• Carregando...
 | Antônio More / Agência de Notícias Gazeta do Povo
| Foto: Antônio More / Agência de Notícias Gazeta do Povo

O escritor William Faulkner dizia que são necessárias três coisas para escrever – imaginação, experiência e observação –, mas que muitas vezes apenas uma delas pode suprir a falta das demais. É uma tríade interessante para pensar como a vida se recria na escrita; de certa forma, literaturas inteiras se articulam no equilíbrio (ou desequilíbrio) dessas três qualidades. Nós mesmos podemos nos classificar assim: os de grande imaginação que não enxergam um poste à frente; os de sólida experiência e nenhuma imaginação; e assim por diante. Numa irresponsável conversa de bar eu diria, por exemplo, que a literatura de língua inglesa fundou-se na observação e na experiência, o que é mais ou menos o método científico de ver o mundo. Não por acaso, a escola realista nasceu lado a lado com o sentimento científico moderno. Mais duas cervejas e eu sou capaz até de dizer que o realismo é também filho do puritanismo: não se deve mentir. Esse pressuposto de "verdade", herdeiro da religião, acabaria sendo um inimigo da imaginação, mas isso já é fantasia demais.

Bem, a imaginação é um dom muito amplo. Uma escritora como Agatha Christie escreveu centenas de livros iguais, filhos de um espírito recorrente de observação que dispensava a experiência, mas tinha uma imaginação prodigiosa para criar infinitas tramas. Em outra direção, Jorge Luis Borges é quase unicamente imaginação: a ideia de um personagem como Funes, que, incapaz de esquecer, conservava na memória cada segundo de sua vida inteira e, portanto, tinha de viver na escuridão para não acrescentar mais nada a ela, é uma obra-prima de pura imaginação e, ao mesmo tempo, de um secreto realismo.

Nesse sentido, bons escritores imaginativos são raros, porque a imaginação realmente interessante não é o delírio sem raiz, um sonho à solta, mas uma projeção que mantém com a realidade uma ligação sutil. As literaturas hispânicas são particularmente imaginativas, de Cervantes a García Márquez, como que para escapar de uma realidade dura, feita apenas de Sanchos Panças.

O tema me veio ao ler um livro maravilhoso, inteiro fundado na imaginação: As pontes de Königsberg, do mexicano David Toscana (Editora Casa da Palavra). Três amigos bêbados – Floro, Blasco e Polaco – vão revivendo, num vaivém do tempo, desde o cerco do castelo de Königsberg de 1410 (cidade onde três séculos depois viveria o filósofo Kant), passando pelos bombardeios da Segunda Grande Guerra, até a criação de Kaliningrado, sob dominação soviética. Tudo nas "trincheiras" das obras de esgoto, no coreto da praça e na mesa dos bares da cidade de Monterrey, no México. É um teatro louco feito de meninas desaparecidas, uma professora severa, um carteiro confuso, bombardeios terríveis e paixões mortais, num achado narrativo feito de lirismo, beleza, humor, violência e melancolia. Há muito tempo eu não lia um livro tão fascinante.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]