais da Cohab ouvidas pela reportagem. "No começo, é normal não aceitar. Além do mais, eles viram o terreno, não as casas. O Iguaçu não é um bairro ainda. A ideia é ajudá-los a criar uma cooperativa no novo endereço", comenta a assistente Terezinha More. Mas, pelo que tudo indica, a operação Boqueirão-Ganchinho não vai ser nenhuma festa da cumeeira.

Favela de bolso

A Sociedade Barracão foi formada há 11 anos, soma 150 moradores, de 36 famílias, sendo 62 cri­­an­­ças. Ocupa uma categoria úni­­ca entre as 254 ocupações irregulares da capital, onde vivem 207.754 mil pessoas, 54 mil famílias. De tão pequena, é o que se poderia chamar de uma "favela de bolso", ou "favela pocket", classificação que não consta nos anais das companhias de habitação. Mas bem podia.

Como tamanho não é documento, o espaço diminuto – com 1,7 mil metros quadrados divididos em uma esquina – favoreceu a mobilização dos moradores. A fama veio a galope: primeiro com o registro em cartório do nome "sociedade", o que fez toda a diferença; em segundo, acreditem, por uma questão estética.

Até três anos atrás, quando um desabamento seguido de um incêndio abalou a arquitetura do local, os casebres da Sociedade Barracão ficavam uns sobre os outros. A pilhagem era "um número": garantia um pátio no meio, usado para reciclagem, um puxadinho reservado à Igreja do Nazareno e espaço para dois automóveis avariados.

A originalíssima favela acabou chamando a atenção de ONGs como o Cefúria, Terra de Direitos e Despejo Zero, virando tribuna dos movimentos sociais. O interesse era claro: caso se transformasse num lugar de moradia digna, a associação serviria de prova de que é possível abrigar os mais pobres em áreas urbanizadas e em imóveis subutilizados, conforme reza o Estatuto da Cidade, promulgado em 2001.

A publicidade em torno da Bar­­ra­­cão foi tanta que, arrisca, tenha levado muita gente a se abalar até as ruas O Brasil para Cris­­to com José Maurício Higgins, apenas para conferir a favela erguida dentro de uma fábrica abandonada – a Tecnicom Máquinas e Peças Industriais, que quebrou no final da década de 1990, dando início à história da sociedade.

O local não tardou a ganhar inquilinos, atraídos por um desses negociadores inominados do mundo sem-teto: eles arrebanham famílias e lucram uns vinténs em cima da ocupação. Depois somem sem deixar rastro. Aqui é que entra o acaso: a turma reunida por "Nego" e "Sadi" era boa de briga e decidiu que os três lotes do Boqueirão seriam mais do que um trampolim para a casa própria: seria a própria.

Houve quem duvidasse. Tudo concorria para o despejo: a massa falida da Tecnicom foi formada, uma juíza assinou a reintegração de posse e a prefeitura deu início à assistência social, sinal de que o caminhão da mu­­dança estava por perto. Mas nada disso fez com que a turma do Barracão aceitasse a consolação de uma casinha de alvenaria em alguma rebarba de Curitiba.

A postura "daqui ninguém me tira" causa espanto. Até gestores públicos tarimbados se perguntam por que aquela gente insiste em morar espremida, em condições sanitárias lastimáveis e sujeita à rejeição da vizinhança. Afinal, o programa "Minha Casa, Minha Vida" nasceu para salvar a nau dos miseráveis – ergue casas de R$ 28 mil, com carências de mensalidade que podem chegar a dois anos e mensalidades que nunca ultrapassam 20% da renda.

A resposta sai na ponta da língua. A favela não está entre as melhores – mas o outro lado da rua melhora a cada dia. Para os que ainda não se situaram, a Sociedade Barracão fica na margem Sul da Linha Verde, de frente para a Estátua da Liberdade da Havan. Em sua redondeza há duas creches e duas unidades de saúde, além de boas escolas públicas.

Tão bom quanto é a oferta de matéria-prima. Basta dar algumas pernadas até a Avenida Salgado Filho. Em miúdos, a área está a anos-luz dos reassentamentos da Cohab, onde coletar papel, plástico e alumínio é tão difícil quanto encontrar um oásis no deserto. E oferece ganhos secundários aos carrinheiros, aspecto nem sempre contabilizado pelos analistas de habitação.

Os limites entre o Boqueirão e o Uberaba estão longe de ser um Ahú ou Los Angeles, mas melhoraram muito com o empuxo econômico da classe C. A turma do Barracão encontrou famílias amigas nos sobrados, das quais ganha caixas de leite, roupas e comida. Sair dali é sair perdendo. São as regras da informalidade.

A conversa no ônibus pôs tu­­do isso às claras. Os membros da So­­ciedade Barracão têm baixa ins­­trução, mas fazem contas com as solas dos pés. Ir e vir da no­­va casa até o "emprego" lhes exigiria 50 quilômetros diários de maratona, carregando, não ra­­ro, 100 quilos de papel. "Nin­­guém tem reciclável nas bandas do Ganchinho. Do que é que a gen­­te vai viver?", diz Eledir Ro­­drigues, 45 anos, uma das líderes. "O Parque Iguaçu 3 deveria ser um cemitério", provoca o co­­letor Josmar Narciso, 28. "Va­­mos resistir", avisa, ao descer na Rua José Maurício Higgins, sua casa.

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