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789 lojas de carros

Dados da Associação de Revendedores do Paraná (Assovepar), do final de 2006, estimam que apenas em Curitiba funcionem 789 revendedoras de automóveis. Com a região metropolitana, esse número chega a 1,3 mil lojas. Na capital, as concessionárias – de carro zero quilômetro – somam 84 estabelecimentos.

O indomável trânsito de Curitiba levou o motorista de ônibus Ronaldo dos Santos, 31 anos, a se tornar devoto da Virgem Maria. Desde 2003, quando assumiu a boléia profissionalmente, ele sabe que toda santa quarta-feira tem novena no Santuário de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, nas imediações do Alto da Glória – bem no miolo do trajeto que faz entre Colombo e Curitiba. São 18 quilômetros, percorridos em 45 minutos, multiplicado por quatros idas e voltas em seis horas de batente. Nos dias de reza, a conta não fecha. É quando Santos puxa ar pelas narinas e pede aos céus paciência e atenção para enfrentar o fluxo de automóveis provocado pelo evento religioso que atrai cerca de 30 mil fiéis a cada semana. Um legítimo Atletiba.

Obviamente, a informação de que a capital está prestes a levar a goleada de um milhão de veículos levou o motorista a coçar a cabeça e soltar um sonoro "ai-ai-ai...". Foi como receber a notícia de que vai ter novena de segunda a sexta-feira. "Será que sobra rua para tanto carro?", questiona o homem que bem podia ser o garoto-propaganda de uma campanha federal: "Deixe o seu carro em casa. O Ronaldo está rezando por você."

O slogan não vai parar no outdoor, mas nada impede apresentar o rapaz como símbolo de resistência à tirania do automóvel – o ditador da rua. Ronaldo é de Colombo, mas trabalha na capital, a exemplo de boa parcela dos 1,3 milhão de moradores da região metropolitana. Ao contrário da maioria dos garotos, interessou-se por carros tardiamente, aos 20 anos, aquela idade em que ninguém mais brinca de matchbox. Até porque tinha mais do que se ocupar: desde a infância é aficionado por transporte coletivo. Não à toa, hoje dirige um – seis horas por dia –, é representante local da revista In Bus, e membro do grupo Omnibus do Brasil, idealizado pelo educador Oswaldo Born. Em resumo, um entusiasta. Basta puxar a palavrinha mágica – "ônibus" – e dar férias ao relógio.

"Transporte coletivo é a solução. Mas e para convencer as pessoas?", resume Ronaldo, para quem os exemplos ainda arrastam. Ele faz a sua parte: carro pessoal fora da garagem só fim de semana, para passear com a família. A ironia é que cada vez mais menos gente pode se dar "a esse luxo" – por mais absurdo que pareça. O carro acusado de símbolo do capitalismo, de comodidade e sinal de que a gente está com um salário melhorzinho tende a virar um instrumento de trabalho, uma pastinha 007 com quatro rodas. Eis a questão.

Em busca de quem poderia ser o motorista ideal do carro um milhão, a reportagem se deparou com gente como Ronaldo dos Santos, mas também com uma legião de habilitados que não morrem de amores nem por duas, nem por quatro rodas. Para eles, não se trata de paixão, mas de ganha-pão. É o fenômeno "dirijo para viver", um movimento não-contabilizado, mas inegável. A opção do mercado de trabalho é cada vez mais por funcionários motorizados.

Expediente no volante

Mesmo sem saber dirigir, Silvana Schenoveber Luz, 33, trabalhou numa revendedora de automóveis durante dez anos. Hoje, atua no ramo de pisos e depende de veículo próprio para atender clientes. Entrou na auto-escola e comprou um carro. Motorizada, ela espera aumentar seus rendimentos em 60%, além de ganhar, entre ida e vinda, duas horas de tempo. De sua casa, no Campo de Santana, até o Parolin, onde está empregada, gasta 1h30 de condução. De carro, no máximo 30 minutos. "Fiz tudo na ponta do lápis, a compra, os gastos com manutenção, o que posso lucrar. É um sonho de consumo, mas também uma necessidade", conta.

O aumento de motocicletas nas ruas é uma prova de que existe a equação "trânsito versus sobrevivência". Dados da Associação Brasileira de Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo) aponta o crescimento de 27% na venda de motos de 2006 para 2007. É efeito dominó. Graças à onda de motos que varre a cidade, os veículos de duas rodas já representam pouco mais de 10% do total de carros. São mais de 700 mil carros e cerca de 80 mil motocicletas, só na capital.

