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A gente simples da Ilha dos Valadares ainda não sabia, mas a vida nunca mais seria a mesma depois da chegada do primeiro anjo, há uns quatro anos. Ninguém sabe ao certo quantos foram, mas muitos outros desceriam à Terra e, cada um a seu tempo, bagunçariam a rotina desses caiçaras que sempre gastaram as horas maçantes na pesca artesanal para depois se entregar a uma pouca alegria nos fandangos de fim de semana. Mas na esteira dos acontecimentos do 4 de setembro, a dança típica do litoral do Paraná e maior orgulho desta ilha cederia a vez nos noticiários para eles, os anjos do Apocalipse. Para muitos, a vida nunca mais seria a mesma.

Eram 9 horas da manhã quando policiais federais, armas em punho, invadiram o casebre de madeira tosca rodeado por outros arremedos de moradia nos confins da ilha. Terminado o vira-e-mexe da polícia, o suposto pastor Francisco Vicente Correa Filho sairia dali numa ambulância, tomado por uma dor no peito. A mulher dele, Elizabeth Graff, saiu de camburão. Os dois não se veriam mais, trancados em celas diferentes na delegacia da cidade. Era o fim da Igreja Evangélica do Supremo Amor de Cristo, um templo de fundo de quintal onde Francisco "recebia" os anjos que tanto mexeram com a vida daquela gente, principalmente das crianças e adolescentes.

Seis meses de investigações teriam comprovado a denúncia anônima feita à Polícia Federal (PF) por uma ex-freqüentadora da igreja, resumida a um puxadinho do lado da casa do pastor. Ele usava um ardil místico para se aproveitar de jovens. No meio dos cultos lançava-se ao chão em gestos teatrais dizendo-se incorporado por um anjo. O nome do espírito variava conforme o dia e a conveniência. Os fiéis tinham de colocar a mão sobre o peito dele para libertá-lo da possessão. Mas o lado perverso destes anjos não se manifestava em público, e sim escondido num quarto contíguo.

A cada incorporação do "anjo executor", que esgotava todas suas forças, Francisco tinha de ficar em repouso. Passava assim alguns dias na vida mansa, assistindo à televisão no macio da cama. Sempre haveria de ter uma menina para fazer as vezes de enfermeira. Era então, quando estava sozinho no quarto com as pequenas fiéis, que o "anjo" revelava suas intenções. Só o sexo poderia trazer suas forças de volta. Às jovens, com idade entre 10 e 15 anos, não restaria outra saída senão entregarem-se aos caprichos do pastor. Do contrário, estariam sujeitas a "punições divinas".

Quando os anjos ficavam algum tempo sem se manifestar, Francisco costumava fazer "estudos bíblicos" com as meninas na casa ou no templo. Tratava-se na verdade de um jogo de perguntas e respostas – e castigos. Para quem errasse, uma das punições seria introduzir um pênis de borracha na vagina. Tudo fazia parte das brincadeiras eróticas que serviam de preparativo para as relações sexuais. Silenciar sobre tudo o que acontecia entre aquelas paredes era uma virtude que um dia seria recompensada com as mais altas graças divinas.

O pênis de borracha descrito pelas vítimas não apareceu entre os artigos eróticos recolhidos pela PF. Mas foram encontradas revistas pornográficas e dois pedaços de madeira em forma de pênis. "Ele falava que era para uso espiritual, sem malícia", disse à Gazeta do Povo a mãe de uma das vítimas. A igreja onde os anjos costumavam descer funcionava havia quatro anos num dos lugares mais pobres da Ilha dos Valadares, que por sua vez tem os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) de Paranaguá. A operação policial, ocorrida há três semanas, foi o acontecimento do ano no lugar e está vivíssima nas lembranças dos ilhéus.

Horas após a prisão, duas meninas confirmaram o abuso sexual à PF. No dia seguinte, a conselheira tutelar Izabele Antunes Guimarães encaminhou à polícia mais duas vítimas, de 9 e de 10 anos. Com a prisão do pastor, uma mulher soube por meio de uma das vítimas que dois anos antes a filha, então com dois anos de idade, chorou muito ao ficar sozinha no quarto com o pastor. Na época, tinha uma relação de confiança com Francisco e deixava a criança sob os cuidados dele quando estava fora. Agora, aguarda o resultado dos exames para confirmar se a filha também sofreu abuso.

Esta semana a mulher disse à reportagem que há três meses – antes da prisão, portanto – ficou sabendo da existência do pênis de borracha e dos supostos abusos cometidos pelo pastor. Faltou coragem para denunciá-lo, mas ela e o marido abandonaram a igreja e se mudaram para outro bairro de Paranaguá. "A gente confiava nele, nunca imaginei que pudesse fazer isso com minha filha", disse. Os fiéis se resumiam a umas 40 almas, e mesmo entre esses poucos há sentimentos contraditórios. Alguns ainda alimentam a esperança de que tudo não passe de mentira.

Os acontecimentos envolvendo o pastor impuseram um sentimento de vergonha e de impotência às vítimas e suas famílias. Não faltam dedos acusatórios a apontar para as mães por não terem visto o que acontecia com suas filhas. "Nós somos vítimas, e estão nos acusando", disse uma delas. Os últimos dias têm sido de clausura para a família, recolhida em casa para evitar a hostilidade dos vizinhos. Para proteger as filhas da ira dos vizinhos e de possíveis gozações em sala de aula, a mulher retirou-as da escola. Voltaram uma semana depois graças à insistência da orientadora educacional Jucimari Damasceno Garcia.

Para as vítimas, as seqüelas não cicatrizarão tão cedo. Enquanto estiverem ali, sempre haverá um dedo acusador, transferindo para as vítimas a culpa que elas não têm.

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