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Nos idos de 1957, as moças católicas de boa família tinham uma diversão imperdível aos domingos: ir à missa. Se tivessem algum juízo, poderiam participar das Filhas de Maria, uma confraria que usava véu de renda branco na cabeça, medalha no peito e cujas participantes eram incensadas por suas virtudes. O que não incluía, por certo, o empreendedorismo. Mesmo assim, Flora Madalosso, gaúcha de Caxias do Sul criada em Santa Felicidade, decidiu mostrar a que veio e se propôs, com mais nove colegas, a criar a Festa da Uva. O padre, à época, torceu o nariz. Não ia dar certo. Além do mais, aquilo não era tarefa para aquela legião de anjos, que parecia ficar muito melhor cantando no coro do que montando barraquinhas na praça.

Do alto de seus 17 anos, Flora e sua turma não disseram amém. Maria Vendramin recorreu ao amigo Paulo Pimentel – que transformou tudo em notícia de jornal. Deu também nas rádios PRB2, Guairacá, Marumbi. Foi correria. As demais fizeram a decoração, montaram a Roda da Fortuna, conferiram o tempero dos filés e instalaram toca-discos nas Kombis. Veio muita gente e "até alguns Cadillacs, o carrão da época." E eis que Santa ganhou o evento que a projetou como o bairro mais famoso de Curitiba, chegando, na sexta-feira, à 48.ª edição.

Custa acreditar que tudo começou a alguns metros da Paróquia São José de Santa Felicidade. Era dali que a filha mais nova dos Madolosso cuidava do parreiral e observava 300 carrocinhas por dia saindo em direção ao centro, levando madeira, leite e verduras. "Eu me perguntava quando é que o pessoal da cidade viria até aqui. Daí a idéia da festa. Além do mais, tinha visto algumas lá em Caxias", conta. Deu tão certo que, uns poucos anos depois, quando subir a Avenida Manoel Ribas virou mania e gente bamba, como Ney Braga, ia com a família colher uvas no pé, os homens tomaram conta.

A essa altura, pelo menos para uma das meninas de véu, justo Flora, nada seria como antes. Graças à coragem que os cachos de uva lhe deram, casou com o homem que quis, Ademar Bertoli, e abriu um restaurante, tendo de dar de ombros para o olho atravessado de quem achava que lugar de mulher era atrás do fogão à lenha. Que dirá uma ex-filha de Maria. "Chegavam três fregueses e eu corria matar um frango. Contando o que a gente passou, ninguém acredita", conta a matriarca cuja empresa, hoje, gera 800 empregos diretos e, tão bom quanto isso, é apontada com admiração pelas companheiras de sua geração. "Alguém tem de começar."

Por essas e outras, está escrevendo um livro, com a ajuda de um ghost writer. Promete passagens impagáveis, como a do dia que recebeu o presidente Médici e ao passar com as bandejas foi abordada por uma legião de 16 seguranças. "Nem lembrei que estávamos na ditadura." Vai falar também de trabalho. Até porque, ainda hoje, são até 14 horas de batente por dia e há mesmo quem não a reconheça na lida, de vestido discreto, sapato baixo, cabelo preso, circulando nos seus restaurantes.

No domingo à noite, como ninguém é de ferro, Flora descansa: vai jantar no Madalosso Velho, lugar onde, um dia, era tudo parreira de uva. Um dueto canta em italiano, conta. Ela ouve. Como no dia seguinte é segunda-feira de novo, vai descansar. Alguém, afinal, tem sempre de começar.

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