Pode não parecer muito, mas incomodam muito mais. É uma questão de logística – enquanto 30% dos veículos em geral saem garagem todos os dias – de acordo com cálculos da Urbs –, é provável que em se tratando de motocicletas esse índice seja pelo menos 10% maior. Informalmente, são 20 mil motoboys em Curitiba, com o agravante de que metade dos veículos da região metropolitana são motos. São mais de 40 mil apenas nos sete municípios mais próximos da capital. Em São José dos Pinhais, ali do lado, são 10 mil – sabe-se lá quantos vivendo do veículo.

Somando tudo, é como multiplicar por seis o pequeno exército de 10 mil carrinheiros que serve a capital, só que com muito mais velocidade na hora de costurar no trânsito – e "velocidade a pedidos", garantem os motoristas. "A sociedade que reclama do motoqueiro é a mesma que pede que seus serviços sejam feitos com rapidez", observa a psicóloga Iara Thielen, coordenadora do Núcleo de Psicologia de Trânsito da UFPR, há seis anos um marco nos estudos de trânsito na capital. Os ases indomáveis não negam que se tornaram reféns da sociedade com pressa.

"Moto" contínuo

O microempresário Gílson Ronel de Lima, 27, sabe bem qual o rumo dessa prosa. Antes de abrir seu próprio negócio – hoje com uma dezena de motoqueiros – foi auxiliar de tudo e mais um pouco: de pedreiro, de serralheria, de farmácia, de lavacar... Até que há nove anos tirou carteira de moto, deu uma folga para a carteira de trabalho e virou dono de seu nariz. A escolha de Gílson tem um preço. O sobrado em que mora, no Novo Mundo, é sede de sua empresa. Já se acidentou cinco vezes, admite ter medo das ruas e que há anos não pega um ônibus. "Para não se acidentar, tem de estar concentrado, focado. É o único jeito. Sou pessimista. O futuro vai ser de bicicleta, não dá outra."

Mesmo assim, não resiste: toca o telefone e comumente o chefe mesmo engata a primeira e ganha o asfalto. "É muito bom. Não gosto de trabalhar preso", admite, de posse da máxima que brota feito água da boca dos malucos por trânsito: dirigir dá sensação de liberdade. No que é apoiado pelo funcionário Leandro Body, 21 anos, ex-auxiliar de produção. "É um trabalho livre, sem estresse, apesar do susto. Já passei um na Avenida Brasília. Eu me sinto desrespeitado", diz o motoqueiro que circula assombrosos 200 quilômetros por dia.

A rua é a floresta moderna onde Jim das Selvas faz seu safári. É bem provável que o motorista "um milhão" venha dessa tribo. Tomara seja um sujeito como o taxista Adriano Lima Siqueira, 32 anos, absolutamente low profile – mesmo enfrentando 150 quilômetros diários de asfalto, suor e lágrimas. Ele aprendeu a dirigir aos 9 anos, com o pai, e sofreu da apaixonite adolescente pelas máquinas incríveis. Curou-se na década inteira em que trabalhou nos Estados Unidos, a bordo dos carrões de filme com que tanto sonhara. "Hoje, automóvel não faz mais a minha cabeça. O brasileiro dá valor demais para detalhes dos carros. Não suporta um arranhão. Carro é símbolo de poder. Tem quem mude o comportamento por causa de um veículo", analisa.

Fosse Adriano o dono do carro "um milhão", baixaria um decreto à sua moda: andar motorizado vale a pena se for para conhecer gente e lugares diferentes. Ele mesmo – depois de ter feito a América – se orgulha de ir a pontos de Curitiba e região que muitos motoristas não iriam nem se remunerados em dólar. "Não me nego a ir em quebrada, mesmo nas mais bravas", garante, de posse da lista que passa pelas vilas mais mal-afamadas. Motivos? "Difícil a viagem em que o passageiro não me ensina algo que eu não sabia. Isso vale para qualquer ponto da cidade. Já mudei até meu ponto de vista sobre os curitibanos. É gente boa, mas gosta de privacidade", resume.

Quanto ao propalado um milhão de veículos, só resta a Adriano coçar o queixo. "Rapaz, Curitiba não é assim tão grande. É muito veículo. Que o cara que comprar esse carro pelo menos seja educado com os outros e atencioso. Senão, não dá!", deseja, ao motorista desconhecido.

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